Doclisboa 2023 | The River e Wild River, a fúria do Rio Mississipi
Em projeção única na Cinemateca Portuguesa, no âmbito do ciclo Documentário em Marcha, “The River” e “Wild River” afirmam-se como uma parelha livre e curiosa neste Doclisboa 2023. Um documentário fundador nos EUA e uma obra de ficção dialogam entre si.
A 24 de outubro, o Doclisboa 2023 e a Cinemateca Portuguesa continuaram a sua riquíssima retrospectiva “Documentário em Marcha: Conturbados Anos 30 Na América do New Deal”, um olhar crítico e detalhado que reflete um período fulcral para o desenvolvimento da arte do documentário nos EUA (que aqui se munia de obras socialmente conscientes, reflexo do período da Grande Depressão).
Como mencionado na apresentação da sessão, o programa “Documentário em Marcha” procura estabelecer uma ‘conversa entre filmes’. Aqui, junta-se um documentário fulcral e uma ficção que refletem o mesmo tema – a fúria do Rio Mississipi e a sua gigante cheia de 1927. Ambas as obras ilustram a natureza sacrificada em prol do desenvolvimento tecnológico, ambas pintam o retrato de uma América esquecida, e dos Estados Unidos no seu mais período mais devastador do século XX – entre as duas Grandes Guerras.
“The River” (Pare Lorentz), de 1938, tem alegadamente o direito a reclamar o título de “documentário mais visto de sempre”. Difícil estabelecer tal noção ou medi-la, mas esta é sem dúvida uma obra valorosa, não tivesse conquistado o título de Melhor Documentário em Veneza nesse mesmo ano (particularmente importante tendo em conta o regime fascista em vigor na Itália desses anos).
Ainda mais notável e invulgar, o seu argumento foi nomeado a um prémio Pulitzer, tal é o inegável carácter lírico e poderoso das suas palavras. O autor James Joyce, aliás, descreveu esta narração reflexiva como: “a mais bela prosa que havia ouvido em anos”.
A boa notícia para quem não esteve na sessão é que a obra se encontra disponibilizada online, de forma legal, pela Franklin D. Roosevelt Presidential Library and Museum:
Um verdadeiro épico, “The River” foi filmado em dezenas de estados e apresentado na Cinemateca como um “documentário musical”. Esta obra essencial para a definição do cinema documental nos Estados Unidos da América apresenta uma narração off poderosa (a tal nomeada ao Pulitzer) e representa astutamente o Rio Mississipi como uma testemunha da forte transformação social no curso das décadas retratadas.
A sua exibição em película, e na Cinemateca Portuguesa, sendo esta uma obra inédita no que diz respeito à distribuição comercial em Portugal (fora da televisão), surge como mais um esforço consciente de preservação da memória – por parte do Doclisboa 2023 e por parte do nosso grande Museu do Cinema.
WILD RIVER – O RETRATO DE UM PERÍODO DA HISTÓRIA NORTE-AMERICANA NO DOCLISBOA 2023
De Elia Kazan (“Um Eléctrico Chamado Desejo“, “A Leste do Paraíso”, e criador do famoso Actors Studio e impulsionador do seu método),”Wild River”, filme de ficção, foi incluído nas listas dos melhores de 1960 por órgãos como a National Board of Review dos EUA ou a afamada revista Cahiers du Cinéma (em 1962).
A sua exibição coaduna-se perfeitamente com esta sessão, não fosse Kazan um realizador preocupado com a criação de longas-metragens capazes de refletir preocupação com temáticas sociais. Isto não obstante o facto do seu testemunho anti-comunista, na década de 50, e no decurso do chamado “Red Scare”, o qual lhe valeu um estatuto de perpétua recepção conflituosa por parte dos seus pares.
Ao fim de contas, Kazan foi delator de vários outros realizadores como comunistas no início dos anos 50 (perante o House Committee on Un-American Activities (HCUA) – Comité de Atividades Não-Americanas), tudo isto após o seu envolvimento com a experiência do documentário social nos EUA (profundamente alinhada à esquerda). Por isso, a inclusão de Kazan nesta sessão, e neste ciclo “Documentário em Marcha”, assume-se como uma ligeira provocação.
E não obstante a sua separação da experiência documental, o aclamado realizador Elia Kazan continuou a ter a preocupação de retratar situações críticas e socialmente relevantes. Aqui, com “Wild River” (em Portugal “Quando o Rio se Enfurece”), regressa aos Estados Unidos da década de 30, e à ‘Grande Depressão’ que marcou a sua juventude. Aqui, Montgomery Clift representa um trabalhador da Tennessee Valley Authority, recém criada, cuja missão é convencer uma senhora idosa a abandonar o seu terreno, localizado numa ilha que deverá ser em breve inundada para a construção de uma barragem que figura entre os planos do New Deal.
Com o progresso como valor orientador, o Chuck Glover de Montgomery Clift é um homem liberal que, confrontado com um sul racista e apegado a valores tradicionais, avesso à mudança, tenta convencer a octogenária Ella Garth (Jo Van Fleet) de que o único caminho em frente é dizer adeus às suas terras e comunidade construída ao longo de várias décadas.
O filme apresenta uma forte componente de denúncia social (Ella Garth merecia melhor, muito melhor do que aquilo que o governo e os seus pares lhe proporcionaram), ao mesmo tempo que é capaz de provocar profunda empatia através do seu retrato melancólico desta ilha fictícia e das suas gentes.
Em geral demasiado melodramático para os gostos e estéticas atuais, tentar apreciar “Wild River” terá de partir, portanto, de um olhar não anacrónico e capaz de o situar dentro dos códigos estilísticos da época (pois agora, muitas das suas cenas seriam menosprezadas como ‘lamechas’, claro está).
Não obstante, “Wild River” tem valências como cápsula de memória de uma época particularmente devastadora, e como longa-metragem capaz de nos apresentar modelos de masculinidade distintos (expressos na figura não estereotipada de Chuck). Além disso, apresenta-nos também alguns binómios interessantes, como por exemplo selvagem vs civilizado, ruralidade vs mentalidade citadina. Nestes jogos de comparação, nunca se torna demasiado redutor na resposta para questões francamente complexas e consegue apresentar as suas problemáticas com empatia e graça.
Em Ella Garth vemos, sem subtiliza mas com beleza notória, a personificação da natureza indomável do rio. Ela é tanto o “Wild River” do título como o próprio Mississipi. E não obstante a estrela brilhante de Montgomery Clift e Lee Remick, o fotogénico casal central, a verdade é que Jo Van Fleet é quem nos fica verdadeiramente gravada na mente.
Já a beleza da paisagem, o esplendor e a fúria do rio, são evidentes, tal como em “The River”, criando um gesto de coesão evidente nesta programação.
O DocLisboa 2023 termina hoje, 29 de outubro, e continua com sessões de vencedores no Cinema Ideal até ao dia 1 de novembro (terça-feira).