"Juventude (Tempos Difíceis)" | © Midas Filmes

Juventude, a Crítica | Wang Bing apresenta uma trilogia épica no IndieLisboa

Com mais de nove horas, “Juventude,” também conhecido como “Youth,” é um épico sem igual sobre as condições laborais na indústria têxtil da China contemporânea. Este documentário tripartido realizado por Wang Bing passou na secção Rizoma do IndieLisboa e já tem distribuição nacional assegurada pela Midas Filmes.

A primeira longa-metragem de Wang Bing estreou há mais de duas décadas. Na altura, “Tie Xi Qu” foi uma forma estonteante de começar a carreira, fazendo a crónica de um distrito industrial na China onde as fábricas estatais foram gradualmente dando lugar a negócios privados. O documentário excedia as nove horas de duração, montado com base em mais de 200 horas de filmagens que o realizador havia capturado em estilo observacional ao longo de meses. Quem assumisse que esta seria uma anomalia na carreira do jovem cineasta depressa se desenganou. Nos anos seguintes, Wang Bing viria a fazer destes épicos documentais a sua especialidade.

E assim, a filmografia cresceu em espelho das realidades socioeconómicas da China no século XXI, demarcando a ruína de sonhos comunistas e a ascensão de novas ordens onde a exploração laboral se tornou o pão nosso de cada dia. Entre retratos individuais como “Mrs. Fang” e murais mais coletivos ao estilo de “Ta’ang,” Wang traçou uma visão crítica do seu país que, ao mesmo tempo, servia de homenagem à sua população. Foi ganhando inimigos pelo caminho, como seria de esperar, mas também conquistou aclamação internacional, possibilitando projetos de ambições cada vez maiores. “Juventude” surge neste contexto.

Tudo começa na Primavera.

indielisboa juventude youth spring critica
© Midas Filmes

Dividido em três capítulos e filmado na província de Zhejiang entre 2014 e 2019, o documentário foca-se na vida de trabalhadores da indústria têxtil que emprega cerca de 300 000 pessoas em cerca de 18 000 oficinas a contrato privado. Nesse aspeto, assemelha-se muito ao “Bitter Money” que Wang lançou em 2016. Hão de reparar que as datas se justapõem, sugerindo que o primeiro filme surgiu do mesmo material usado para “Juventude.” Só que as prioridades dos projetos são distintas. Nomeadamente, a demografia considerada. Como o título indica, a obra mais recente afigura-se como um estudo às gerações mais novas, nascidas numa China industrializada onde o trabalho desesperante destes centros de produção, estas cidades-fábrica, já se haviam tornado na norma.

Mais especificamente, Wang retrata a juventude que abandonou as suas origens rurais num movimento migratório que já se havia evidenciado em muitos dos seus trabalhos passados. O abandono do campo em busca do sustento prometido pelas grandes indústrias ecoa assim no cinema do artista e atinge o seu auge no tríptico. Dito isso, a primeira parte, “Primavera,” não nos mostra a terra natal dos seus sujeitos. Isso virá mais tarde. Para já, este terço inicial descontextualiza os trabalhadores, vendo-os somente no panorama da oficina e as casas singelas onde passam o pouco tempo que não estão debruçados sobre mesas de corte e máquinas de costura.

Lê Também:
76º Festival de Cannes | Wang Bing e a Barbuda

Essas palavras podem fazer o leitor pensar numa experiência tortuosa, a “Primavera” enquanto experiência punitiva para com a sua audiência cativa. É evidente que um documentário assim, com esta duração, vai ser proposta difícil de aceitar para muitos. Só que Wang não confronta as realidades perante as suas câmaras com um olho apático, quaisquer noções de distanciação clínica há muito abandonados no percurso do cineasta. De facto, podemos vislumbrar um raio de otimismo nesta obra, quiçá o seu aspeto mais surpreendente quando pensamos no quão miserável todo o exercício podia ter sido. Perante a exploração laboral, a câmara jamais vitimiza os seus sujeitos.

