Prazer, Camaradas! (2019) | © Uma Pedra no Sapato

Prazer, Camaradas! ,em Análise

O filme “Prazer, Camaradas!”, de José Filipe Costa, apresentado na competição portuguesa do DocLisboa ’19 e originalmente com estreia mundial nesse mesmo ano no Festival de Locarno, chega por fim a 20 de maio aos cinemas portugueses. Trata-se de uma produção da casa “Uma Pedra no Sapato”. 

Estamos em 1975, no pós 25 de abril. Eduarda, João e Mick viajam pela Europa, para trabalhar em cooperativas de herdades ocupadas em Portugal. Vêm a Portugal para ajudar com as atividades rurais, dar consultas médicas, mostrar filmes de educação sexual e participar em eventos populares. Trazem muitas questões, mas são recebidos com muitas outras por parte dos “camaradas do Sul”. Questões sobre família, mulheres e crianças, sobre convivência. Como narra a sinopse: “Venham daí! Vamos estranhar-nos, vamos desentender-nos de certeza, que tudo faz parte desta revolução-festa!“.

Esta obra foi criada por José Filipe Costa, realizador do afamado “Linha Vermelha”, de 2012, o qual saiu vencedor num outro festival português, o IndieLisboa. Recordamos que “Linha Vermelha” incidia sobre a infame ocupação de “Torre Bela” e, por isso, é identificável uma continuidade temática.

“Prazer, Camaradas!” é um filme documentário, para efeitos práticos, tendo-se integrado portanto, e com lógica, na programação do DocLisboa ’19. Contudo, é notório e inevitável sublinhar que o seu formato é bem distinto daquilo a que estamos habituados tanto neste festival, como no próprio género em que se insere. Isto porque a longa é tanto documental como um objeto de ficção. É um objeto fabricado ao máximo, e que se identifica como tal. Uma dramatização de eventos reais que se passaram depois do 25 de abril, e que são aqui recuperados mais de 30 anos depois. Os intervenientes apresentam-se e pedem-nos desde logo, indiretamente, para suspendermos a nossa crença no real. São na sua grande maioria idosos, mas apresentam-se como jovens, na sua maioria na casa dos 20. Estão assim a recuperar um tempo em que tinham de facto essa idade.

E se o tempo voltasse atrás…

Doclisboa '19 Prazer, Camaradas!
Prazer, Camaradas! | © Uma Pedra no Sapato

O que é mais curioso neste filme é que a narrativa pede, ou antes, suplica, que o tempo ande para trás. Não sendo isso possível, o realizador José Filipe Costa não se cingiu a um formato convencional de entrevista. Em declarações à agência Lusa, avançou que “Mais do que fazer entrevistas a estas pessoas ou elas contarem as histórias como se estivessem no passado, a ideia era elas, tendo a idade que têm, começarem por dizer ao espectador que têm 20 e tal anos, que estão a viver novamente o 25 de Abril”. Ou seja, os intervenientes que neste filme recuperam o passado falam sempre no presente. Assim, estes protagonistas estão a “dramatizar a memória, que está sempre em transformação e surge com as histórias e só assim as pessoas podiam dar vida às histórias, interagir”.

As histórias do filme, narradas como se passadas no presente, como se 1975 tivesse regressado, foram recuperadas de relatos das vivências nas cooperativas que se multiplicaram no pós-revolução. Aqui, uma realidade que muitos provavelmente desconheciam: o fascínio dos estrangeiros; muitos se mudaram para Portugal para compreender como era viver uma “revolução na Europa”, como é apelidada no filme. Chocavam frequentemente com os locais, devido a visões dispares, especialmente no que diz respeito a ideologia de género e relações entre homens e mulheres.

De acordo com o realizador, o filme tentou não se focar demasiado numa única comunidade, recuperando testemunho de espaços múltiplos como: Quinta da Ameixoeira, Quinta da Marquesa, Comuna de Aveiras, Torre Bela.

Os três novos pilares: Alfabetização, Educação e Educação Sexual 

Doclisboa '19 Prazer Camaradas
Prazer, Camaradas! | © Uma Pedra no Sapato

Estes viajantes, que protagonizam a obra, trazem com eles mais do que uma sede de conhecimento por novas realidades empolgantes. Não, trazem também uma agenda, a de modernizar um país que tinha sido deixado para trás. Aqui se fala, abertamente, da necessidade de educar a população das associações na Azambuja. E quem diz Azambuja, diz o resto de Portugal. Como é dito no filme: “A Educação permanente faz-se nas ruas (…) não a partir de um gabinete em Lisboa”.

Para além do sonho da educação, formação e clarificação das populações, “Prazer, Camaradas!”, em estreia nacional no DocLisboa ’19 (e agora finalmente nos cinemas) apresenta-nos também o sonho comunista do proletariado e povo camponês. O sonho que se vê escrito em todo o lado, nas paredes por toda a parte – “isto é do povo”. O realizador da obra, José Filipe Costa, fixou o seu interesse num período histórico vivo, fervilhante, repleto de mutações constantes. Aqui, o sonho é visto em retrospectiva, mas ao seu encarnado no presente, sentimo-nos mais perto do mesmo. Muito poucas imagens de arquivo são mostradas, apenas no fim, mas é indiferente, pois a certa altura habituamo-nos à estrutura bastante dispare que nos é apresentada.

A música eleva-se acima de tudo, e narra-nos o sentimento pleno de pertença, no qual os camponeses cantam: “Aqui não me sinto só”. Seguimos um role de tarefas domésticas, tarefas da cooperativa, as tarefas dos homens e as tarefas da mulher, bem como os processos de educação deste grupo. Por vezes, estes atos tornam-se um pouco enfadonhos, talvez por sabermos que estão a ser encenados.

Libertação sexual e os anos 70 em “Prazer, Camaradas!”  – “A excitação é socialmente reprimida” 

Prazer, Camaradas! Doclisboa '19
Prazer, Camaradas! | © Uma Pedra no Sapato

Os anos 70 foram um tempo importante, numa perspetiva e esfera mais global, no que diz respeito a lógicas como a de emancipação sexual ou uso de drogas recreativas. Portugal tem uma história bem diferente de muitos dos países do mundo ocidental, mas essa parte, devido à transformação operada, não deixa de se aplicar igualmente. Como nos indica o título “Prazer, Camaradas!”, o filme é muito sobre esta descoberta..a de que não deve ser tabu falar abertamente sobre sexualidade. É talvez esta a temática mais forte, e mais recorrente do filme. É também operado um “twist” interessante, por vermos estes jovens numa idade idosa, a desempenharem o papel de jovens, e a comportarem-se como tal. Resultante é que acabamos com um filme que mais uma vez escapa à norma por outra razão: mostra muito jogo do engate entre pessoas mais velhas, algo incomum, algo que pouco costuma agradar à câmara.

 Prazer Camaradas
Prazer, Camaradas! | © Uma Pedra no Sapato

Este é um filme sobre papéis femininos e masculinos, sobre mudança, sobre o sinal dos tempos e a mudança de mentalidades, por vezes um pouco empurrada por estrangeiros com visões de mundo distintas. Ocasionalmente, esta lógica de idosos a representarem as suas versões na casa dos 20 torna-se um pouco bizarra, especialmente no que à sexualidade diz respeito. Digamos que ver dois idosos envolvidos em atividades que antecedem o sexo, enquanto ela diz: “Tenho medo, e se a minha mãe dá por isto” é bastante atípico, e digamos que quebra completamente a ilusão ténue que aqui é estabelecida. Contudo, parece ser um choque intencional, que acaba por conferir um certo tom humorístico à obra, apesar de este ser um humor um tanto perverso. Ainda assim, o pedido de suspensão de crença no real palpável torna-se por vezes caricatural, algo que tanto joga a favor do filme como o prejudica.

Sobre educação sexual, mas também sobre o poder do sexo como forma de controlo social, através da repressão sexual, também aqui apresentada com recurso a algum humor, que traz à baila expressões inesperadas como a “liberdade de movimento pélvico”.

O filme sabe bem em que década se passa, e age de acordo com essa consciência. O tipo de imagem, filmagem, banda-sonora muda constantemente e de forma inesperada. A imagética nunca se torna monótona. A certa altura, os hinos comunistas são t3ambém eles substituídos por uma frenética banda-sonora electrónica. O resultado é algo bizarro, mas não desprovido de interesse estético.

Assim é “Prazer, Camaradas!”, uma dramatização fora da norma, num documentário atípico, que competiu no Doclisboa ’19 na Competição Nacional e que chega, a 20 de maio de 2021 às salas comerciais. 

Prazer, Camaradas!
Prazer, Camaradas! poster

Movie title: Prazer, Camaradas!

Date published: 21 de October de 2019

Director(s): José Filipe Costa

Genre: Documentário , 2019

  • Maggie Silva - 70
70

CONCLUSÃO

Um documentário distinto dos demais, que recusa a entrevista ou a imagem de arquivo, procurando uma abordagem alternativa a um período significativo da história nacional

O MELHOR: O carácter arriscado e ousado, que advém da estrutura invulgar de dramatização da obra.

O PIOR: Por vezes, a dramatização pede demasiado da criatividade e capacidade de aceitação do espectador

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