Thierno Souleymane Diallo como sujeito do seu "The Cemetery of Cinema" |©Doclisboa

Doclisboa 2023 | The Cemetery of Cinema, a Crítica

Vimos “The Cemetery of Cinema”, do cineasta guineense Thierno Souleymane Diallo  aquando da sua segunda exibição no Doclisboa 2023, a 27 de outubro e na nobre Sala Manoel de Oliveira. Sem conhecimento prévio, ficou o deslumbre com este estudo metódico acerca de um povo e da sua relação com o cinema. 

É esta a magia dos festivais de cinema – o confronto com novas realidades, com cenários urgentes que nos são desconhecidos, com cultura-viva que ficará para sempre gravada na memória do cinema (ou nem sempre, como “The Cemetery of Cinema” narra). O Doclisboa tem sido particularmente hábil neste seu gesto, o de nos confrontar com diversas geografias, com temáticas fraturantes e com a problematização do mundo global onde vivemos.

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Como parte da secção “Terra à Lua”, onde a vida e a arte se encontram, “The Cemetery of Cinema” é uma obra deslumbrante e inventiva acerca de apagamento, não representação e sobre a paixão pura pelo cinema. Essa paixão, da qual a população da Guiné se viu progressivamente privada por via de um governo totalitário e táticas neocolonialistas.

The Cemetery of Cinema (2023)
O realizador procura o filme perdido pelas ruas de Paris |©Dean Medias

Nesta longa-metragem, tudo começa com o gesto de curiosidade do autor Thierno Souleymane Diallo, que parte do particular para o geral, da sua experiência pessoal com a arte do cinema, até chegar a uma representação que inclui o povo da Guiné, a relação do mesmo com a 7ª arte, as políticas de repressão que esmagaram a continuidade desta arte neste país africano ou, mais para o fim, o risco de extinção (muito real) da experiência de sala, colectiva, que torna um filme em cinema.

Vale a pena mencionar que nas pequenas povoações da Guiné visitadas pelo realizador já não há salas de cinema, mas ao visitar França, no final da obra, constata que a estrutura de exibição também lá perdeu já grande parte da vivacidade e que a luta contra o esquecimento da sala de cinema também se trava na cinéfila Paris.


Thierno Souleymane Diallo cria um panorama e uma homenagem ao cinema com vastidão e peculiaridade. Fá-lo a partir de um ponto de partida muito concreto, e a partir daí tira conclusões genuínas e impressionantes (por vezes sentimos que os documentaristas partem para o ‘campo’ já com as suas teses provadas, mas em “The Cemetery of Cinema” sentimos a presença de um gesto mais puro e inquisitivo).

A cultura abomina o vazio.

Citação encontrada por Thierno Souleymane Diallo num cinema comunitário em Paris.

O ponto de origem é dissimuladamente simples (mas vai-se revelando progressivamente complexo): Em 1953, Mamadou Touré realizou “Mouramani”, considerado pela história do cinema como o ‘primeiro filme de um realizador francófono negro’ e como o 1º filme guineense. E embora os estudantes de cinema da Guiné, e os estudiosos e profissionais da área conheçam este título, parece ser impossível encontrar alguém que tenha visto o filme ou saiba onde se pode encontrar uma cópia.

Este primeiro filme parece mais um mito que uma obra completa, uma miragem. Trata da lenda de um rei? Aborda a islamização de um povo? A relação entre um mestre e um cão? Ninguém sabe. A única certeza é a contradição da informação. Será que este filme existiu? Será uma mera ideia? Sem registo, a existência torna-se uma mera sugestão.

 

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A partir daqui, e em busca deste filme perdido sem rasto, Thierno Souleymane Diallo estabelece uma apaixonada retrospectiva da história do cinema na Guiné. O seu cinema é político, seguro, arrojado, algo mordaz e extremamente intervencionista. O cineasta reflete de forma confiante acerca do poder comunal do cinema, com várias pérolas ao longo da obra, como por exemplo as recordações de um cinema físico há muito fechado, filmando as suas fitas decompostas e ouvindo as narrativas de quem em tempos havia tido tanto prazer em partilhar cinema.

