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Festival Política | Sessão Maiores de 18, a crítica: curtas-metragens que exploram o corpo e a sua liberdade

Uma vez mais no Cinema São Jorge, a sala nobre dos festivais de cinema em Lisboa, aconteceu o Festival Política no arranque de abril. No último dia, 5 de abril, pelas 23h15, assistimos à Sessão Maiores de 18 – uma provocação que toca nas relações que estabelecemos com os nossos corpos e a sua representação. 

Na sala 3 do Cinema São Jorge, perante uma plateia jovem e bem composta, decorreu uma das sessões de curta-metragens do Festival Política em 2024. Ao todo, foram exibidos quatro filmes, todos eles extremamente sensíveis na sua abordagem de temáticas como direitos LGBTQIA+ e representação de traumas sexuais, solidão e relação entre o “eu” e o seu “corpo”.

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Sinceros e na sua maioria despojados de grande artefacto, os filmes selecionados muniram-se sem dúvida de coesão temática notória. Antes do arranque, tempo ainda para uma performance musical com componente audiovisual, centrada na temática da violência policial e também ela resultante de uma competição lançada pelo Festival Política. Com esta abertura invulgar, reforçou-se a complementaridade do evento, envolvido com a promoção da consciência cívica e ainda política dos mais jovens.

1 – WILL YOU COME WITH ME (DERYA DURMAZ, 2′, ALEMANHA)

Will You Come With Me Festival Política Sessão +18
©Derya Durmaz

Uma pequena história passada em Berlim. A cidade que aparenta ser um território de liberdade, dá uma bofetada na cara no momento das relações mais íntimas.

Uma curtíssima (escolhemos este termo precisamente porque já havíamos visto “Will You Come With Me” na sessão de super shorts da MONSTRA ’24) com invulgar pujança conta-nos um fragmento muito reduzido de uma história com o potencial de originar até uma longa-metragem. O interesse deste pequeno projeto prende-se com a sua capacidade de transmitir o seu argumento basilar em muito pouco tempo.

Visualmente, não se passa assim tanto no filme de Derya Durmaz para lá de uma animação digital muito rudimentar. Mas é na quebra de expectativas e na inesperada brutalidade que encontramos valor. O maior problema da obra, por outro lado? As palavras suplantam o poder da sua imagem de tal forma que, ao fim de contas, “Will You Come With Me” poderia ter sido uma escultura, um panfleto, uma carta, um postal, um poema ou qualquer outra peça artística. O cinema não é a sua forma inevitável e preferencial.

Classificação: 68/100




2 –  FRAGMENTS (MARIE-LOU BÉLAND, 9′ CANADÁ)

Vozes de mulheres levantam-se para testemunhar momentos de violência sexual. São fragmentos de experiências que traçam um retrato social.

Muito possivelmente (se não de certo) a obra com um cunho artístico e poético mais aguçado nesta sessão para maiores de 18 no âmbito do Festival Política 2024. Várias mulheres recuperam as suas histórias de abuso sexual e o seu trauma adjacente desde então. Ao arrancarmos, entre planos de árvores e parques, onde a sombra e escuridão reinam, sentimo-nos no reino do lugar-comum.

Todavia, à  medida que “Fragments” se desenrola, a imagem, além da narração, acresce algo mais ao paradigma. Os corpos das mulheres são expostos nus, filmados com o maior cuidado e respeito. Ninguém poderia, em bom juízo,  considerar que as suas figuras estariam a ser sexualmente exploradas, nem tão pouco afirmar fealdade ou neutralidade. Existe uma poética bastante intencional no exercício de mostrar o corpo que sofreu e superou, mas cujas feridas são bem visíveis. Existe luz além da escuridão inicial. E se tudo isto é bastante óbvio, não perde nunca o seu cunho espiritual e valioso.

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A criação de um mosaico de testemunhos não só recusa a objetivação como retira significado adicional da soma de todos os diálogos. Sim, esta é uma curta estudantil e as suas técnicas podem por vezes denunciá-lo. Ainda assim, o bom gosto eleva este “Fragments”.

Classificação: 78/100




3 –NADIE SE ENAMORA EN UN CINE PORNO (VARINIA PERUSIN, 9′, ARGENTINA)

Festival Política 2024 curtas
©Festival Asterisco

H. é um homem adulto que frequentou cinemas de filmes pornográficos de Mar del Plata durante a maior parte de sua vida. Após uma experiência reveladora, reavalia a forma como se relaciona com a sociedade.

Quase cómico-trágico, em particular se tivermos em consideração o seu título deliciosamente pouco sério, “Nadie se enamora en un cine porno” (“Ninguém se Apaixona num Cinema Porno”), é um pequeno filme exibido no âmbito do Festival Política em 2024 e criado recorrendo a um estilo cinematográfico (quase) tragicamente amador. Dos filtros verdes inestéticos escolhidos para as sequências de recriação, à própria ideia de introduzir clipes de reconstituição evocativos de segmentos noticiosos, as opções estéticas desta curta são estrondosas na sua falta de coesão visual.

De filmar o sujeito protagonista cortado a meio do rosto, passando pela abrupta resolução da sua história, há muita coisa que não resulta tão bem quanto isso neste filme de Varnia Perusin. Contudo, a própria narrativa em si tem interesse notório. Fala-nos de expectativas societárias, de relações, de espaços e da significação que os mesmos vêm a adquirir, de códigos comportamentais. Fala-nos até de solidão e encerra com um plano divertido, metafórico e que representa bem o espírito ligeiramente jocoso da sequência de eventos.

Classificação: 62/100




4 – MAGHREB’S HOPE  (BASSEM BEN BRAHIM, 24′, ARGÉLIA/ BRASIL/ MARROCOS/ TUNÍSIA)

Letterboxd Festival Política Maghreb's Hope
©Letterboxd/ Queer Maghreb coalition

Retratos das experiências de pessoas queer do Magrebe, nomeadamente da Líbia, Argélia, Tunísia e Marrocos. São pessoas que, corajosamente, quebraram tabus sociais em torno de seu género e sexualidade, desafiando os sistemas legais, sociais e familiares.

Filmado em três países do norte de África e ainda no Brasil é de longe o filme mais longo e ambicioso entre esta seleção de cinema. Com vários sujeitos filmados, um após o outro, são-nos apresentadas narrativas muito pessoais de jovens queer – homossexuais, trans, não-binário, e os seus difíceis processos de integração societária em países onde ainda há um longo caminho a percorrer no que diz respeito a direitos LGBTQIA+.

Para reforçar a grande âncora narrativa desta sessão do Festival Política, que inclusive teve direito a fechar a respetiva programação, o realizador Bassem Ben Brahim, esteve presente na sala para apresentar a curta-metragem e as suas ramificações na sociedade do norte de África e da região do Magreb. Uma vez mais, “Maghreb’s Hope” não nos impressiona com a sua capacidade inventiva ou artística. É um pedaço de cinema convencional, mas muito interventivo e emocionante, bem como empático e por isso perfeito para este contexto. Brahim tem um ponto de vista, e um que nos recorda de como a conquista de direitos é uma luta constante e não uniforme.

Classificação: 75/100

O Festival Política decorreu em Lisboa, no Cinema São Jorge, entre o dia 3 e 5 de abril de 2024. De seguida parte para o Centro de Juventude de Braga entre 2 e 4 de maio. Mais tarde, chegará a Loulé e Coimbra. 

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