76º Festival de Cannes | Os monstrinhos de Kore-Eda
A equipa do filme ‘Monster’ do japonês Hirokazu Kore-eda subiu curiosamente ontem os degraus da passadeira vermelha, com o elenco da curta-metragem ‘Strange Way of Life’ do espanhol Pedro Almodóvar. A realizadora francesa Catherine Corsini, apresentou na Competição o seu polémico ‘Le Retour’.
O prolífico realizador japonês Hirokazu Kore-Eda (‘Broker-Intermediários’) é um habituée da competição e por isso está de volta a Cannes, com o seu último filme, ‘Monster’, concorrendo pela sétima vez à Palma de Ouro. Já conquistou o prestigiado troféu em com ‘Shoplifters: Uma Família de Pequenos Ladrões’ (2018), depois de ter ganho o Prémio Especial do Júri em 2013 com ‘Tal Pai, Tal Filho’. Coincidência ou não, este ‘Monster’, um comovente drama sobre a adolescência, marca o regresso de Hirokazu Kore-eda ao Japão, após duas experiências no estrangeiro: na França com a agridoce ‘A Verdade’, interpretado por Catherine Deneuve e Juliette Binoche; e depois na Coreia do Sul com ‘Broker-Intermediários’, com o genial multifacetado actor Song Kang-ho, que ganhou o Prémio de Interpretação, no ano passado. ‘Monster’, abriu a Competição 76 e não me chocaria se o japonês voltassem a ganhar a Palma de Ouro, cinco anos depois, já que este seu novo filme é um dos mais bonitos e mais originais que já vi, sobretudo quando os protagonistas são dois rapazinhos. ‘Monster’ é uma maravilha de precisão e emoção colocou a fasquia muito alta nesta Competição, logo nas primeiras horas do 76º Festival de Cannes! Trata-se de um drama em três segmentos (ou melhor 3 actos) que examina os tormentos de um (ou dois) adolescente(s) e dos adultos que o cercam. Saori (Sakura Ando) é uma mãe solteira como tantas outras, preocupada com o comportamento um tanto lunar de Minato (Soya Kurokawa), o seu único e querido filho. Convencida de que ele está a ser vítima das influências do Senhor Hori (Eita Nagayama), um novo professor um tanto ‘promíscuo’, nas relações com os miúdos, a mulher inicia uma cruzada contra a administração da escola. Sem suspeitar, que um drama completamente diferente está se desenrolando diante dos nossos olhos. Após esta primeira parte que lança luz sobre as falhas do sistema escolar japonês, ‘Monster’ acaba por mudar completamente o seu ponto de vista para se combinar com o do professor Hori, o educador a quem atribuímos no início as piores intenções. Aí é que entra a genialidade de Kore-eda: em vez de retratar a personagem de uma forma maniqueísta, o filme mostra ao espectador que afinal o homem é vítima de preconceitos, porque tem uma abordagem diferente e mais aberta com as crianças. E não vou dizer mais sobre a natureza deste maravilhoso drama que o cineasta vai revelando aos poucos com uma montagem e uma estrutura absolutamente geniais, que junta preocupações universais relativamente ao comportamento por vezes estranho, e incompreensível para nós adultos, dos adolescentes. Documentarista na juventude, Kore-eda passou toda a sua carreira afinal como realizador de ficção, porém examinando a ‘verdade’ dos seus contemporâneos. No seu cinema, as personagens vivem, respiram, passam por dramas interiores que também são nossos. Desde o maravilhoso ‘Ninguém Sabe’, que Kore-eda é sem dúvida um dos cineastas actuais que melhor sabe contar histórias sobre os mistérios da infância-adolescência. Em ‘Monster’, dirige dois jovens atores cujas as interpretações são incríveis e que fogem a todo e quaisquer clichés do género, de filmes de adolescentes. São crianças tão parecidas com as nossas, com as suas raivas e silêncios, que até faz impressão. São as crianças que também já fomos, ainda que muitas vezes tendemos a esquecê-lo, num mundo cada vez mais caótico e problemático. ‘Monster’ é um filme maravilhoso que nos obriga a fazer uma pausa para pensar, reflectir, ouvir e sobretudo desfrutar. Simplesmente, amei!
