"Os Rapazes Não Choram" | © Searchlight Pictures

Cinema com Orgulho | Os Rapazes Não Choram (1999)

Em 1999, a realizadora Kimberley Peirce dramatizou a tragédia de Brandon Teena, criando um marco na representação de pessoas trans no cinema mainstream. “Os Rapazes Não Choram,” também conhecido como “Boys Don’t Cry,” teve a sua estreia mundial numa secção paralela do Festival de Cinema de Veneza, sendo imediatamente aclamado pela crítica. Em particular, as prestações de Hilary Swank e Chloë Sevigny foram muito elogiadas, começando uma narrativa imparável para a temporada dos prémios. Sevigny viria a ser nomeada para o Óscar de Melhor Atriz Secundária, enquanto Swank sairia vitoriosa na categoria para Melhor Atriz, tendo também ganho o Globo de Ouro e uma infinidade de outros troféus.

Nascido no Nebraska, em 1972, Brandon Teena teve um conturbado início de vida. O pai morreu num acidente de viação meses antes do seu nascimento e a mãe deixou-o a ele e à irmã mais velha aos cuidados da avó durante os primeiros três anos da infância. De classe baixa, sempre no limiar da pobreza, a família passou a morar numa caravana, enquanto a matriarca tentava fazer a vida com trabalhos menores e cheques de apoio. Nestes anos infelizes, tanto Brandon como a irmã foram abusados por um tio, tendo vindo a necessitar de apoio psicológico ainda na adolescência. Nada disso serve para tornar sua identidade em patologia, mas é importante o contexto.

Desde cedo, Brandon assumiu-se rapaz contra a vontade da mãe que, mesmo após a morte dele e sua celebração no cinema, continuou a referir-se ao filho como uma menina. Aliás, quando Hilary Swank ganhou o Óscar e se referiu a Brandon com pronomes masculinos, a mãe veio manifestar-se contra tal em entrevistas. Mas isso fica mais para a frente. Primeiro, há que continuar a explorar a realidade por detrás da ficção. Assim sendo, lembramos a sua passagem por escolas cristãs e a rejeição dos ensinamentos religiosos, a rebeldia contra normas de vestimenta e retóricas homofóbicas tão populares na época.

Entre esses comportamentos e uma tentativa falhada de se alistar no exército, Brandon acabaria por ser expulso um par de dias antes de terminar os estudos. Contudo, não haveria grande lamentação por esse fado, com o jovem ganhando mais independência fora do ambiente escolar. Assumindo o género masculino a tempo inteiro e sem regras de uniforme a seguir, Brandon encontrou trabalho e começou relação com uma jovem local com quem planeava viver. Um passo para a frente, dois para trás, as pressões maternas e estatais levaram a novas considerações psiquiátricas e um novo laivo de rebeldia que terminou em problemas com a lei.

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Talvez por isso tenha aqui havido um corte, uma rutura final, com Brandon a decidir mudar-se para longe da família. Em Falls City, ele construiu nova vida onde ninguém o havia conhecido por outra identidade de género e encontrou novo relacionamento amoroso com Lana Tisdel, uma amiga da sua senhoria. Dito isso, o Éden desta paz reencontrada não havia de durar. No final de 1993, Brandon seria preso e encarcerado na secção feminina da prisão, o que levou ao revelar público do seu sexo de nascença. Apesar de isso não ter levado ao fim da relação com Lana, novas fricções surgiram entre Brandon e dois amigos ex-presidiários, John Lotter e Tom Nissen.

Em Dezembro do mesmo ano, o jovem trans foi confrontado pelo par, humilhado e despido em frente à namorada. Não queremos descrever em demasia os detalhes dessa noite fatídica, mas fica a ideia principal. Brandon foi violado múltiplas vezes por esses homens, raptado e aprisionado contra a vontade. A meio do horror, ele conseguiu escapar, mas não encontrou auxílio nenhum ora no hospital ou com a polícia. Um novo ataque seguiu-se em casa, no fim do qual Brandon foi esfaqueado até à morte. Outros dois amigos seus morreram nessa noite, a senhoria Lisa Lambert e Phillip DeVine. Foi um crime imperdoável, um pesadelo difícil de ignorar.

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Pensar-se-ia que tal caso chocaria a nação, mas muitas piadas cruéis e discursos de ódio seguiram o fado triste de Brandon Teena e os demais. Contudo, entre a comunidade LGBT+, o caso serviu como gasolina jorrada sobre as labaredas de indignação e protesto político. O contínuo desrespeito da matriarca Teena para com a identidade do filho, negando-o até o nome de Brandon na lápide, atiçou ainda mais as labaredas, elevando o jovem massacrado ao estatuto de um ícone, quiçá um mártir. O homicídio do jovem gay Matthew Shepard alguns anos depois veio causar ainda mais tumulto, dando cara à vitimização da comunidade queer numa sociedade opressiva e cheia de ódio.

Foi durante a cobertura mediática inicial que Kimberley Peirce primeiro se deparou com o caso de Brandon Teena. A estudante de cinema, lésbica assumida, estava a meio do curso na Universidade de Columbia quando leu um artigo no Village Voice sobre os acontecimentos. Comovida pela história, Peirce viria a mudar os paradigmas da sua tese, partindo para Falls City onde conduziu várias entrevistas à comunidade onde Brandon encontrou o seu fim. Como parte do projeto, Peirce concebeu uma curta-metragem enquanto trabalho final do curso, obra essa que viria a suscitar o interesse de alguns produtores independentes, entre eles Christine Vachon.




