Dune – Parte 2, a Crítica | O regresso do épico de ficção científica protagonizado por Timothée Chalamet
Denis Villeneuve apresenta a continuação do seu épico de ficção cientifica protagonizado por Timothée Chalamet com este “Dune – Duna: Parte 2”.
Mais de dois anos após a estreia da primeira parte da versão de “Dune”, 2021, realizada pelo canadiano Denis Villeneuve, aqui está a segunda parte da saga, “Dune: Part Two” (Dune – Duna: Parte Dois), 2024, baseada na obra literária de Frank Herbert, publicada em 1965 mas precedida por uma anterior edição sob a forma de romance épico de ficção científica na revista Analog. Estamos a falar de “Dune World” (1963-1965) e “Prophet of Dune” (1965). Quem leu a obra na sua versão escrita nunca irá considerar as diversas e posteriores versões para o grande ecrã como sendo superiores no domínio muito específico do género a que ela corresponde. Diga-se, em abono da verdade, onde se inserem de pleno direito.
DUNIVERSE II: O PODER DO MESSIAS NO LIMIAR DA GUERRA SANTA
Frank Herbert não se ficou por uma inicial e bem-sucedida saga cujas grandes linhas da acção se desenrolam num futuro distante. Foi antes acrescentando mais e mais matéria ao primitivo, monumental e genial corpo das suas crónicas com o propósito de nos fazer acreditar num mundo em que a civilização aboliu a presença dos computadores, a mecânica robótica e a inteligência artificial. No entanto, os humanos que lá chegaram (no filme, estamos no ano 10.191) não dispensaram as máquinas de guerra, apesar do desenvolvimento exponencial das suas capacidades e aptidões do ponto de vista físico e mental.
No âmago deste universo de contradições, uma certeza: a necessidade imperiosa de lutar pelo controlo, aquisição e armazenamento de uma especiaria vital, denominada melange, que só se encontrava nas rudes condições climáticas do deserto do Planeta Arrakis. Para os devidos efeitos, deixo-vos aqui os restantes livros que o citado autor escreveu: “Children of Dune” (1976), “God Emperor of Dune” (1981), “Heretics of Dune” (1984) e “Chapterhouse: Dune” (1985). Depois da sua morte, outros, incluindo o filho, Brian Herbert, coadjuvado por Kevin J. Andersen, deram continuidade ao que se perfilava já como um imenso franchise no campo da edição literária.
Mas basta de fazer a contextualização da obra genericamente conhecida por “Dune” e passemos a realçar um aspecto fundamental que deve prevalecer sobre qualquer abordagem crítica, neste caso, a da matéria fílmica. Primeiro, o valor literário não pode nem deve ser confundido com o valor cinematográfico, porque literatura e cinema representam linguagens distintas e por isso mesmo com dinâmicas e ritmos de leitura necessariamente diferentes. Segundo, nunca levem a sério quem diz qualquer coisa como “não li o livro, mas vi o filme”. Porque quem diz isso não gosta nem de uma nem de outra abordagem, apenas se perfila enquanto consumidor passivo daquilo que lhe querem pôr na frente sem esperar outra reacção que não seja a de pagar o bilhete ou o preço do livro sem questionar seja o que for. Não esperem da minha parte essa atitude, e deste modo aqui estou para dissecar e apontar sobretudo o que de melhor esta última versão para cinema nos apresenta.
Desde logo, há um aspecto que ressalta imediatamente. Em vez do foco da nossa atenção se concentrar nas intrigas palacianas, nesta segunda parte somos imediatamente mergulhados num cenário de guerra que vai permanecer até ao final em que se lançam as raízes da chamada guerra santa. De um lado, vemos uma guerrilha que faz lembrar, no vestuário e linguajar, membros de organizações envolvidas em conflitos bem actuais, desgraçadamente muito activas no Médio Oriente, nem sempre do lado certo da História. Do outro, observamos o peso das hordes militaristas cujo perfil faz lembrar os exércitos nazi-fascistas que a realizadora alemã Leni Riefenstahl não se importaria de usar para fazer, se fosse viva, o seu “Triunfo da Vontade: Parte Dois”.
Para quem não saiba, o filme citado e que a cineasta em causa realizou (sem a óbvia ironia do Parte Dois) constitui ainda hoje um dos apogeus da cinematografia nazi e o documentário que melhor glorificou o correspondente regime e o seu mais conhecido ditador, Adolfo Hitler. Trata-se de uma obra-prima, pois sim, mas isso só prova que até o mais diabólico dos filmes pode ser um expoente da arte da montagem, para além de ser um exemplo da mais depurada e extrema eficácia, e isso é o que faz dele um perigoso instrumento de manipulação se cair nas mãos erradas.
Para além da indumentária, as idiossincrasias ideológicas do povo do deserto são uma curiosa mistura de escritos sagrados de diversas proveniências, onde prevalece a ideia de um homem providencial, neste caso um carismático Paul Atreides (Timothée Chalamet). Mais do que um homem, um ser capaz de através do cumprimento de diversas etapas pré-anunciadas, convencer os Fremen a prosseguirem a sua revolta contra as arbitrariedades opressoras da casa Harkonnen. Trata-se de um projecto hercúleo e pleno de perigos onde as fronteiras entre a vitória e a derrota espreitam a cada investida do inimigo, assim como a cada dúvida levantada pelos seus correligionários, que em certa medida o consideram e sempre considerarão, para o melhor e o pior, um estrangeiro.
