"Campo di Bataglia" © Kavac Film

Festival de Veneza 2024: A Competição começa a ser um campo de batalha

Depois das estreias cheias de estrelas chegam à Competição do Festival de Veneza algumas das estreias menos mediáticas, mas não menos importantes nesta batalha pelo Leão de Ouro 2024: a ação com “The Order”, do australiano Justin Kurzel, a guerra com “Campo di Battaglia”, do italiano Gianni Amelio, as contradições do amor moderno de “Trois Amies”, do francês Emmanuel Moure e as crónicas de um jovem da província em “Leurs enfants après eux,”, dos realizadores e irmãos gémeos franceses Ludovic e Zoran Boukherma.

The Order”, marca a primeira vez que o realizador australiano Justin Kurzel participa na competição do Festival de Veneza e no seu primeiro filme depois de “Nitram” que valeu a Caleb Landry-Jones o Prémio de Melhor Ator no Festival de Cannes 2021. Kurzel, é um cineasta que tem analisado a violência nas suas formas mais sombrias.

Lê Também:
Festival de Veneza 2024 | Cate Blanchett e Nicole Kidman trouxeram erotismo

O seu filme de estreia, “The Snowtown Murders”, (“Os Crimes de Snowtown”, 2011) um filme notável e perturbador, conta uma das histórias mais arrepiantes dos noticiários australianos recentes. O próprio “Nitram” narra os acontecimentos que levaram ao Massacre de Port Arthur, onde em 1996, o jovem Martin Bryant matou 35 pessoas.

A Ascensão da Extrema Direita americana em “The Order”

Kurzel mudou-se agora para os EUA, para outra sociedade bastante violenta, para nos contar, num excelente filme de ação — faz lembrar a filmografia de Michael Mann — uma história baseada em factos reais e sintetizada no livro-reportagem “The Silent Brotherhood”, escrito pelos jornalistas de investigação Kevin Flynn e Gary Gerhardt.

O livro é uma profunda análise sobre os movimentos da extrema-direita que há anos tentam minar a democracia americana. Em 1983, uma série de violentos assaltos a bancos, operações de falsificação de notas e assaltos a carros blindados, assustam as pequenas cidades do noroeste do Pacífico, no Estado de Washington.

Enquanto os perplexos agentes da lei locais, procuram perceber de onde vem esta escalada de violência, Terry Ask (Jude Law), um solitário agente do FBI, é colocado na pacata e pitoresca cidade de Coeur d’Alene, Idaho; e rapidamente chega à conclusão que os crimes não são obra de criminosos tradicionais, com motivação financeiras, mas antes realizados por um grupo organizado de criminosos e perigosos terroristas internos, chefiados por um líder radical e carismático, que se esconde e trama uma guerra civil devastadora, contra o governo federal dos EUA.

O regresso de Jude Law

De facto Terry Ask, entende que esta onda de crimes não é aleatória e que por detrás da escalada está a Ordem, uma organização de supremacistas brancos neonazis que através dos seus atos criminosos estão a angariar fundos para organizar um movimento insurreccional. E depois de muita investigação o agente consegue chegar a Bob Mathews (Nicholas Hoult), o carismático líder da organização.

A Ordem existiu realmente e num curto espaço de tempo, entre 1983 e 1984, tornou-se numa verdadeira ameaça à democracia dos EUA. O auge da sua atividade criminosa foi o assassinato de Alan Berg, um famoso locutor de rádio cuja história foi contada por Oliver Stone em “As Vozes da Ira” (1988).

Ideologicamente a Ordem baseou a sua ‘filosofia’ em “The Turner Diaries”, o romance distópico de ultra-direita, escrito em 1978 por William Luther Pierce, fundador de outro movimento neonazi americano, a Aliança Nacional. Aliás, um romance de que foram encontrados alguns exemplares abandonados após o assalto ao Capitólio em Washington, em Janeiro de 2021.

É um filme oportuno

Nas vésperas daquela que poderá ser uma das eleições presidenciais mais importante da história americana e para o equilíbrio mundial, um filme como “The Order” é absolutamente oportuno e fundamental. “The Order” é efetivamente uma excitante ‘caça ao homem’ e uma viagem com muita ação às profundezas desse ódio, um prenúncio de uma América dividida e ao mesmo tempo um alerta sobre o que aconteceu naquela altura e o que pode vir a acontecer, independentemente de quem ganhar.

A guerra e a gripe espanhola em “Campo di Battaglia”

“Campo di Battaglia”, do italiano Gianni Amelio não é um filme guerra mas sobre a guerra, o campo de batalha não são as trincheiras da Primeira Guerra Mundial — que já está prestes do fim , em 1918 — mas um hospital de campanha e um pequeno laboratório onde um jovem e mártir médico luta, procurando a cura contra a gripe espanhola, que se espalha sem tréguas na altura.

Lê Também:
Festival de Veneza 2024 | Em Maria, Angelina Jolie revela os segredos de Callas

Dois oficiais médicos, amigos de infância, trabalham no mesmo hospital militar, onde todos os dias chegam da frente de combate os feridos mais graves. Porém, muitos deles, são impostores que causaram em si próprios ferimentos e que fazem tudo para evitarem o retorno ao campo de batalha. Stefano (Alessandro Borghi), é de família de classe alta, com um pai que sonha para ele, um futuro na política, tem uma fanática fúria patriótica e obcecado por essas auto-mutilações, procura desmascará-las: todo o soldado que voluntariamente inflige um ferimento na tentativa de ser mandado para casa é um traidor e cobarde que deve ser punido sem piedade e mesmo os mais gravemente feridos devem ser considerados hábeis e alistados após alguns dias de tratamento sumário.

