Euphoria © HBO

Euphoria, primeira temporada em análise

Polémica e ousada, “Euphoria” (HBO) é a série deste verão. Com Zendaya a surpreender, é uma droga e uma espiral visualmente estonteante e tecnicamente ambiciosa sobre personagens egoístas e hedonistas e sobre o seu trajeto de autodescoberta e constante ansiedade. Uma série sobre adolescentes, mas não apenas para eles.

Há alguns dias atrás, Damon Lindelof (autor de “Lost”, “The Leftovers” e de “Watchmen”, que estreia em outubro) comentou que não era capaz de dizer o que era uma série Netflix, Amazon ou Hulu, mas que sabia o que era uma série HBO. De facto, o canal fundado em 1972 por Charles Dolan, gerido atualmente por Bob Greenblatt e com a sua programação supervisionada por Casey Bloys tem uma identidade distinta: produz séries que sabem que se existem limites são para ser cruzados, e apoia incondicionalmente os seus autores e a sua criatividade. Aquele ecrã chuvoso e cinzento, onde surgem 3 letras que continuam a subir a fasquia do que é fazer televisão, torna-se quase sempre anúncio de qualidade e de um produto confiante, que sabe o que quer e que sabe que é diferente. Porque a HBO não tem medo da diferença, vive apaixonada por ela.

Em 2012-2013, uma série israelita acompanhou a Geração Z e os seus excessos, num retrato em que cada vez que os pais surgiam em cena, o plano optava por cortar os seus rostos. A série chamava-se “Euphoria”. Sam Levinson (filho de Barry Levinson, realizador de “Rain Man – Encontro de Irmãos”) adaptou a série, acrescentando-lhe a honestidade do seu passado de luta contra o vício em drogas e depressão, a HBO deu luz verde ao projeto, e à produção juntaram-se a A24 Television, Drake, Future the Prince e os “pais” israelitas do ensaio original.

Euphoria © HBO

“Euphoria” (euforia é de acordo com o nosso dicionário 1. a sensação fisiológica de bem-estar, 2. facilidade com que se suporta uma doença ou uma crise que a modifica) é a primeira série teen da HBO. Contudo, não é necessariamente uma série para adolescentes como “13 Reasons Why” ou “Riverdale”; é sim sobre adolescentes tal como “Skins”, “My So-Called Life” ou o filme de 1995, “Kids”. É polémica, ousada, sensacionalista, controversa e sem tabus. É uma droga, uma espiral visualmente estonteante e tecnicamente ambiciosa, sobre personagens egoístas e hedonistas e sobre o seu trajeto de autodescoberta e constante ansiedade. Como disse, sobre adolescentes. Cada qual com os seus vícios e necessidades.

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No centro de “Euphoria” está Rue (Zendaya) que aos 17 anos, depois de uma overdose e da consequente reabilitação, está de volta a casa no arranque de novo ano letivo. A realidade de Rue, que se rende imediatamente aos velhos hábitos, é agitada pela chegada da sua nova droga, a amiga Jules (Hunter Schafer).

Além da intensa e inolvidável amizade de Rue e Jules (Rules), a série tem como ponto forte a forma como apresenta e desenvolve personagens, apropriando-se de estereótipos para desrespeitar convenções e explorando temas-chave de uma geração que é ao mesmo tempo sinónimo de liberdade e claustrofobia. Sam Levinson (escreveu todos os episódios e realizou cinco) usa os teasers ou prólogos de cada episódio para partilhar a backstory das personagens.

“Euphoria” confia e aposta totalmente nas suas personagens, deixando-se guiar muito mais por elas do que pela narrativa, um risco que se torna visível quando chega a hora de encerrar a temporada, mas que compensa graças ao excelente trabalho dos atores (aplauso para o casting, sendo este um ponto de viragem para a carreira de Zendaya, o primeiro trabalho de sempre dos atores que interpretam Jules e Fezco, ou o primeiro projeto de peso de Jacob Elordi, Barbie Ferreira e Alexa Demie).

