"Aurora's Sunrise" (2022)| ©ARTBOX/ Bars Media

Doclisboa ’22 | Aurora’s Sunrise, em análise

“Aurora’s Sunrise” (2022), da autoria de Inna Sahakyan, uma co-produção entre a Alemanha, Armênia e Lituânia, transporta consigo um relato possante sobre a extraordinária história esquecida de uma sobrevivente do genocídio arménio no decurso da Primeira Grande Guerra. Com a realizadora presente na Sala Manoel de Oliveira, a secção “Da Terra à Lua” da 20ª edição do Doclisboa deu palco a este relato tremendo. 

Aurora Mardiganian, de nome assim americanizado para mais fácil assimilação por parte do povo ocidental que contactou com a sua história, ou antes Arshaluys, foi uma autora e atriz arménia, naturalizada norte-americana, que sobreviveu ao terrível genocídio infligido sobre o seu povo há mais de 100 anos, o qual levou à morte estimada de perto de 1 milhão de inocentes.

Por força da sorte (e também da coragem), aliás, por ação de uma combinação dos dois, como esta docuficção deixa transparecer, Aurora (ou Arshaluys, o seu nome arménio) conseguiu sobreviver ao terror do Genocídio Arménio, tendo perdido praticamente toda a sua numerosa família neste processo. A sua odisseia fez-se longa, laboriosa, angustiante e verdadeiramente inacreditável. O que torna o caráter documental, e o facto da realizadora Inna Sahakyan se ter mantido bastante fiel aos relatos de Arshaluys, ainda mais extraordinário.

“Aurora’s Sunrise” é um filme capaz de honrar a história particular e coletiva de igual forma, servindo como pesadíssimo memorando que pretende alertar aqueles que, no presente, perpetuam a tentativa de repetição e apagamento do passado. Hoje em dia, a Turquia continua a não reconhecer o facto histórico do tenebroso Genocídio Arménio e, por isso, a realizadora, que combina nesta obra imagem real e animação, não deixa de incluir pontualmente imagens reais, muito gráficas e difíceis de aceitar daquilo que foi o massacre do seu povo há um século. O seu intuito não é chocar, mas antes recordar e evidenciar.

Aurora Mardiganian
Foto da jovem Aurora Mardiganian na vida real |©ARTBOX/ Bars Media

Do ponto de vista formal, “Aurora’s Sunrise” é um banquete para os sentidos, ao enquadrar os eventos do filme através de três tipos de representações imagéticas inteiramente distintas, mas que a realização e montagem conseguem justapor na perfeição. Por um lado, vemos trechos de duas entrevistas de arquivo com uma Arshaluys já idosa (esta heroína esquecida morreu em 1994), altamente detalhadas e as quais foram a principal fonte para o recontar da sua história pessoa, por outro vemos partes de “Auction of Souls” (1919), um filme norte-americano que Arshaluys/Aurora protagonizou, acerca da sua própria experiência de fuga do então Império Otomano para os Estados Unidos da América.

Por fim, “Aurora’s Sunrise” brinda-nos ainda com uma porção bastante significativa de animação digital. A animação é fluída, altamente expressiva, destacando-se a sua verosimilhança e beleza. Quanto aos momentos mais dolorosos deste documentário, fazem-se representar precisamente através da imagem animada. Aqui, as cores e símbolos visuais, embora não muito subtis, são para lá de marcantes.

No início da obra, a vida da jovem Aurora, de apenas 14 anos, é-nos apresentada como perto de idílica. A sua bela e colossal mansão alberga uma família de 8, onde os risos e as peças de teatro abundam e onde a inocência é preservada e simbolizada pela exploração de algodão do seu pai. À medida que os turcos invadem a região, o sangue vai-se apoderando de tudo, manchando esta construção idealizada e criando devastadoras imagens.

Os eventos desta longa-metragem são muito delicados e, verdade seja dita, a animação parece ser a única maneira de conseguirmos suportar o terror coletivo que nos é apresentado. Isso e, claro, não há documentos históricos em formato vídeo que retratem o que aconteceu. Por isso, o cinema de Inna Sahakyan é ainda mais urgente por atribuir novo enquadramento e representação a estes eventos.

A animação é, aliás, uma das mais hábeis ferramentas para este tipo de representação. Vimo-lo em obras notáveis nossas contemporâneas como “A Imagem que Falta” (2013, acerca do Genocídio no Cambodja dos anos 70) ou ainda mais recentemente em “Flee – a Fuga” (2021, a extraordinária história de um refugiado afegão). “Aurora’s Sunrise” confere à imagem este mesmo poder quase inabalável, de dar corpo à ausência.

Na sessão de perguntas e respostas, a realizadora referiu que foi muito fácil oscilar entre as imagens de “Auction of Souls”, as entrevistas a Aurora e ainda a imagem animada. Mas, na realidade, não há nada de simples no equilíbrio que aqui é conseguido no grande ecrã.

