Cannes 2024 | Um western transmontano na Quinzena
A longa-metragem “A Savana e a Montanha” de Paulo Carneiro, as curtas “O Jardim em Movimento”, de Inês Lima e “Quando a terra foge”, de Frederico Lobo, foram selecionadas para a 56ª Quinzena dos Cineastas, complementando a participação portuguesa no Festival de Cannes 2024.
A representação do cinema português na maior mostra de cinema internacional, cresceu com a seleção da longa-metragem “A Savana e a Montanha”, de Paulo Carneiro e as duas curtas-metragens, “O Jardim em Movimento”, de Inês Lima e “Quando a terra foge”, de Frederico Lobo, na prestigiada 56ª Quinzena dos Cineastas, que decorre também de 15 a 23 de Maio.
Trata-se de uma secção paralela não-competitiva do Festival de Cannes 2024, que tem proporcionado o lançamento de novas propostas cinematográficas e novos cineastas, como foi o caso de Miguel Gomes como “As Mil e Uma Noites”, agora na Competição principal com “Grand Tour” e candidato à Palma de Ouro 2024. Não deixa de ser uma surpresa e curioso que os três filmes, selecionados na Quinzena dos Cineastas, têm uma temática comum, em relação à preservação do ambiente e defesa dos ecossistemas, partilhados por homens e natureza.
A EXPLORAÇÃO DE LÍTIO
“A Savana e a Montanha”, é a terceira longa metragem do realizador e produtor Paulo Carneiro (“Périphérique Nord”). Trata-se, segundo as notas de produção, de um western integralmente rodado na aldeia de Covas do Barroso, em Trás-os-Montes, bem perto de onde filmou — a terra do pai — a sua primeira obra documental “Bostofrio, où le ciel rejoint la terre”.
A história de “A Savana e a Montanha”, resume-se assim: “A comunidade de Covas do Barroso, no norte de Portugal, descobre que a empresa britânica Savannah Resources planeia construir a maior mina de lítio a céu aberto da Europa a poucos metros das suas casas. Diante dessa ameaça iminente, a comunidade decide organizar-se para expulsar a empresa das suas terras”.
UM FILME REAL OU FICÇÃO
Com esta descrição, “A Savana e a Montanha” à primeira vista parece ser entendido como um documentário de investigação, de denúncia ou protesto, sobre uma um conflito entre uma poderosa empresa e a população local. Segundo o realizador Paulo Carneiro, trata-se de “um filme um bocado híbrido, que mistura a realidade com a ficção, que não é de todo um documentário de investigação”.
Foi com a população de Cova do Barroso que o realizador criou esta história inspirada em situações que aconteceram, durante esse processo de instalação da empresa e do conflito lactente, que ainda está neste momento a decorrer. “É uma ficção, que tem alguns momentos documentais”, realça Paulo Carneiro, “mas é uma história onde as pessoas têm até linhas de diálogos”. É um western, porque tem “cowboys e indígenas”, numa história é uma espécie de farsa interpretada pelo povo de Covas do Barroso, em relação à situação que lhe foi imposta e contra a qual lutam.
“Empolamos essa farsa e criamos uma espécie de ficção com base em encontros e reuniões secretas. Não há ‘talking heads’, nem pessoas a falar para a câmara. Tudo se passa mais ou menos através daquilo que se vai desenrolando no filme e dessas reuniões que o povo vai organizando, para destruir a ocupação da empresa”, esclarece o realizador. A questão da exploração do lítio está sempre presente e por isso “A Savana e a Montanha”, também é muito mais do que uma mera ficção: “o cinema é sempre um pouco mentiroso, joga-se com uma parte ficcional, mete-se umas coisas e através da montagem, trabalham-se determinadas cenas. Imagina que temos cinco planos documentais no filme, que depois acabam por servir para fazer a ficção, dentro desse lado documental. Porém as pessoas, representam-se a elas próprias, são postas nos seus sítios, existem diálogos, criam-se ações que lhe são pedidas, etc. Parece meio confuso mas é assim que funciona”, esclarece o realizador quanto ao seu processo de construção do filme.
A ENCENAÇÃO DO REAL
Os atores são a população da aldeia, “que fica ao lado de Bostofrio, onde fiz o meu primeiro filme, portanto já conhecia algumas dessas pessoas”. Porém importante dizer que, se trata de um filme de combate: “desde o inicio considerámo-lo como uma arma ou uma forma da Arte dar visibilidade a questões como estas”. Nos meio urbanos, não temos consciência do que se passa no Barroso ou em outras localidades do nosso país, “por isso sempre tive a intenção de o revelar, não com um cinema simplório ou em documentários meio-televisivos, com base em depoimentos superficiais ou em jeito de denúncia. Interessa-me mais os gestos, as ações e de uma forma bem mais cinematográfica dar força à luta dessas pessoas sem que estivessem para ali a chorarem-se. O importante é de facto de ‘A Savana e a Montanha’, dar ‘power’ às pessoas do Barroso”, conclui Paulo Carneiro.
DA RAIA À ARRÁBIDA
É também em Trás-os-Montes que é rodado “Quando a terra foge”, realizado por Frederico Lobo (“Bab Sebta”, com Pedro Pinho e “Revolução Industrial”, com Tiago Hespanha) que foi selecionada para integrar a seleção oficial de curtas-metragens também da 56.ª edição da Quinzena dos Cineastas. Filmada inteiramente na raia transmontana, passa-se “entre o nevoeiro, num pleno labirinto do tempo, onde máquinas sondam as profundezas geológicas da montanha, um pastor vai em busca de uma vaca tresmalhada e a infância encontra o seu regresso. A Serra transforma-se, o ciclo continua”.
“O Jardim em Movimento”, da jovem realizadora Inês Lima, integra também a seleção oficial das curtas-metragens da Quinzena. O filme conta a história de duas guias botânicas que conduzem um grupo de caminhantes pelo Parque Natural da Arrábida. Neste passeio entre várias espécies da fauna e flora, vamo-nos apercebendo que também este lugar muito particular e selvagem, está a sofrer uma mutação, não por causas naturais, mas pela mão humana.
JVM