Assim nasceu a ideia de expandir a curta em forma de longa-metragem, passando do documental para a narrativa dramatizada. O processo foi árduo e demorou vários anos, sendo que foi difícil assegurar fundos para as filmagens. De facto, Peirce teve de manter vários trabalhos part-time para se sustentar e ao projeto, recorrendo ainda a fundos artísticos como os do Sundance Film Festival para financiar a rodagem. Em 1998, Susan Muska e Greta Olafsdottir filmaram um documentário intitulado “The Brandon Teena Story,” despertando mais interesse público nos esforços de Vachon e Peirce, mas também lhes fornecendo importante material jornalístico.

A realizadora e argumentista viria a incluir passagens de diálogo tiradas diretamente dessa longa documental, conferindo uma autenticidade enorme a um guião que almejava humanizar a figura de Brandon além da polémica gerada pelo seu homicídio. Encontrar o intérprete perfeito para o papel principal também deu muitas dores de cabeça, envolvendo uma busca de três anos terminada com a contratação de Hilary Swank cuja carreira nunca mais seria a mesma depois desta performance genial. O resultado da tragédia, de todos estes anos de investigação e esforço nos bastidores foi “Os Rapazes Não Choram.”

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Seria fácil deixar que toda a História por detrás do filme projetasse uma sombra descomunal sobre a fita em si. Contudo, mesmo divorciado desses antecedentes, a primeira longa-metragem de Kimberley Peirce é um trabalho que impõe respeito, partindo de uma procura pelo cinema enquanto máquina da empatia sem deixar, por isso, de seguir a motivação rebelde do seu protagonista. Essa segunda característica veio anunciá-lo como um píncaro tardio no movimento do New Queer Cinema, um gesto desafiador para com uma indústria cinematográfica onde a identidade trans era algo alienígena ou motivo de chacota.

Dito isso, reduzir “Os Rapazes Não Choram” a mero triunfo de representação também é errado, seu valor muito transcendendo a causa panfletária. Pensemos no modo como Peirce nos introduz ao mundo de Brandon, puxando a referência da câmara Scorsesiana e a entrada de Dorothy em Oz para transmitir aquela felicidade temporária de alguém às portas de um novo mundo, nova vida. Note-se como a realizadora situa o início da história na mudança para Falls City, contextualizando a viagem do seu protagonista como a procura de liberdade ao invés da tragédia que anuncia seus fins tristes desde o primeiro minuto.

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Em termos estéticos, o movimento de câmara transmite a noção de imersividade que a sonoplastia vem sublinhar e a restante cinematografia ainda mais atiça. Peirce queria filmar nos locais onde a história aconteceu, mas o compromisso de cenário Texano não significa que a realidade material se perca. Sentimos as texturas da vida nessa América do interior, perdida e esquecida, insular apesar de tudo ser campo até onde a vista alcança. Essa paisagem natural servirá para invocar um Éden sob a calada da noite, quando observamos as interações reticentes entre Brandon e Lana, sua atração crescendo sob a abóbada de um céu escuro, como que isolados e escondidos, reconfortados pelo vazio envolvente.

Chegadas as passagens finais, essa zona de escuridão terna será transformada numa sombra que arrepia. De repente, a ausência de humanidade é um vácuo para onde os gritos de ajuda se perderão, engolidos pelo silêncio apático da noite. É impossível verbalizar toda a mestria evidenciada no trabalho de Peirce, na colaboração com Jim Denault atrás da câmara, Tracy Granger e Lee Percy na mesa de montagem. Mas, como é evidente quando examinamos o legado longevo do filme, o elemento mais precioso de “Os Rapazes Não Choram” será mesmo o trabalho dos seus atores, todos fenomenais, desde o papel mais diminuto ao triunfo Oscarizado de Hilary Swank.

Passando a elogios mais específicos, aplaudimos o modo como Peter Sarsgaard consegue encontrar inquietantes rasgos de vulnerabilidade na violência asquerosa de John Lotter. Chloë Sevigny expõe todas as contradições e ansiedades juvenis de Lana Tisdel, fazendo-nos entender o romance com Brandon, mas também os limites da sua coragem, o peso da perda e a vontade de fugir de tudo isso. As cenas partilhadas com Swank são quiçá as melhores do filme, essas ilhas de paz no olho da tempestade. É claro, contudo, que o ato derradeiro da violência seja o que mais fica na memória. Ou talvez seja aquele apontamento Lynchiano que fecha a fita.

Enfim, sublime e perfeita, a atriz principal dá-nos entrada no mundo secreto de Brandon Teena, seus medos e suas raivas também, suas paixões e devoções, o pânico da descoberta e o êxtase momentâneo da liberação. Quando, no momento máximo do horror, Swank fita a câmara diretamente e a luz branca a emoldura, sentimos uma conexão fulminante, um reconhecimento que dói, que lacera, que transforma. Sentimos o assombro de Brandon que nunca teve justiça em vida, mas talvez consiga algo parecido na imortalidade cinematográfica. Muito Hilary Swank mereceu o Óscar e muito esta obra merece ser lembrada como um dos grandes filmes LGBT+ do século XX, simplesmente arrebatador.

“Os Rapazes Não Choram” está disponível no Disney+. Além disso, também poderás alugar o filme através do Youtube, Google Play, e da Rakuten TV.

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