©Leopardo Filmes

O Medo Come a Alma, em análise

O ciclo dedicado a Rainer Werner Fassbinder continua a dar que falar, desta vez com a exibição de “O Medo Come a Alma”!

SONHAR COM O CÉU E VIVER NO INFERNO…!

Rodado em duas semanas, no fim do Verão de 1973, com um orçamento nitidamente apertado se comparado com o de outros filmes do realizador, ANGST ESSEN SEELE AUF (O MEDO COME A ALMA), de Rainer Werner Fassbinder, pode ser visto como a abordagem dura e crua de uma realidade social prevalecente na Alemanha do pós-guerra, a do alegado “milagre alemão”, uma realidade cruzada por muitas forças contraditórias de maior ou menor intensidade, mas onde os preconceitos de superioridade racial incutidos anos antes pela ideologia nazi ainda se faziam sentir, mesmo entre aqueles que de um modo ou de outro nunca foram mais do que carne para canhão nas ambições de supremacia imperialista do projecto de erguer um Terceiro Reich em que a raça ariana seria a dona e senhora do mundo. E como se desenvolve esta análise concreta de uma situação concreta, por parte da realização? Nas primeiras sequências deste filme somos introduzidos aos ambientes muito coloridos de um bar frequentado por emigrantes oriundos do Norte de África, na verdade cores bem saturadas a partir do Eastmancolor, que a Direcção de Fotografia de Jurgen Jurgens polariza com inegável competência. Desde o genérico inicial que a sonoridade da música árabe magrebina vinha adicionando uma pitada de exotismo a esta atmosfera “estrangeira”, que pouco depois será o motivo que faz uma senhora, Emmi Kurowsky (Brigitte Mira), nos seus sessenta anos de idade, entrar naquele local onde, manifestamente, não se enquadra a cem por cento. E ela sabe isso mesmo porque, segundo diz, entrou para se refugiar da chuva e, já agora, ouvir a música que noutros dias lhe ficara na memória.

O Medo Come a Alma
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Precisamente por ser o bicho raro, sozinha num bar frequentado por norte-africanos no coração da Alemanha – a acção decorre em Munique – uma das raparigas de pouca virtude que por ali andam instiga de modo provocatório Ali (El Hedi ben Salem), rapaz marroquino bem constituído e de aspecto viril, com metade da idade da alemã, a juntar-se a ela, “a velha”, como lhe chamam. E ele não se faz rogado e senta-se na sua mesa, acabam ambos a conversar e, palavra puxa palavra, depois de um pseudo-romântico pezinho de dança, decidem ir embora. Sem surpresa, Ali acompanha Emmi a casa. Depois, provavelmente contra as melhores expectactivas, Emmi desafia Ali a subir. Não fica claro que Emmi deseje mais do que companhia, mas só quem acredita nas histórias da carochinha, recitadas por anjinhos de asas cortadas, não percebe o crescente desejo latente daquela mulher que, por uma saborosa e perversa elipse do senhor Fassbinder, passou a noite na cama com Ali. Se meteu sexo ou não, nunca saberemos nem isso importa, porque a vitalidade da pulsão sexual está dada e, passados uns dias de amizade, partilhas e cumplicidade, será concretizada num patamar superior quando ambos decidem casar-se. Mas desenganem-se os que julgam ir ver os dois enrolados. Não, o sexo que iremos “ver” ao longo do filme existe, está lá sempre, mas o realizador não quis banaliza-lo dando-nos a ver mais do que precisamos saber: numa palavra, a fúria de viver de uma mulher e de um homem, oriundos de mundos e culturas diferentes, mas que sabem limar essas diferenças ao ponto de se amarem com verdade e sinceridade, contra as convenções da sociedade repressora e racista que os rodeia. Parecem viver num limbo, se pensarmos nas rotinas diárias e íntimas que assumem sem sobressaltos de maior e, porque estão felizes, Emmi deseja partilhar a sua alegria com a família. Mas o que encontra pela frente, após o singelo matrimónio, não passa de brutalidade e incompreensão por parte dos filhos, que rejeitam o “negro” e a insultam, abandonando logo a seguir a casa que dizem ser uma “pocilga”. Há mesmo um que, mais furioso, a apelida de “puta”. Entretanto, antigas amizades, vizinhas coscuvilheiras de pensamento retorcido e canalha, colegas de Emmi, que ganha a vida como empregada de limpeza, o grunho reacionário, dono de uma pequena mercearia que, apesar de Emmi ser uma boa cliente, não quer agora atender Ali, invocando ardilosamente que não percebe o que ele diz, ou seja, os que a saudavam antes, acabam por se afastar daquela que, demonstrando uma coragem digna de uma mulher de armas, não cede a pressões e volta-se mesmo contra as agressões que os outros protagonizam. Neste ponto, R. W. Fassbinder desencadeia com extrema economia narrativa os mecanismos ficcionais necessários e suficientes para fazer prevalecer o percurso individual do casal, não isento de altos e baixos, num contexto hostil mas que a certa altura será alterado, apenas porque os que derramaram o seu veneno sobre os dois, os que chamaram os nomes mais impróprios a marido e mulher, reparam que ela, Emmi, lhes pode ser útil. Pedem-lhe mesmo favores que, ao pensarmos nas suas atitudes poucos dias antes, provam ser solicitados por pessoas sem qualquer vergonha na cara. Mesmo o filho que chamou puta à mãe regressa para lhe pedir apoio, leia-se, dinheiro. O merceeiro, vociferando cinicamente uma máxima do seu negócio, o de que “a aversão vem em segundo lugar”, sorri-lhe novamente na esperança de recuperar a cliente numa altura em que ele se queixa que as pessoas preferem ir ao supermercado. Onde já ouvimos esta cantiga? De igual modo, a realização encontra a coragem para se referir a este estado de coisas, não num país imaginado mas no centro fulcral do modo de ser e estar de uma boa parte da pequena-burguesia alemã. Não estamos no domínio do conflito de classes e das contradições entre ideologias inimigas. Aqui, os inimigos estão ao nosso lado, vivem no mesmo prédio; o seu pensamento, herdado de um passado recente onde imperava a ideia de uma raça superior, passa despercebido por entre os pingos da chuva, mas em boa verdade contamina a democracia que dizem respeitar mas com a qual não lidam bem, sempre que sentem o medo, a ameaça real ou imaginária do outro que não corresponde ao seu reflexo no espelho. Por isso, acabam a comer do mesmo prato da economia política que os populistas da extrema-direita, influenciando os destinos de um país cujo passado não fora flor que se cheire.

