Amy March de Florence Pugh em "Mulherzinhas" (2019) © Columbia Pictures

Mulherzinhas | A redenção cinematográfica de Amy March

Na nova adaptação de Mulherzinhas, Greta Gerwig propõe a redenção cinematográfica de Amy, desta vez interpretada por Florence Pugh. 

A entrega dos Óscares 2020 acontece no próximo domingo 9 de fevereiro, e na corrida ao Óscar de Melhor Atriz Secundária encontramos Florence Pugh pelo filme “Mulherzinhas”, realizado por Greta Gerwig. A jovem de 24 anos não irá ganhar a estatueta dourada, uma vez que enfrenta a concorrência pesada de Laura Dern por “Marriage Story”, mas é bom perceber o quanto a sua nomeação e o seu papel são importantes não só para o baú das nossas experiências cinematográficas, como também para a própria história do cinema norte-americano.

Em primeiro lugar, o facto de Florence Pugh, natural do Reino Unido, estar entre os nomeados nas categorias de interpretação, demonstra o reconhecimento da Academia por uma jovem atriz que só tem interpretado mulheres fortes ao longo da sua (curta) cinematografia. Com um desempenho revelação em “Lady Macbeth” (2016), e outro papel essencial em “Midsommar – O Ritual” (2019) – que todas as jovens a passarem por uma relação amorosa desconfortável deveriam assistir -, não faltaria muito para Florence Pugh ser aclamada pelos seus colegas.

Em segundo lugar, o sucesso da sua personagem Amy March junto dos membros da Academia, prova que Hollywood tem, de alguma forma, espaço para celebrar personagens que se transformam no cinema. Quer isto dizer,  que, mesmo sendo esta a sexta adaptação para o grande ecrã da personagem criada por Louisa May Alcott, à nova Amy é dado um outro papel.

Já não a vemos como uma mulherzinha condenada por ser demasiado snob, arrogante e mimada e que poucos espectadores se identificavam, como acontecera nos filmes de 1933, 1949 e 1994, e até nas distintas séries televisivas produzidas. As “Mulherzinhas”, nesta nova adaptação de Greta Gerwig, estão muito mais desenvolvidas que nas obras prévias – que privilegiavam apenas Jo March -, e conhecemos mais do seu lado adulto, mas é a Amy de Florence Pugh, quem mais beneficia deste novo olhar face a um romance com mais de 150 anos de existência.

Poderíamos mesmo dizer que, em pleno ano 2020, talvez sejamos todos um pouco como a nova Amy. Florence Pugh oferece a sensibilidade que a personagem estava a precisar e parte dos maneirismos de Pugh como jovem do século XXI, permitem uma versão mais contemporânea do membro mais novo da família March. Esta não é apenas a redenção cinematográfica de Amy, é também o seu necessário renascimento.

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Eventualmente, caso ainda não tenhas visto o filme aconselhamos-te a não continuares com a leitura. Não digas que não te avisámos. 

[ALERTA SPOILERS!]

Amy March
Florence Pugh como Amy March em “Mulherzinhas” (2019) © Big Picture Films

Mesmo assim, apesar de neste artigo nos centrarmos em Amy March, a figura central da nova adaptação de “Mulherzinhas” continua a ser a sua irmã mais velha Jo March – aqui interpretada por Saiorse Ronan. Jo é um retrato auto-biográfico da própria Louisa May Alcott, sendo que nela persistem os valores feministas, a inteligência e a atitude de ser independente dos homens que a escritora expõe na sua obra. Como sua antagonista temos Amy March, espelho do materialismo, da vaidade e até das mais infantis lamechices. Pelo menos foi isso que vimos em todas as adaptações de “Little Women” até agora. A situação muda com Greta Gerwig, que acaba por fazer o que ninguém pensou antes. A realizadora e argumentista olhou além do romance de Louisa May Alcott e tentou aproximar estas duas irmãs que nada aparentam ter em comum.

A Jo March de Saiorse Ronan é totalmente contemporânea, quer ser dona de si mesma e do seu dinheiro e que quer romper definitivamente com os dogmas do passado, repreendendo as atitudes da maioria das mulheres conservadoras daquele tempo de casar bem e de beneficiar de um estatuto social, como é exemplo a sua Tia March, interpretada por Meryl Streep. O amor que os espectadores sentem para com Jo depende muito das suas interações com a tia e com a sua irmã Amy March, que à partida parece também representar um grupo de mulheres que prefere viver numa sociedade antiquada.

O que Greta Gerwig vem desmistificar perfeitamente em “Mulherzinhas” é que tanto Jo como Amy querem a mesma coisa. Amy não quer romper com um sistema, porque sabe ser impossível fazê-lo, por isso encontra formas para tirar proveito dele. O facto de não lutar contra o mundo como Jo (que de alguma forma vive em constante ânsia por isso) não significa que a jovem não tenha sonhos. Amy March sabe jogar num mundo que relega a mulher para o segundo plano. E, deste modo, Gerwig entende que Amy é tão importante e igualmente poderosa como modelo feminino quanto Jo. Ninguém é melhor só por ser como Jo, afinal as mulherzinhas não são todas iguais, e cada uma vive, sente e pensa à sua maneira.

Amy March
Amy March no novo filme de “Mulherzinhas”, de Greta Gerwig © Big Picture Films

A cena em que somos introduzidos a Amy March, parece ser crucial para o entendimento destas ideias. Por um lado, observamos, uma mulher ambiciosa que mantém a sua etiqueta e elegância enquanto passeia numa carruagem pela Europa, junto com a sua tia March. No entanto, quando esta vê um antigo amor de infância deixa a máscara cair e solta a sua a personalidade mais infantil, sendo precisamente aí que ambas estas as facetas opostas de Amy March são reveladas. Por um lado, temos a jovem ambiciosa, por outro a jovem humilde e apaixonada que não pode ser quem é pelas circunstâncias do mundo que a rodeia.

O poder feminino de Amy March não portanto é menosprezado. Quase no final do segundo ato de “Mulherzinhas”, a personagem profere um dos discursos mais fortes que veremos no cinema em 2020. Esse monólogo não esteve presente em nenhuma das adaptações prévias do romance e que foi sugerido por Meryl Streep a Greta Gerwig, de forma a que as audiências de hoje pudessem entender o que significava ser mulher nos dias de ontem, de que ao casar havia que casar bem, havia que olhar para a classe social. Florence Pugh sustenta cada palavra deste monólogo que nos permite constatar como Amy é bastante inteligente para o seu tempo e que abraça a sua feminilidade, para tirar vantagem disso. Aí, Amy conta a Laurie (Timothée Chalamet), que casar é uma aspiração económica e que é a única saída para estar seguro e confortável no mundo. Caso isso não aconteça uma mulher será supostamente infeliz a vida toda.

Nesse contexto da Guerra Civil norte-americana (1861 – 1865), seria impossível a Amy March enquanto mulher, ganhar o seu próprio dinheiro ou chamar os seus próprios filhos de seus, porque tudo era propriedade patriarcal. Além disso, também nessa época as mulheres não tinham direito ao voto, por isso casar bem é a única forma que Amy e muitas jovens encontraram para ter um certo poder e, a partir de então, conseguirem ser reconhecidas e ouvidas. O facto dos seus familiares serem pobres e serem até demasiado românticos para a realidade dura que os rodeia, exige Amy March a ser realista e pragmática.

A Amy de Florence Pugh aceita o único caminho que existe para conseguir ajudar a família que ela tanto ama. A própria Jo afirma que Amy sempre teve talento para conseguir escapar das partes mais difíceis da vida, e isso acontece porque as aceita, por muito grande que seja o sacrifício.

Amy March
Amy March (Florence Pugh) e Laurie (Timothée Chalamet) numa das cenas do filme “Mulherzinhas” © Big Picture Films

Noutros tempos, talvez muitas mulheres como Amy March tenham colocado de lado sentimentalismos para abrir portas a outras mulheres, fosse no cinema, na literatura, quanto na política ou na sociedade em geral. No início de “Mulherzinhas” queremos ser como Jo, queremos ter a coragem de quebrar o sistema e ser bem sucedidos por isso. No final, queremos ser um pouco como Amy – mesmo com as suas vestimentas de pele e de seda e os seus chapéus arrojados. Com Amy March sabemos como o mundo em transição do século XIX funcionava, que na realidade não é muito diferente daquele que vivemos hoje.

A um determinado momento da trama, Amy revela à sua irmã Jo, sobre o facto de ter publicado um livro sobre a infância, o seguinte: “Talvez não consideremos essas coisas tão importantes porque as pessoas não escrevem sobre elas. Não tenho certeza … talvez a escrita as torne mais importantes”. Jo, como se estivesse a falar diretamente com a audiência, responde “desde quando é que te tornaste tão sábia?”. Ao qual a ousada Amy March de Florence Pugh exclama “Eu sempre fui, tu é que estavas muito ocupada com os meus defeitos”.

151 anos após a publicação de “Mulherzinhas” de Louisa May Alcott, 44 adaptações em quase todas as formas artísticas, e graças ao argumento de Greta Gerwig e à interpretação de Florence Pugh, finalmente deixaremos de olhar para os defeitos de Amy March… e admiremos mais a sua confiança enquanto mulher.

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