Na prática, aquele que pode ser o Messias, mas que necessita de o provar no campo de batalha e nos duelos com os que lhe são iguais apesar de se encontrarem em barricadas distintas. Não deixa de ser curiosa a divisão entre o modo de ser do Norte e do Sul no seio dos habitantes do deserto, com a presença e confronto de fundamentalismos de carácter proto-religioso nas hostes meridionais e mais ou menos cartesianos, revolucionários e materialistas-dialécticos nas hostes setentrionais, visível nomeadamente no pensamento e na voz de uma rapariga, que insinua que a crença num Messias não passa de uma outra forma de opressão, porventura mais difícil de vencer do que a dos soldados ao serviço de um qualquer desígnio imperial.
Notemos outro aspecto primordial de “Dune – Duna: Parte Dois” que pessoalmente considero um dado a reter na concepção do argumento da autoria de Denis Villeneuve e Jon Spaihts: a importância da componente feminina. Naturalmente, a base já se encontrava na saga literária, mas na adaptação ela podia ser relegada para um plano secundário ou com força apenas no capítulo da estratégia de poder e nas convulsões familiares que regem o mesmo. Mas não, a mulher-mãe dominadora mas subjugada ao devir da sua condição semi-divina, Jessica, a Madre Reverenda interpretada por Rebecca Ferguson, vai beber a “Água da Vida”, fatal para os homens, e adquire assim como herança a memória de cada um dos seus antecessores, considerando a sua linha genética.
Tremendo e pesado o seu poder, que não obstante não será suficiente para impedir o desenlace de um outro poder entretanto adquirido pelo seu filho, Paul Atreides. Por sua vez, este permanece longos períodos num limbo onde a sua relutância em se apoderar da responsabilidade de ser o eleito, o Messias, esbarra com a visão mais carnal do mundo que lhe vai ser dada por Chani (interpretada pela musa, actriz e cantora da moda, Zendaya), mulher guerrilheira e rebelde que o leva a perceber que a História do Mundo, qualquer que ele seja, passa igualmente pelas relações entre os sexos e, no limite, pelo puro, simples e deveras natural acto físico do amor. Frank Herbert/Denis Villeneuve meets Sigmund Freud. E porque não?
Finalmente, a estrutura dramática proposta encerra os diferentes episódios em sequências desenhadas para se compreenderem as motivações das personagens na plenitude dos minutos que passam, facto que nos permite, na imensidão das referências, sistematizar com muito mais precisão o que importa reter da narrativa proposta. Tensão e repouso são expedientes usados em sucessivas vagas de acção que nos empurram para o núcleo duro dos acontecimentos, quer eles sejam dominados pela interacção dos diálogos quer pela mais directa assunção a um plano de superioridade visual, como sucede no vertiginoso cavalgar de um verme, os monstros da areia, por parte de Paul. Demonstração das suas capacidades e dos seus medos enquanto candidato a homem forte de “Dune”.
Na Direcção de Fotografia, o destaque vai para os amarelos ocres onde prevalece uma luz quente e filtrada, em pleno contraste com a frieza enegrecida, por vezes mesmo o preto e branco, das arquitecturas erguidas pelos que querem ser dominadores mas vão sair dominados. Dicotomia que podia ser uma mera e grotesca caricatura da Ficção Científica para encher o olho do espectador. Mas não, na verdade essa possível fragilidade conceptual desaparece no jogo complementar das escalas dos planos, onde não se ignora o impacto de um grande plano em articulação com os planos de conjunto, sem esquecer os planos recuados onde se dá conta de uma criativa utilização da profundidade de campo. Numa palavra, “Dune – Dune: Parte Dois” merece ser visto, já agora, num grande ecrã (se possível com as dimensões do formato IMAX) e numa sala em que a amplificação sonora nos faça vibrar, literalmente, com os sons das batalhas, o pulsar de chamamento dos vermes e a voz cavernosa dos seres eleitos, cujas palavras proferidas em jeito de desafio provocam um arrepio no mais corajoso dos cinéfilos.
Dune - Duna: Parte Dois, a Crítica
Movie title: Dune: Part Two
Director(s): Denis Villeneuve
Actor(s): Timothée Chalamet, Zendaya, Rebecca Ferguson, Javier Bardem, Josh Brolin, Austin Butler
Genre: Drama, 2024, 166min
-
João Garção Borges - 80
Conclusão
PRÓS: Melhor, pelo menos mais consistente do ponto de vista formal, do que a primeira parte. E isso já seria por si só um feito e um convite para desfrutar sem receios esta segunda vaga da saga “Dune”, versão 2024.
Não faz esquecer a versão de “Dune”, 1984, realizada por David Lynch e mutilada por desígnios comerciais que na época prevaleceram contra a orientação geral do realizador. Mas não faz esquecer porque na verdade os dois cineastas são apenas pares do mesmo ofício, e nada mais. No dia em que Denis Villeneuve realizar qualquer coisa próxima do “The Elephant Man”
(O Homem Elefante), 1980, para não citar outros, voltamos a “falar”.
CONTRA: Seria interessante que fosse possível visionar de novo a primeira parte num grande ecrã e não apenas no exíguo formato de um pequeno ecrã, por maior que ele seja. Será que isso vai acontecer?