Euphoria © HBO

Assumindo a sexualidade como espetro, são muitos os temas que “Euphoria” coloca em cima da mesa (uma mesa com bastante nudez masculina, o que afastará ou tornará alérgicos os mais pudicos), motivando discussão e reflexão. Desde o sensível e realista tratamento de uma personagem transgénero, aos nudes como moeda para uma geração influenciada por pornografia, à subcultura online com modelos web e à ténue fronteira entre drogas ilegais e prescritas.

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A grande série de verão da HBO é muitas vezes superficial, ocasionalmente pouco realista. Mas Levinson, que já confessou as influências de Paul Thomas Anderson (especialmente “Magnolia” e “Jogos de Prazer”), Francis Ford Coppola ou do húngaro Péter Gothár na sua abordagem, está interessado sim na realidade emocional das personagens. Também por isso 70% da série é filmada em cenários criados de raiz como extensão da psicologia e do mundo interior de Rue, Jules, Kat, Cassie, Nate, etc. E quando se tem a HBO como parceiro criativo pode-se até sonhar com a construção de uma feira popular/ parque de diversões só para o programa…

Quase tudo em “Euphoria” é um engodo. Como a mais perfeita maquilhagem (série mais original da atualidade neste aspeto?) que se perde num borrão de lágrimas. Não pretende ser uma série pedagógica, mas acaba por sê-lo – ao não fugir a nada e ao mostrar de forma crua o lado autodestrutivo dos excessos e suas consequências torna-se estranhamente menos perigosa que a 1.ª temporada de “13 Reasons Why”, que romantizou e quase se tornou um culto ao suicídio.

Euphoria © HBO

A sensação que passa é que “Euphoria” chegou a uma audiência substancialmente mais ampla do que aquela a que apontava inicialmente. Mérito de uma fotografia capaz de deixar qualquer um hipnotizado, uma sempre hábil utilização da luz, um trabalho incrível de Labrinth na banda sonora (todos os episódios, exceto o piloto, partilham o título com canções rap) e uma câmara que mimetiza a emoção efervescente da adolescência, jamais estando quieta. Com pouca filmagem manual, a cenografia, os efeitos práticos coreografados com minúcia e a montagem criativa trabalharam juntos para nos oferecer por exemplo uma simétrica troca de mensagens entre Jules e Nate aka ShyGuy118, um plano-sequência na feira que parte da roulotte de Fez e acaba na tenda de Cal, mas navega pelo meio na roda gigante com Jules e Kat, o mundo de Rue à roda num corredor ou uma cama que gira e alterna um primeiro beijo com a evolução dessa relação.

Tal como a geração que explora, a série não se coíbe de cometer excessos, chocar e assumir riscos – sejam eles uma aula sobre fotografias de falos, um romance ficcional e cartoonizado entre membros dos One Direction, a capacidade de brincar com o formato e granular a imagem para apresentar as teorias das detetives Rue e Lexi, uma humilhante e diminuta sessão de masturbação via Skype, ou a corajosa sequência que fecha a temporada.

Euphoria © HBO

O formato à la “Skins” ou “Orange is the new Black”, com cada episódio a dedicar mais tempo a determinada personagem, fez-nos conhecer melhor – além da protagonista Rue – Nate, Kat, Jules, Maddy, McKay e Cassie (a 2.ª temporada dedicará garantidamente o seu tempinho a Fezco e Lexi). E é curioso como esta abordagem beneficia sempre personagens adiadas, que em segundo plano se tornam fonte de maior e maior curiosidade.