VÊ TRAILER DE ‘MONSTER’
Pedro Almodóvar está na Croisette fazendo a sua décima passagem por Cannes, desta vez numa Sessão Especial, com uma curta-metragem de 31 minutos, intitulada ‘Strange Way of Life’, uma combinação de western com thriller homoerótico, interpretado por um prestigiado elenco, onde constam Pedro Pascal, Ethan Hawke e o português José Condessa, que faz do actor mexicano, quando jovem e pouco tempo tem para brilhar. Pascal e Hawke interpretam dois cowboys solitários que se reencontram após 25 anos, num filme que é um western queer, com um certo toque de perversão, filmado em inglês no deserto de Tabernas em Almeria em Espanha. Aliás no mesmo cenário, onde Sergio Leone filmou a ‘trilogia dos dólares’ e foram feitos outros saudosos western spaghetti. Pascal é Silva, um garboso cowboy mexicano que cavalga em direcção a uma remota cidade do oeste chamada Bitter Creek para visitar o xerife Jake (Hawke). Parece que eles não se veem há muitos anos e então fica claro que os sentimentos estão transbordando, ao mesmo tempo que se questionam os verdadeiros motivos por trás dessa visita. O resto é uma pequena história de desejo e um mistério que os protagonistas e nós vamos descobrir neste novo filme de Almodóvar. O realizador de uma forma um tanto brincalhona, ousou sair da sua zona de conforto e experimentar,— trabalhando com actores em vez das suas musas femininas — transformando essa pequena história, num western, ao sabor do fado ‘Estranha Forma de Vida’ de Amália Rodrigues, interpretado pelo seu amigo Caetano Veloso. Estão lá todas as referências do género, meticulosamente estudadas e executados: ‘Duelo ao Sol’, ‘Johnny Guitar’ ou ‘Fort Apache’ e outros grandes filmes da era do tecnicolor, reforçada aliás pela própria imagem do cartaz de apresentação. Porém, todas as histórias e filmes de Almodóvar, desde a ‘Lei do Desejo’ a ‘Dor e Glória’, parecem caber neste pequeno filme de cowboys, que não passa de um pequeno exercícios de estilo e uma pequena homenagem ao western clássico. Esperando um dia por um western a sério, será que Almodóvar é capaz?
VÊ TRAILER ‘ESTRAÑA FORMA DE VIDA’
Catherine Corsini era uma das cineastas mais esperadas do Festival de Cannes 2023. A realizadora francesa voltou pela terceira vez à Competição na Croisette, depois de 2001 ‘La Répétition’ (2001) e ‘La Fracture’ (2021). A presença deste seu novo filme ‘Le Retour’, como já disse em nota anterior, gerou polémica, após denúncias relativas às condições de trabalho nas rodagens e ao comportamento da cineasta com sua equipa. Foram também denunciadas infrações relativas a uma cena de cariz sexual envolvendo uma das actrizes menores de idade. Mas para lá da polémica temos um excelente filme no feminino! ’Le Retour’, o décimo segundo filme da realizadora centra-se nos laços entre uma mãe e as suas duas filhas, que regressam à Córsega, quinze anos depois de deixarem a ilha, mostrando as fracturas de um passado ferido, ao mesmo tempo que próximas da idade adulta as miúdas têm as suas primeiras aproximações com a sexualidade. ‘Le Retour’ é uma obra muito actual, na linha dos seus dois filmes anteriores: um acontecimento que serve de catalisador para uma narrativa que vai se adensando, questionando as classes sociais, as orientações sexuais, a diversidade, o papel da família e as tradições. A actriz Aïssatou Diallo Sagna, que em 2022, ganhou o César de Melhor Actriz Secundária pela sua interpretação da enfermeira-cuidadora sobrecarregada em ‘La Fracture’, — o filme sobre os coletes amarelos — encarna agora Khedidja, uma mãe solteira e contratada para babá que, por um verão, regressa à Córsega, quinze anos depois de ter deixado a ilha às pressas com as filhas pequenas. Casada com um corso, de quem teve as duas filhas, Khedidja não se sentiu muito aceite na ilha e preferiu partir, na esperança de dar um futuro mais aberto às suas duas filhas em Paris. Desse passado magoado, Khedidja não falou muito para Jessica (Suzy Bemba) nem para a filha mais nova, Farah (Esther Gohourou), e o regresso à funcionará como um efeito de um bumerangue. As três instalam-se num camping perto da praia enquanto Khedidja vai cuidar dos filhos pequenos de um rico casal parisiense —interpretado por Denis Podalydès e Virginie Ledoyen. É também a oportunidade para um retrato áspero de pessoas de uma certa ‘esquerda caviar’, aparentemente bem-intencionadas, mas capazes de ter também palavras infelizes e desagradáveis, em relação a uma família negra de origem modesta. Confrontadas com esta nova experiência de verão na ilha as duas raparigas enquanto a mãe trabalha, procuram ocupar o tempo seguindo caminhos diferentes: a mais velha gosta de viver com os ricos onde a mãe trabalha, descobrindo a juventude e despertando para a sua sexualidade; Farah a outra começa por fazer alguns disparates envolvendo-se em comportamentos duvidosos. Uma encarna a integração, a outra a rebelião. Porém, cada uma à sua maneira acredita na emancipação, correndo o risco de cair nas armadilhas das juventude, no amor possessivo e no paternalismo de classe. Apesar de tudo as personagens de Jéssica e Farah são fortes e maravilhosas. A transformação do filme para uma espécie de melodrama clássico confirma-se, quando Jéssica tenta perceber quem foi o seu pai, que morreu em circunstâncias que desconhece e que a mãe nunca lhe contou a verdade. Ao procurar a todo custo explorar este segredo, ‘Le Retour’ perde um pouco o seu lado selvagem e misterioso do início, assumindo-se como um retrato de uma família tranquila, composta por três mulheres, que procuram uma forma de se reconciliarem com os traumas do passado.
VÊ TRAILER DE ‘O RETOUR’
Ontem debaixo de uma chuva intensa que começou na fila no exterior da Sala Debussy, antes da sessão da curta Almodóvar, começou também a Competição de Un Certain Regard, a mais importante logo a seguir à Oficial e que procura destacar os filmes de jovens talentos da sétima arte, ao nível do cinema do mundo e onde está aliás o novo filme de João Salaviza e Renée Nader Messora, intitulado ‘A Flor do Buriti’. A competição começou com a exibição de ‘Le Règne animal’, o segundo filme do francês Thomas Cailley, (o realizador de ‘Les Combattants’, ganhou 3 César em 2014, incluindo o de Melhor Primeira-Obra), protagonizado por Romain Duris e Adèle Exarchopoulos. Trata-se de um filme de ficção cientifica não muito convencional, mas um tanto pretensioso e disparatado, em que o realizador, imaginou a humanidade no meio de uma mutação, de homem para animal. Essas ‘criaturas’, que estranhamente e como um vírus passaram por esse mutação, são acompanhadas em centros especializados. Mas um dia, após um acidente de um comboio, (e de viação com uma ambulância) algumas dessas ‘pessoas’ dispersam-se pela natureza. Entre eles, uma mulher. O seu marido (Duris) e filho (Paul Kircher) vão procurá-la, enquanto uma policia (Exarchopoulos) investiga o sucedido.
JVM