Arshaluysi lusabacy doclisboa da terra à lua Aurora's Sunrise
©ARTBOX/ Bars Media

Para além de ser uma obra altamente emotiva, “Aurora’s Sunrise” é uma jornada com um foco claro. A obra documental acompanha cinco anos na vida de Aurora Mardiganian, do momento em que perde tudo, no início da adolescência, até ao verdadeiro início da sua vida em Nova Iorque.

Depois de enfrentar provações quase inconcebíveis e de escapar até à escravatura sexual, Aurora consegue, com ajuda de um tio que sobrevivera ao genocídio, fugir para Nova Iorque. Enquanto refugiada “exótica”, jovem e bela, Aurora torna-se depressa o centro das atenções, ao ponto de ter sido escrita uma biografia sobre as suas experiências: “Ravished Armenia; the Story of Aurora Mardiganian, the Christian Girl, Who Survived the Great Massacres“.

Já em 1919, essa mesma biografia foi adaptada ao grande ecrã e, contra todas as expectativas, Aurora foi selecionada como a protagonista da obra, revivendo assim de novo os seus horrores, desta vez dentro de um estúdio de Hollywood. O filme mudo, “Auctions of Souls”, foi um gigante sucesso de vendas na altura, mas bizarria das bizarrias, todas as suas cópias desapareceram, e apenas 18 minutos da totalidade da longa foram recuperados, já depois de Aurora falecer, aos 93 anos, na obscuridade.

Em 2022, com este “Aurora’s Sunrise”, os 18 minutos da obra de Hollywood são restaurados e usados para servir de suporte ao próprio testemunho de Aurora. Tal é a capacidade do trabalho de montagem do filme que, por vezes, sentimos que Aurora se faz presente na sala, tal como os seus horrores.

O filme “Aurora’s Sunrise” acompanha uma janela temporal de cinco anos na vida de Aurora, como referimos, do momento em que a sua família foi obrigada a abandonar o lar, passando pela sua consolidação enquanto grande figura de caridade. Nos EUA à porta dos loucos anos 20, Aurora tornou-se o símbolo do sofrimento arménio, apelidada até como “Joan of Arc” da Arménia, levando a cabo uma enorme campanha publicitária que tinha como propósito a consciencialização e angariação de fundos para a defesa do seu povo.

Da Terra à Lua doclisboa 22 Aurora's Sunrise
©ARTBOX/ Bars Media

Este documentário é mais forte quando ilustra as provações de Aurora em território otomano, todavia, toda a parte subsequente, nos Estados Unidos, é também importante.

Da exploração e sensacionalismo de que é vítima na indústria de Hollywood, até à sua busca infrutífera pelo irmão, a parte mais relevante da reta final de “Aurora’s Sunrise” prende-se com a apresentação do caráter desta sobrevivente – ao protagonizar “Auction of Souls” e levar a cabo esta tour promocional, Aurora foi forçada a reviver, uma e outra vez, os horrores que desejava esquecer.

O trauma permanentemente recuperado assim o era com um intuito claro, difundir a sua mensagem e ajudar a salvar vidas. É esta a importante mensagem de humanismo que o filme de Inna Sahakyan transmite na perfeição, numa considerável co-produção europeia e primeiro documentário animado da Arménia.

Esta história de sobrevivência esquecida é recuperada com enorme fulgor e apresenta-se como a candidatura da Arménia para a categoria de Melhor Filme Internacional na próxima edição dos Óscares. Selecionada ou não, é uma narrativa que merece distribuição internacional em grande escala. 

TRAILER | AURORA’S SUNRISE NO DOCLISBOA 2022

Aurora's Sunrise, em análise
Aurora's Sunrise Poster Doclisboa 2022

Movie title: Aurora's Sunrise

Movie description: Com apenas 14 anos, Aurora perdeu tudo durante o horror do Genocídio Arménio. Mas, com sorte e uma coragem extraordinária, fugiu para Nova Iorque, onde a sua história se tornou num sucesso mediático. Fazendo de si mesma num dos primeiros êxitos de bilheteira de Hollywood em 1919, Auction of Souls, Aurora viria a tornar-se no rosto da maior campanha de caridade na história da América. Misturando animação, o testemunho de Aurora com uma idade avançada e 18 minutos de material redescoberto do seu épico mudo perdido, Arshaluysi lusabacy devolve a Aurora a sua inspiradora história esquecida.

Date published: 20 de October de 2022

Country: Alemanha, Armênia, Lituânia

Duration: 97'

Director(s): Inna Sahakyan

Genre: Documentário, Animação

[ More ]

  • Maggie Silva - 90
90

Conclusão

“Aurora’s Sunrise” é um lindíssimo tratado sobre trauma e uma poderosa lição de resiliência e história. A sua protagonista, esquecida pela memória coletiva, é aqui recapturada e trazida para o presente por força das potencialidades do cinema.

Pros

  • A bela e devastadora força da narrativa;
  • Uma notável capacidade de conciliar imagem real, um filme de Hollywood altamente estilizado e ainda um trabalho de animação irrepreensível;
  • O poder da memória encapsulado.

Cons

  • O ponto da narrativa em que terminamos surge como algo anticlimático, um pequeno senão no seio deste documentário animado tão nobre e emocionante.
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