Um filme sobre a tolerância no Festival de Veneza

Giulio (Gabriel Montessi), está cheio de compaixão humana pelos infelizes que chegaram ao hospital: alguns falam um dialeto que não compreende, mas compreende o seu terror e o desejo de escapar à loucura insana da guerra. Aparentemente é mais compreensivo e tolerante, sente-se incomodado ao ver sangue e tem mais inclinação para a investigação, aliás gostaria antes ser biólogo. Anna (Federica Rossellini), amiga de ambos desde a universidade, é voluntária na Cruz Vermelha: um trabalho árduo que enfrenta com determinação, consciente de que é o preço que paga por ser mulher.

A graduação em medicina era de fato muito difícil naquela época para uma mulher, sem uma família influente por trás e isso revela-se também no filme. Enquanto isso, algo estranho acontece entre os doentes: muitos pioram misteriosamente. Mas na frente de guerra, perto do fim do conflito, espalha-se um tipo de infecção que afeta mais do que as armas inimigas.

Uma luta para salvar vidas

E logo infecta também a população civil: a epidemia de febre espanhola, que ninguém sabe como lidar com ela. “Campo di Battaglia” é rodado nas cidades e nos campos onde se travou a guerra, mas efectivamente afasta-se do campo de batalha — aliás a te se perde um bocadinho no seu foco — para avaliar os seus efeitos nos homens, convidando também a refletir no que leva as pessoas a matarem-se umas às outras e o porquê de tanto sangue? Mesmo assim ainda há muitos que morrem para salvar vidas.

O amor moderno de “Trois Amies”

“Trois Amies”, o primeiro dos três filmes franceses apresentados na seleção oficial do Festival de Veneza 81, leva a assinatura de Emmanuel Mouret, um realizador marselhês, que não é dos dos mais conhecido em Portugal, embora tenha estreado nas salas nacionais, filmes notáveis como: “Amores Infiéis” (2020) e “Crónica de Uma Relação Passageira” (2022).

Lê Também:
Festival de Veneza 2024: A Leonesa Sigourney Weaver

“Trois Amies” é também uma história de relações amorosas que se cruzam e entrelaçam num registo de ‘comédia’ leve mas inteligente — aliás com o nos seus filmes anteriores — que diz muito sobre a natureza fugaz do amor moderno. Alberto Barbera “queria-o a todo o custo” na sua seleção do Festival de Veneza 81, por ser uma espécie de piscar de olho entre Rohmer e Woody Allen, com referências à tradição dramática e à literatura francesa, que remonta a Marivaux, Diderot e Choderlo de Laclos.

A ternura dos 40

No centro da história encontramos Joan (India Hair), Alice (Cottin Camille) e Rebecca (Sara Forestier), na casa dos 40 anos, são três amigas com diferentes percepções sobre o amor e a vida a dois. A primeira, por causa de uma sensação de desamor, decide deixar o companheiro e pai da filha (Vincent Macaigne), que aliás funciona como narrador (e mais qualquer coisa), desta história simples e ternurenta.

Já a segunda apoia-se num casamento de conveniência e não tem qualquer problema em manter uma relação desprovida de amor, mas cheia de ternura, que para ela é mais tranquilizadora do que a paixão. A abordagem de Rebecca, é muito diferente, pois vê o amor como uma permanente aventura e na verdade esconde uma relação secreta com o companheiro de Alice.

Trois Amies” é uma deliciosa história de três mulheres com temperamentos bastante diferentes que defendem as suas crenças e justificam as suas escolhas, que se perdem nos seus sonhos ou obsessões e que se perdem repetidamente apenas para encontrar outra direção, e depois outra, e assim por diante. Os diálogos subtis e muito inteligentes e que ao fazerem nos sorrir, contam-nos muitas coisas sérias.

Um jovem de província em “Leurs enfants après eux”

Com “Leurs enfants après eux” também em competição no Festival de Veneza 81, os dois realizadores e irmãos gémeos franceses Ludovic e Zoran Boukherma tentam afirma-se como duas promessas do cinema francês. O filme é baseado num romance do mesmo nome da autoria de Nicolas Mathieu, vencedor do prémio Goncourt em 2018 e sendo uma história de jovens adolescentes escrita em três partes, faz parte do Plano Nacional de Leitura do ensino médio francês.

Lê Também:
Festival de Veneza 2024: Em “Beetlejuice, Beetlejuice”, os fantasmas divertem-se, enquanto os vivos se matam

No centro da história passada na região de Lorena, durante o verão de 1992 — curiosamente o ano de nascimento dos realizadores, entre outras coisas — está o inconstante adolescente Anthony (Paul Kircher, revelado em “Winter Boy”, 2022 ), que se apaixona por Stephanie (Angélina Woreth), chegando ao ponto de roubar a mota dos pais só para a voltar a ver.

A falta de expectativas

No entanto, o gesto não ficará isento de consequências para o jovem neste filme sobre o amor, a amizade, a rivalidade, as quezílias com a família, o pequeno tráfico e consumo de drogas, as ilusões perdidas e falta de oportunidades de uma jovem do interior ou da província, seja da França ou de Portugal. E o filme, é também um novo passo na interessante afirmação dos Boukherma, depois do terror licantrópico “Teddy” (2020, premiado em Sitges e Bordéus) e a comédia de tubarões “L’année du requin” (2022).

Festival de Veneza, ao vivo

A MHD vai continuar a acompanhar o Festival de Veneza.



Loading poll ...
Em breve
A Tua Opinião Conta: Qual dos serviços mais usas?

Também do teu Interesse:



About The Author


Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *