LEFFEST ’19 | A Criança Zombie, em análise
Do realizador francês Bertrand Bonello, chega-nos “Zombi Child“, ou em português “A Criança Zombie”. Este filme estreado na Quinzena dos Realizadores, em Cannes, no presente ano, passou ainda por Toronto antes de chegar a Lisboa para competir na 13ª edição do LEFFEST. Uma obra de fantasia que passamos a escrutinar.
Situada no Haiti em 1962, “A Criança Zombie” é uma história de terror contemporânea que procura manipular de forma inventiva noções relacionadas com racismo e colonialismo. Este filme acompanha a vida de uma adolescente com ascendência haitiana. O filme foi apresentado anteontem com a presença do realizador, em Lisboa, e voltou a repetir ontem, em Sintra. Poderá ainda ser um dos vencedores desta edição.
A acção começa no passado, quando um homem regressa dos mortos para trabalhar no mundo das plantações de cana de açúcar. 55 Anos mais tarde, uma jovem conta o seu segredo de família aos amigos, sem suspeitar quais serão as ramificações dos seus actos. É esta uma história de terror fantasiosa repleta de contexto histórico, cultural e social, nomeadamente tocando no tema complexo do colonialismo francês no Haiti.
“A Criança Zombie” é um filme sobre heranças, acima de tudo sobre uma forte herança cultural. Apesar de ser um filme que se desenvolve a partir de diversas temporalidades, e pontos de vista múltiplos, é a história de Mélissa que acaba por ter um impacto mais significativo na narrativa. Esta é uma criança, ou antes, uma adolescente, que cresceu em França, mas cujas raízes se encontram no Haiti, uma antiga colónia francesa. Este é um filme sobre o trauma recorrente nestes ambientes coloniais, onde as marcas se estendem por gerações. Mélissa disse adeus ao Haiti há muito, mas carrega consigo o peso de uma cultura oprimida e de muitos anos de submissão à escravatura impingida pelo “homem branco”.
Durante a grande maioria do filme, as alusões ao sobrenatural são esporádicas e isoladas, mas o ambiente tenso é uma constante que se vai intensificando, num claro exercício de crescendo. Até ao momento em que nos começam a ser explicadas as peças do puzzle, e sem adiantar muito, há que dizer que estes zombies são pouco literais e muito mais simbólicos. Tal como o”sunken place” de “Foge” (2017) simboliza a impotência do povo negro, também estes “zombis” (sem “e”) remetem para esses mesmos valores. Eles perderam a capacidade de falar, e tal como é dito no filme, não têm memória, servindo apenas para…servir. O final do filme oferece-nos um conjunto de “factos” fantasiosos que nos colocam num mundo paralelo, no qual compreendemos o que é, “na realidade”, um processo de zombificação. Pouco tem a ver com terror, muito deve à escravidão e servidão. Por agora, é melhor nada dizer. Ver o filme irá certamente responder a quaisquer questões sobre esta realidade.
Pode dizer-se que este filme representa uma espécie diferente de obra sobre o crescimento adolescente. É retratado um grupo de adolescentes com diferentes idiossincrasias, mas que têm em comum uma posição muito confortável na sociedade. Encontramo-nos num colégio privado feminino, onde todas as jovens são filhas de pais condecorados com medalhas de honra. Estamos num ambiente convencional, e um ambiente onde as questões relacionadas com a herança francesa são confrontadas. Por um lado, a Revolução, com “R” capital, é imediatamente associada a França e à sua Revolução. Contudo, o imperialismo lança uma sombra, e o progresso e as liberdades individuais entram em choque. Isto dito no contexto de sala de aula, algo que os professores portugueses nunca reforçaram, diga-se de passagem…
“A Criança Zombie” é um filme que alterna entre o presente em França, e o Haiti de agora e de há 50 anos. Estes dois estão sempre relacionados. Por vezes, a acção torna-se demasiado fragmentada, o que acaba por a prejudicar. São muitos os focos, e os personagens e acções que seguimos. Ainda assim, o ritmo e tom do filme coadunam-se perfeitamente com as suas intenções, e no geral, este filme cumpre o que promete.
A Criança Zombie
Movie title: A Criança Zombie
Date published: 21 de November de 2019
Director(s): Bertrand Bonello
Actor(s): Louise Labeque, Wislanda Louimat, Katiana Milfort
Genre: Fantasia, Drama , Terror
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Maggie Silva - 80
CONCLUSÃO
A Criança Zombie serve-se de uma metáfora simples para comunicar através de imagética um trauma muito real e persistente.
O MELHOR: A nova interpretação dada à palavra “zombie”.
O PIOR: O andar para trás e para a frente temporal, que apenas retira ritmo à narrativa.