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Antes de analisar o final e de que forma fica lançada a segunda temporada, importa destacar os momentos que emergem como principais destaques. Desde a íntima e psicadélica mistura de toques e sensações de Jules numa discoteca em que, além de Anna, fantasia com Nate e Rue, à tela cinzenta-azulada e tingida em vermelho com Jules (cada plano de Hunter Schafer é um quadro) de madrugada no topo de um prédio, a finalmente Rue e Fezco, separados por uma porta, num pedido desesperado e crescente em voz trémula que devia por si só valer um Emmy a Zendaya (fantástica a forma como atua também com o seu corpo, conseguindo alternar extrema confiança com total vulnerabilidade, desarmada na presença de Jules) e que ajudou a reforçar Fez (Angus Cloud faz tanto lembrar Mac Miller!) como uma das melhores personagens da série.

Euphoria © HBO

O último episódio, temporal e propositadamente desorganizado, faz o jovem american psycho Nate escapar impune (sinal que a queda será maior na próxima temporada; fundamental aquele momento perturbador com o seu pai para o humanizar e nos relembrar a origem dos seus problemas) e com Maddy a voltar para ele, dá a Kat o final mais positivo com Ethan (demasiado bom para ser verdade?), edita com extremo bom gosto a elegante patinagem de Cassie, seu abrigo mental, com o assalto de Fez; e afasta Jules – só porque sim, embora a personagem seja o maior símbolo de liberdade da série, capaz de amar o mundo inteiro – para que Rue tenha uma recaída.

A sequência musical final, aquele “All of Us” que depois de seduzido aos bocadinhos finalmente se conhece em versão completa, é uma decisão corajosa e, embora se estranhe num primeiro momento, torna-se após ponderada digestão um dos inequívocos grandes momentos televisivos de 2019. Não representa a morte de Rue, embora a protagonista apenas interaja com o seu pai enquanto é ignorada pela mãe e pela irmã, penso ser, isso sim, uma recaída ou eventual overdose.

Fecho com três estrofes de “Lisbon Revisited” (1926), que Fernando Pessoa publicou como Álvaro de Campos e que captam muito melhor do que qualquer coisa que possa escrever o coração de “Euphoria”:

“Nada me prende a nada.
Quero cinquenta coisas ao mesmo tempo.
Anseio com uma angústia de fome de carne
O que não sei que seja –
Definidamente pelo indefinido…
Durmo irrequieto, e vivo num sonhar irrequieto
De quem dorme irrequieto, metade a sonhar.

Fecharam-me todas as portas abstractas e necessárias.
Correram cortinas de todas as hipóteses que eu poderia ver na rua.
Não há na travessa achada número de porta que me deram.

Acordei para a mesma vida para que tinha adormecido.
Até os meus exércitos sonhados sofreram derrota.
Até os meus sonhos se sentiram falsos ao serem sonhados.
Até a vida só desejada me farta – até essa vida…”

TRAILER | “MINDHUNTER”

Também te rendeste perante “Euphoria”, a primeira série teen da história da HBO? O que achaste do desempenho de Zendaya?

Euphoria - Temporada 1

Name: Euphoria

Description: Um grupo de adolescentes num trajeto de autodescoberta e constante ansiedade navega entre experiências e excessos a nível de drogas, sexo e violência.

  • Miguel Pontares - 83
  • Maria João Bilro - 90
  • Catarina d'Oliveira - 85
86

CONCLUSÃO

O MELHOR – O papel de Zendaya digno de Emmy e a introdução de Hunter Schafer como atriz. “Euphoria” é uma droga que dura 8 episódios, uma espiral visualmente estonteante e tecnicamente ambiciosa que explora uma geração que é simultaneamente sinónimo de liberdade e claustrofobia. Melhor momento: Rue e Fezco separados por uma porta.

O PIOR – Por vezes a forma e os altos valores de produção mascaram a falta de substância. Ao apostar forte em ser guiada pelas suas personagens, a narrativa global perde um pouco. O subplot de Nate e Jules tem coisas muito boas, mas também tem elementos que não fazem muito sentido.

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