Pelo contrário, canta-lhes a glória e deixa-se inebriar pelos seus sorrisos e brincadeiras, os romances nascidos entre pilhas de roupa e outros laços forjados no inferno cacofónico da oficina. A resiliência dos trabalhadores salta à vista sem cair na idealização ou no paternalismo. E até os seus movimentos ganham qualidades belas. O gesto repetido faz surgir um ballet maquinizado, enquanto os sons da agulha e seu motor levam o espectador a um estado meio hipnótico. Esse fenómeno só se manifesta porque Wang insiste na duração extrema, prolongando cada cena até que nos sentimos completamente imersos na realidade documentada.

Um retrato de Tempos Difíceis.

indielisboa critica youth hard times juventude
© Midas Filmes

Depois da “Primavera,” vêm os “Tempos Difíceis” e a jornada cinematográfica de “Juventude” chega ao seu capítulo mais tenebroso. Estreada no Festival de Cannes em 2023, a primeira parte do tríptico fez soar uma nota de esperança na filmografia de Wang Bing. Foi incongruente, uma brisa de ar fresco com um teor humanista que tornava aquilo que se pensaria insuportável numa carta de amor às gerações mais jovens do corpo laboral Chinês. Sua pseudo sequela estreou mais de um ano depois, na competição de Locarno, onde valeu uma menção honrosa e outro prémio FIPRESCI para o espólio do cineasta.

Se alguém desejar ver “Juventude” sem se sujeitar às nove horas da sua totalidade, “Tempos Difíceis” oferece a experiência mais completa, condensado o movimento que estrutura e define a evolução do documentário ao longo dos três atos. Porque, neste ponto médio, Wang volta a introduzir o otimismo antigo, antes de o complicar com o desespero crescente daqueles que se matam a trabalhar sem nunca chegar a lado nenhum, presos num fado sisífio cada vez mais opressivo. Isto acontece em termos emocionais e materiais. Por um lado, a pressão dos patrões limita a socialização no local de trabalho. Por outro, a crescente demanda de produto faz surgir pilhas sem fim de materiais. Não há espaço para se mover, para respirar, para pensar.


Sem janelas, as oficinas tornam-se antros sem tempo, onde a passagem do dia para a noite não se consegue entender e cada hora se sente eterna. A montagem chama a atenção para estas desfragmentações da consciência ao mesmo tempo que os trabalhadores começam a ser mais vocais sobre o seu descontentamento. Há discussões acesas sobre salários atrasados, rumores de violência, crime, e até da ação policial sobre a população mais vulnerável. Isso culmina em dois gestos desestabilizadores dentro do millieu habitual de Wang Bing. Primeiro, temos o que mais se aproxima de uma entrevista em todo este retrato da “Juventude.”

Em estilo de confissão, trata-se de um testemunho de ataques por parte da polícia, brutalidade relatada como algo comum a que estes jovens já tiveram de se habituar. Não vemos esses horrores, mas a palavra é suficiente. Depois, como que a deixar o vapor escapar de uma panela de pressão, o realizador abandona a metrópole e segue alguns trabalhadores numa visita às suas origens rurais. No comboio, um rapaz pega na guitarra e faz uma serenata, cantando sobre amores perdidos. Fá-lo-á para alguém em particular? Para os colegas e estranhos no comboio? Para a câmara e, por conseguinte, para nós? Qual for a sua razão, a melancolia musical serve de bálsamo para a alma.

O Regresso a Casa, o fim do épico.

juventude youth homecoming critica indielisboa
© Midas Filmes

Suporíamos que “Regresso a Casa,” candidato ao Leão de Veneza o ano passado, continuaria a viagem de volta às raízes que caracteriza o fim de “Tempos Difíceis.” No entanto, “Juventude” troca as voltas e força o espectador a revisitar as oficinas, seu ruído ensurdecedor, seu suor e lágrimas e claustrofobia. Dito isso, a última terça-parte do épico mostra-nos um lado diferente desses espaços. Pois, à medida que o Ano Novo se aproxima, o trabalho acalma e, de repente, já se consegue respirar novamente nessas celas sem janelas e sem piedade. Este não é um seguimento cronológico dos capítulos anteriores tanto quanto é uma evolução temática, estruturada à volta de ideias e não dos calendários.

