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Doclisboa 2023 | Motherland, a Crítica

Regressamos ao prolífico programa do Doclisboa, “Da Terra à Lua”, que no dia 28 de outubro nos proporcionou a visualização da obra “Motherland”, de Alexander Mihalkovich e Hanna Badziaka – um mergulho profundo e tenebroso na realidade das opressoras forças militares da Bielorrúsia. 

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É no confronto de realidades, e na não resignação face às mesmas, que a mudança pode nascer e ser potenciada. “Motherland” representa uma difícil e complexa realidade de opressão militar, envolta numa aura distópica reforçada através da banda sonora. Todavia, o seu gesto vai muito além da representação. Urge à mudança, e à mudança rápida.

E como uma imagem vale mais que mil palavras, e não obstante o facto de “Motherland” não ser a obra visualmente mais impactante que vimos nesta edição do Doclisboa 2023, o confronto com a brutalidade policial e militar na Bielorrússia merece ser testemunhado como cinema – não através de um livro, não como um artigo de jornal, mas antes transmitido através do poderoso veículo da imagem.

A obra de Alexander Mihalkovich e Hanna Badziaka, mais um destaque da secção plural “Da Terra à Lua”, cinema que intervém e ensina, explora a fundo as causas para a violenta intervenção das forças armadas da Bielorrúsia enquanto acompanha um conjunto de jovens que procuram fugir à recruta militar, um lugar tenebroso onde serão de certo vítimas de violência física e psicológica, quiçá até de homicídio e onde eventualmente a sua individualidade poderá ser suprimida de forma irrecuperável.

O filme pinta-nos um pavoroso retrato de uma cultura de homogeneização, de uma sociedade onde a individualidade parece um valor extraterrestre e onde a sombra do passado paira de forma asfixiante. Este é um documentário parcialmente dramatizado (com argumento escrito) mas não por isso menos impactante, poderoso ou real (apesar de por vezes estilizado para efeitos narrativos).




Aqui, a história dos jovens da Bielorrússia que procuram escapar do regime militar cruza-se com a árdua tarefa de Svetlana (e de outras mães): o seu filho foi encontrado enforcado durante a tropa e ela, tal como muitas outras mães, é incapaz de provar que este foi de facto um homicídio, causado pelas duras imposições da “dedovshchina“, uma prática herdada do regime soviético e que persiste nos dias de hoje, através da qual as forças armadas incentivam a violenta praxe de novos recrutas. Esta praxis continua a provocar humilhação, espancamentos, tortura, homicídios e suicídios, mas o tradicionalismo, o controlo da população por um regime autoritário e  a força geral do status quo impedem a mudança real.

Motherland (2023) documentário
Carregamos a dor de Svetlana para lá da sala de cinema |©Doclisboa

Para além de Svetlana, uma super-mãe determinada em conseguir justiça, o documentário segue várias outras figuras carismáticas, como por exemplo Nikita e o seu grupo de amigos (que no fim da obra são forçados a abandonar a sua ‘Pátria’ para não participar na invasão da Ucrânia). Nikita é um jovem que é recrutado para a tropa precisamente na altura em que o filme está a ser gravado e que passa pelo seu serviço militar ao longo deste processo de produção.

Desta forma, “Motherland” tem um infiltrado precioso que nos enquadra todos estes eventos e que nos explica, com detalhe, porque é que a dedovshchina persiste. E embora as conversas entre Nikita e o seu pai não tenham particular naturalidade, transmitem uma ideia muito clara: até o mais tradicional membro da sociedade pode mudar de ideias quando confrontado com a injustiça e terror.

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Estes pais não pedem sequer o final do regime militar ou do serviço obrigatório, apenas aclamam por dignidade – um valor humano essencial. “Motherland” denuncia vários comportamentos surreais – a extorsão legitimada dos recrutas por parte de veteranos, a ‘lavagem cerebral’ que cria homens violentos que mais tarde irão alimentar as forças policiais, a supressão de protestos da forma mais violenta.




“Motherland” filma uma realidade esmagadora neste seu retrato de uma nação em luto estrangulada por um estado militar. Inclusive, capta in loco impiedosos eventos ocorridos em 2020, quando as forças policiais suprimiram, com violência, manifestações contra a reeleição do presidente Alexander Lukashenko (das cinco eleições vencidas pelo presidente atual, no poder desde os anos 90, apenas uma é tida como livre pela monitorização internacional).

O FANTASMA DO REGIME SOVIÉTICO É PALPÁVEL NESTE DOCLISBOA 2023

Doclisboa 2023 | Da Terra à Lua
©Lightdox

Na Bielorrússia vigora um aterrador neonacionalismo, sendo a vitória soviética na Segunda Guerra Mundial celebrada, ao após ano, como anacrónico elemento utilizado para fomentar a colectividade e o espírito de união na nação. “Motherland” é portanto um título justo e apropriado para este retrato de Alexander Mihalkovich e Hanna Badziaka. Presta homenagem às mães que perderam os seus filhos e critica, em simultâneo, a construção errónea da noção de pátria que aqui se opera.

Esta estranha fixação pelo passado impede a Bielorrússia de seguir em frente e forjar uma identidade atual, própria e plural (67 anos depois do “D Day”, vemos uma parada fenomenal nas ruas, a qual nos parece quase uma paródia, não fosse a atmosfera tensa e opressiva tão real).

Svetlana faz de tudo para defender a memória do seu filho Sasha e procurar justiça, mas ao regime não convém a investigação destas mortes e por isso não há por onde continuar a lutar. Impõem-se muitas questões: Quanto vale o sentido de nação?  Que pátria é esta, onde a vida humana vale tão pouco? Que soluções se impõe para subverter tais padrões?

A herança da era soviética paira nesta sociedade cinzenta, onde os mais jovens procuram desesperadamente escapar, afirmar-se, não ser engolidos por um sistema congelado no tempo.

“Motherland” é por isso parcialmente uma narrativa de fantasmas, e uma de luto pela vida que a juventude não poderá ter na Bielorrússia dos dias de hoje. Mais que uma mera expressão de descontentamento, este filme apresenta-se como uma denúncia forte e amargurada (mas também necessária).

TRAILER | MOTHERLAND NO DOCLISBOA 2023

Motherland, em análise
Motherland Doclisboa

Movie title: Motherland

Movie description: Motherland destaca as causas e consequências da tradição com décadas de intimidação violenta e tortura como forma de controlar os recrutas bielorrussos. Svetlana vive com esta realidade traumática: o filho foi encontrado enforcado.

Date published: 31 de October de 2023

Country: Suécia, Ucrânia, Noruega

Duration: 96'

Author: Alexander Mihalkovich, Hanna Badziaka

Director(s): Alexander Mihalkovich, Hanna Badziaka

Genre: Documentário

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  • Maggie Silva - 85
85

CONCLUSÃO

Alexander Mihalkovich e Hanna Badziaka examinam a fundo as causas para a violência militar e para a prática da desumana “dedovshchina” junto das recrutas da tropa na Bielorrússia. Espelho de uma opressão do regime soviético que teima em não desaparecer e de um país que procura a modernização e atualização de valores a todo o custo (sem que tal lhes seja possível).

Pros

A apresentação de várias histórias pessoais interligadas e a representação tanto da dor pessoal das mães como da sentida por uma juventude amaldiçoada.

Uma visão privilegiada no que diz respeito a sociedade altamente militarizadas que nos permite alcançar compreensão e empatia.

Cons

Visualmente, “Motherland” consegue ser por vezes banal e contemplativo e deslumbrante por outras.

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