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79º Festival de Veneza (2) | A ‘Tár’ de Blanchett e ‘Bardo’, à procura da identidade

Foi o regresso à competição de dois cineastas muito bem visto por aqui: Alejandro G. Iñárritu com ‘BARDO, falsa crónica de unas cuantas verdades’ e Todd Field com ‘Tár’, com Cate Blanchett, com uma interpretação do outro mundo e já no caminho dos Oscars.

Ao segundo dia Veneza 79 parece ter uma certa inclinação para a problemática feminina, muitas vezes amargamente conflituosa, que emerge nas várias secções. Porém vou-me centrar apenas nas obras da competição principal: em primeiro lugar na maestrina Lydia Tár, interpretada por Cate Blanchett, no filme de Todd Field, um filme feito à medida da actriz e que lhe é dedicado, pelo próprio realizador. Blanchett, encarna uma combinação de várias figuras femininas, pioneiras dessa profissão da música, que só recentemente se abriu para as mulheres: Antonia Brico, Carmen Campori e Sarah Caldwell. No entanto, há também na competição, a figura de um homem, à beira de uma crise de identidade e envelhecimento, no conturbado jornalista e documentarista (Daniel Giménez Cacho) o protagonista de ‘BARDO, falsa crónica de unas cuantas verdades’, mais um filme da Netflix, uma espécie de auto-retrato do notável realizador mexicano Alejandro G. Iñárritu.

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Negando essa ideia de que primeiro as senhoras, começo precisamente por este importante regresso (diria mesmo reaparecimento) de Alejandro González Iñárritu, à ribalta — há seis anos que não via-mos nada dele — ao Festival de Veneza: esteve várias vezes aqui no passado com o filme coletivo sobre o 11 de setembro de 2001 (2002), falei com ele aliás a propósito de ’21 Gramas’ (2003) e depois o muito bem sucedido ‘Birdman ou (A Inesperada Virtude da Vingança), que iniciou a sua jornada vencedora no Lido, em 2015 e depois ganhou quatro Oscars. Para este novo ‘BARDO, falsa crónica de unas cuantas verdades’, o realizador mexicano optou, por voltar a filmar na sua cidade natal, a Ciudad de Mexico, que ele filma fabulosamente, com muita ternura e nostalgia, depois da sua carreira ter seguido nos EUA. Já não o fazia aliás, desde o fabuloso ‘Amor Cão’ (2000). E por isso, talvez inspirando-se igualmente em Alfonso Cuarón e em ‘Roma’ — em 2018 ganhou aqui o Leão de Ouro e três Oscars na temporada seguinte — filmado no antigo Distrito Federal, Iñárritu fez o mesmo e chamou para trabalhar consigo neste seu novo filme, parte da equipa do seu amigo; e além disso, trouxe mais o cenógrafo Eugenio Caballero (um Oscar por ‘Labirinto do Fauno’, de Guillermo del Toro) para invadir o centro da cidade, com muita fantasia: meninas de cabelos verdes ou alaranjados, capacetes e funcionários engravatados, do Castillo de Chapultepec ao El Zocalo.

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O extraordinário actor espanhol Daniel Giménez Cacho — naturalizado mexicano, vimo-lo tanto em ‘Zama’, de Lucrecia Martel, como em ‘Má Educação’, de Pedro Almodóvar — é o protagonista desta história de um conhecido jornalista e documentarista mexicano que regressa à sua terra natal, para enfrentar uma crise existencial, esclarecer dúvidas sobre sua identidade e as suas relações familiares. Silvano (Cacho) vive entre memórias confusas do passado e um país que lhe oferece, uma realidade completamente nova depois de viver durante 20 anos em Los Angeles, EUA. Trata-se de uma jornada de alguma forma ‘épica’, mas que pode revelar muito sobre o cineasta e a sua própria vida — tem muito de autobiográfico já que o realizador tem vivido uma boa parte da sua vida e carreira no EUA — e trabalha neste filme, há quase cinco anos. Mas não só: o título ‘BARDO’ (traduzindo Limbo) e sub-titulo, ‘falsa crónica de uma quantas verdades’, sugere logo um narrativa em camadas e baseada na realidade, mesmo que o faça num tom de comédia nostálgica e existencialista, sobre um tipo de meia-idade: 59 anos é a idade do realizador e ele próprio, perdeu um filho, morto dois dias após o nascimento. Ao próprio Alberto Barbera, Alejandro González Iñárritu já tinha confidenciado que mudou sua maneira de olhar para a vida e sonhar, depois de começar a trabalhar neste que será seguramente segundo ele, ‘o seu filme mais pessoal, no qual investiu tudo de si, nas suas obsessões, sonhos e pesadelos’. Porém temos que ter sempre em conta que os sonhos, tal como o cinema são reais, mas nem sempre são verdadeiros. BARDO é efectivamente a crónica de uma viagem entre estas duas ilusões, cujas fronteiras (o limbo) são muitas vezes difíceis de definir e marcar (realidade, ficção, sonho, fantasia, cinema) até pela nossa própria experiência de vida.