O tempo parecia interminável antes e agora volta a dissolver-se em abstrações, onde quase queremos esticar momentos. Não é coincidência que “Regresso a Casa” é o mais curto dos três filmes irmanados. Nele, “Juventude” sofre a derradeira metamorfose, fugindo à fábrica para um período de festas tradicionais e contemplações pastorais. O tormento da vivência industrial não some, há que se dizer, permanecendo como uma sombra sobre os trabalhadores, toldando-lhes a luz dos sorrisos e reforçando ideias de solidão patológica. E assim aparece a ideia mais triste deste documentário – que as gerações nascidas nesta nova China estão tão moldadas às exigências económicas na nação que já não conseguem viver de outra forma.

Lê Também:
A Volta ao Mundo em 80 Filmes

Desamparados da convivência regimentada das oficinas, os trabalhadores sentem-se isolados. Mas o regresso à cidade não é solução. Para exemplificar isso mesmo, Wang Bing contrasta dois casais, entrecortando sequências entre a vida urbana de uns e a pausa rural dos outros. Aqueles que permanecem na cidade estão miseráveis, tentando encontrar trabalho para ganhar a vida, exaustos até ao ponto que já não conseguem andar. Os jovens no campo vivem a folia de um casamento tradicional, mas estão sempre cientes que este júbilo é efémero. No fim da festa, tudo voltará à ordem comum e a pobreza da comunidade rural só se exacerba perante estas pequenas exuberâncias.

Wang Bing não idealiza qualquer possibilidade em cena, nunca definindo soluções para os problemas retratados, ou definindo moralismos que fazem da indústria um mal suprassumo e os hábitos campestres uma qualquer salvação. Sempre lúcido e brutalmente franco, o realizador mostra-nos a realidade crua sem desrespeitar os seus sujeitos com algum julgamento indevido. O humanismo reina supremo neste monumento cinematográfico que não é nem jornalismo nem objeto poético. “Juventude” é um épico sem igual, com quase dez horas onde uma geração é homenageada e chorada, celebrada com sorrisos e histórias de paixonetas, lamentos dos mais velhos e a admiração de uma câmara decidida a amar os chineses mesmo quando critica a China.

Juventude, a Crítica
juventude critica indielisboa youth

Movie title: Qingchun

Date published: 5 de May de 2025

Country: China

Duration: 590 min.

Director(s): Wang Bing

Genre: Documentário, 2023/2024

  • Cláudio Alves - 85

CONCLUSÃO:

Depois de mais de duas décadas de crítica ferrenha através de uma panóplia de projetos documentais, Wang Bing foi finalmente alvo da censura e da repressão política na China. Quiçá “Juventude” tenha sido a gota final. Percebe-se o raciocínio daqueles no poder, mesmo quando nos opomos a tais ações. Porque, até numa linha mais suave que muitos trabalhos passados do realizador, este épico magoa a esclarece uma visão do país onde as estruturas económicas criaram um inferno onde os mais novos se perdem, sem nunca terem aprendido a viver de outra forma. Trata-se de um monumento cinematográfico, um mural, um épico incomparável.

O MELHOR: O momento aterrador quando, de volta às oficinas depois do Ano Novo, os trabalhadores parecem mais leves do que estavam na companhia da família ou na liberdade relativa do campo. Apercebemo-nos então que o “Regresso a Casa” não foi a viagem até às terras natais, mas sim o recomeço do laboro sem fim. Assim é o lar, a verdadeira casa, destes jovens.

O PIOR: A repetição tem propósito, mas também leva ao desespero do espectador. Especialmente quando as conclusões de Wang Bing são evidentes desde os primeiros minutos.

CA

Overall
85
Sending
User Review
0 (0 votes)

Loading poll ...
Em breve
A Tua Opinião Conta: Qual é a melhor?

Também do teu Interesse:



About The Author


Leave a Reply