Com “The Cemetery of Cinema” (que estreou este ano na Berlinale), o realizador reergue a arte do cinema perante estas comunidades. Inclusive, acaba a obra com um gesto belo e sincero – o de recriar o filme perdido, “Mouramani”, devolvendo esta história e este pedaço de memória coletiva ao seu povo (assim perdida e restituída).

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Souleymane Diallo não é apenas o realizador desta obra, é também o sujeito fílmico e um que se pauta pela sua resiliência. A sua câmara observa o povo, e ele é também por sua vez observado. Tudo isto é cinema no seu estado mais puro e as próprias comunidades locais guineenses envolvem-se de forma muito aberta e criam sentido neste processo. Aliás, é genuinamente tocante assistir à reação de uma comunidade ao ver-se retratada na tela de cinema.

Este sítio era especial e foi tudo deitado fora, destruído.

Lamenta o funcionário do antigo arquivo nacional. 

“The Cemetery of Cinema” reforça também a importância do arquivo, perante a devastadora destruição intencional do arquivo do cinema da Guiné. Com muita dificuldade, o realizador tenta preencher os muitos espaços na história dispersa da 7ª arte neste país. Todavia, entre películas sem preservação e o sistémico apagamento e destruição dos registos nacionais, Souleymane Diallo acaba por se deparar com frustração e mais frustração. A sua busca leva-o até França, depois de lhe ser dito que a cultura de arquivo é aí mais valorizada. As conclusões deixam-nos desgovernados.

Não temos cultura de arquivo.

Diz um antigo censor do partido único pós-independência. Não têm ou não convém ter? O filme deixa-nos tirar as próprias conclusões.

Embora haja muita esperança nesta obra (p.ex, representada através de uma escola de cinema sem câmaras mas como paixão e interesse abundantes), também existe um sentimento de mágoa e quase de luto que paira no ar – das salas de cinema aos registos fílmicos.

Narra-se a história trágica de um regime totalitário que ‘apagou’ o cinema, que colocou cineastas na prisão e que amordaçou os seus próprios artistas. É palpável a melancolia sentida por todos os filmes da Guiné que poderiam ter vindo a existir e que para sempre ficaram fechados na escuridão. Destaque em particular para a temível recriação de uma prisão da Guiné com recurso a miniaturas e à posterior encenação teatral de argumentos nunca filmados, a qual ilustra uma força de engenho grandiosa.

Estes e muitos outros atos mostram a força da não-conformidade e a recusa em aceitar a ideia de um ‘local sem cinema’. Há muitos filmes dentro deste “The Cemetery of Cinema”, sendo a sua linguagem rica e plural, metafórica e simbólica sem nunca doutrinar. Há também muita liberdade estilística e criativa.

Que a obra de Thierno Souleymane Diallo entre nos cânones do cinema da Guiné é o nosso desejo mais evidente depois desta experiência de sala tão rica.

TRAILER | THE CEMETERY OF CINEMA DOCLISBOA 2023 (PROGRAMA DA TERRA À LUA)

The Cemetery of Cinema, em análise
The Cemetery of Cinema (2023)

Movie title: The Cemetery of Cinema

Movie description: Diallo parte com a sua câmara em busca do nascimento do cinema na Guiné. Encantador e determinado, traça o património e a história do cinema do seu país e revela a importância dos arquivos cinematográficos.

Date published: 31 de October de 2023

Country: França, Senegal, Guiné, Emirados Árabes Unidos

Duration: 93'

Author: Thierno Souleymane Diallo

Director(s): Thierno Souleymane Diallo

Actor(s): Thierno Souleymane Diallo

Genre: Documentário

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  • Maggie Silva - 90
90

CONCLUSÃO

Sem nunca reduzir a sua índole criativa e livre, Thierno Souleymane Diallo é capaz de, com “The Cemetery of Cinema”, propor uma obra com forte valor pedagógico e pertinência – para guineenses, para amantes de cinema, ou para qualquer outra pessoa que descubra o mundo aqui representado.

Com geografias múltiplas (África, Europa) e várias povoações da Guiné representadas, o filme é capaz de ser meta-cinema reflexivo de qualidade ao mesmo tempo que serve como registo de um grupo de indivíduos.

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