VÊ TRAILER DE ‘TÁR’

‘Tár’, escrito e dirigido por Todd Field, é também um bom regresso dezesseis anos após o aclamado ‘Pecados Íntimos’, um retrato amargo da encruzilhada entre a vida de dois cônjuges pessoas infelizes de casamentos diferentes, um maníaco sexual e um ex-policial no subúrbio de Massachusetts. Esse filme, que passou por aqui, conseguiu três nomeações ao Oscar (ao realizador pelo argumento e a Kate Winslet e a Jackie Earle Haley, pelas suas interpretações). Também ‘Tár’ parece feito tanto à medida da sua actriz  principal, como preparado para a corrida aos Oscars: quase certa estará de certeza uma nomeação para Blanchett —tal é espantosa a sua interpretação — um reconhecimento que se somaria aos dois Oscars já conquistados com ‘O Aviador’ (2004) e ‘Blue Jasmine’ (2013), bem como cinco outras nomeações ao Oscar na sua brilhante carreira para ‘Elizabeth’, ‘Diário de um Escândalo’, ‘I am not Here’, ‘A Idade de Ouro’ e ‘Carol’.

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Sobre ‘Tár’ começo aliás com as palavras da actriz: ‘Acabei de trabalhar com o Todd Field e foi uma experiência fantástica, porque colaborar com ele é verdadeiramente excepcional’, disse a divina Cate Blanchett, logo após as filmagens realizadas, em Berlim e Dresden, sobre a suposta primeira mulher contratada, para reger uma das maiores orquestras alemãs. Porém apesar do tom realista, a personagem de Lydia Tár é inventada, não existiu na realidade. A história do filme pode ser resumida como uma espécie de ascensão e queda de uma mulher muito controversa, ambiciosa, sedutora e com um carácter muito difícil. É um filme muito interessante que aborda o processo criativo, jogos de bastidores, influência e poder, também ao nível artístico e ao nível da música clássica e erudita. A história encenada por Field trata ainda as dificuldades profissionais enfrentadas por Lydia Tár, em ver seus méritos reconhecidos, apesar de ser uma ‘cabra’, num ambiente dominado por homens, como o de uma grande orquestra de música clássica: a maestrina está sempre obrigada a demonstrar e a impor quase à força  as suas capacidades como musicóloga, mesmo com muitas mulheres na orquestra. Porém as coisas também não são fáceis para ela na vida privada, já que apaixona por dois ou duas das suas músicas e arranja complicações. Todd Field, que tem formação de actor, sabe como poucos realizadores, tirar o melhor dos seus intérpretes. Neste filme teve uma incrível disponibilidade, para dar espaço ao enorme talento de uma das maiores atrizes da actualidade, fazendo o papel de um músico(a), sem que nunca tivesse tocado qualquer instrumento na vida. Em ‘Tár’, a fabulosa Cate Blanchett, está bem rodeada por um elenco notável: Noémie Merlant, Nina Hoss, Julian Glover, Allan Corduner, Mark Strong e até a jovem Sophie Kauer, uma violoncelista londrina, selecionada entre algumas centenas de colegas músicos, faz uma brilhante estreia como atriz, num papel fundamental no filme.

JVM

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