O Medo Come a Alma
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Muitos apontam o genial ALL THAT HEAVEN ALLOWS (TUDO O QUE O CÉU PERMITE), 1955, do grande Douglas Sirk, como a principal fonte de inspiração para O MEDO COME A ALMA. Pessoalmente, aceito que existem óbvios pontos de contacto, concordo que há nos dois filmes subversão que baste, mas no entanto de natureza completamente diferente. No filme do alemão Douglas Sirk (cuja filmografia americana será a mais conhecida, sendo a maioria das obras que então dirigiu peças fundamentais para se compreender as potencialidades e os limites do género melodrama), o amor “proibido” e logo condenado era o da relação entre um jardineiro pobre, interpretado por Rock Hudson, e uma senhora rica da classe média americana, cujo papel foi confiado, e bem, a Jane Wyman. Este romance, que se queria vivido no céu, seria igualmente motivo de controvérsia e rejeição pelos pares da mulher que para os hipócritas irá cair em desgraça. Isto é, a subversão estava no facto de existir de forma muito clara no argumento a exposição de um problema relacionado com as diferenças de classe. Mas ambas as personagens eram brancas, o que atenuava a questão racista que, quando muito, podia ser interpretada como “racismo social”. Mas em O MEDO COME A ALMA Emmi e Ali são da mesma classe, são proletários que ganham a vida a vender a sua força laboral, ganham praticamente o mesmo. A única coisa que os distingue será a cor da pele, a origem geográfica, o domínio da língua germânica, Europa versus Marrocos, neste caso, Europa e Marrocos de mãos dadas. E os que vilipendiam esta união com rafeira violência não passam de pessoas que em alguns momentos demonstram ser mais deserdadas do que os emigrantes que elas criticam: “porcos”, “vadios”, “só querem levar mulheres para a cama”, “vivem cá porque lhes pagamos” e outros mimos de visível e audível agressividade e incompreensão. Não querendo deixar de fora o depoimento político que se impunha, fazendo a agulha para uma visão desencantada da sociedade alemã, R. W. Fassbinder, no plano ficcional, atira Ali ao chão, com dores lancinantes devido a uma úlcera que rebenta e o põe às portas da morte.

Será levado para o hospital, onde Emmi o vai visitar e confortar, mesmo depois de ele não se comportar como era suposto, sucumbindo a noites de sexo e cuscuz com a empregada e dona do bar que vimos ao princípio. Nessa altura, o médico de serviço diz a Emmi que casos similares acontecem com frequência aos emigrantes devido ao stress a que estão sujeitos, mas que fique descansada porque Ali vai recuperar. Todavia, qual ave agoirenta, acrescenta que ele provavelmente irá voltar e continuar a sofrer do mesmo mal. E com estas palavras pouco consoladoras a ecoar na cabeça, quer de Emmi, quer dos espectadores, Fassbinder encerra o filme e a sua chamada de atenção sobre dois seres que queriam viver no céu mas só encontraram pela frente as chamas do inferno.

O Medo Come a Alma, em análise
O Medo Come a Alma

Movie title: Angst essen Seele auf

Director(s): Rainer Werner Fassbinder

Actor(s): Brigitte Mira, El Hedi ben Salem, Barbara Valentin, Irm Hermann

Genre: Drama, 1973, 93min

  • João Garção Borges - 85
85

Conclusão:

PRÓS: Excelente, a Direcção de Fotografia de Jurgen Jurgens.

Brigitte Mira, no papel de Emmi, que facilmente se pode colocar a par da sua notável interpretação num outro filme do realizador apresentado neste ciclo, MUTTER KUSTERS FAHRT ZUM HIMMEL (MAMÃ KUSTERS VAI PARA O CÉU), 1975.

El Hedi ben Salem, no papel de Ali, que não era o seu nome mas, porque ninguém o chamava pelo seu longo nome de família, ficou Ali. Fala mal alemão, parece por vezes um autómato, e todavia a sua presença enche o ecrã. Os seus diálogos e deixas são do melhor que se viu na abordagem de personagens estrangeiras, sem qualquer caução paternalista por parte da realização.

Em geral, o elenco secundário, onde até Rainer Werner Fassbinder desempenha o papel de um brutamontes alemão, ele que na realidade era criticado pelos seus companheiros por ser um desmazelado, por se vestir mal, por andar com o cabelo oleoso como um azeiteiro. Enfim, julgo que neste filme e noutros ele adorou desempenhar essas figuras que, naturalmente, não correspondiam ao seu perfil intelectual e criativo.

Magnífica cópia digital, restaurada.

CONTRA: Nada.

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