"Aribada"| ©Queer Lisboa/ Paetau & Escobar

Queer Lisboa ’23 | Competição de Curtas-Metragens 1, em análise

A 24 de setembro, pelas 18h30, decorreu a primeira sessão da Competição de Curtas-Metragens da presente edição do Queer Lisboa, o prestigiado mais antigo festival de cinema da capital. Entre muitas proveniências díspares, vimos um conjunto de seis curtas distintas mas igualmente empenhadas na narração de histórias LGBTQIA+ genuínas. 

À primeira vista, e perante a nossa presença na Competição de Curtas-Metragens 1, temos a dizer que o Queer Lisboa conseguiu um feito simpático com esta sua programação de curtas-metragens. Os filmes escolhidos têm protagonistas vindes de pontos muito díspares do globo e estéticas inteiramente opostas. Esta primeira sessão foi rica, diversa e uma prova da coexistência de pontos de vista variados e ricos.

INCROCI (FRANCESCA DE FUSCO, 13′) 

Incroci 2023
©Queer Lisboa

Fede é uma adolescente que reside numa tradicional casa de freiras que oferece hospedagem a jovens estudantes e viajantes em Bérgamo. A sua vida oscila entre o tempo passado no liceu público e com o seu pequeno grupo de amigas, embora passe os dias perdida nos seus pensamentos, polindo um segredo que guarda dentro de si. A sua vida muda discretamente com a chegada de Valentina.

Francesca de Fusco, estudante da prestigiada NYU Tisch School of the Arts, estreou esta curta, por si escrita e realizada (apenas a terceira da sua filmografia), na Berlinale. Por lá, teve até direito a uma Menção Especial. Este é um filme extremamente naturalista, e daí conseguimos imediatamente perceber o seu apelo para o circuito de festival.

A acção situa-se na bela cidade de Bergamo, no Norte de Itália (a mesma que acolheu alguns dos planos mais deslumbrantes de “Chama-me pelo Teu Nome”), à medida que acompanhamos a jovem Fede no seu “coming of age”. O filme é eficaz na representação do amor adolescente e pauta-se por um humor característico, bem como pela química palpável entre as protagonistas.

Todavia, este mundo de desejo é-nos apresentado de forma muito parcial. Nunca conhecemos a fundo Fede e Valentina, e a curta de 13 minutos não nos permite fechar o arco da sua história. E não deve uma boa curta ser auto-suficiente, ao invés de nos deixar a aguardar, com impaciência, a versão em formato de longa.

Além disso, as transições e estilo de filmagem deixam algo a desejar. Nada a apontar ao naturalismo, mas a estrutura de “Incroci”, nesta primeira sessão de curtas do Queer Lisboa ’23, recorda-nos em demasia o filme universitário, com a sua qualidade pouco polida e transições bruscas. Quiçá, daqui a uns anos, esta história interessante possa ser recuperada com outra graça e profundidade.




I AM A HORSE (CHAERIN IM, 8′)

Incapaz de encontrar raparigas nas diversas obras de arte do artista coreano Lee Jung-seob, Chaerin Im desvenda um conto imaginativo de mulheres nascidas com metade do seu corpo sendo um cavalo e a outra metade um tigre.

Um exercício livre e poético, que se vê ancorado num estilo de animação simples mas deslumbrante, “I Am a Horse” é uma curta metafórica e artística que pensa questões de identidade e género com nítida destreza.

O filme estreou no Festival de Roterdão e integra muitas outras selecções, com mérito. O seu mundo não é o mais fácil de apreender, por se basear numa realidade bastante díspar, mas também daí obtemos grande parte do valor inerente da obra.

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Apesar de não conhecermos esta realidade, a mesma é-nos habilmente apresentada: os sonhos de nascimento coreanos, “tae-mong”, profetizam o género de uma criança por nascer através de simbolismos. Estes simbolismos estão, naturalmente, associados a preconceitos de género. Os homens com direito a animais fortes, as mulheres representadas através de figuras pequenas e frágeis.

Chaerin Im interpreta o trabalho de outro artista e dá-lhe uma nova roupagem crítica, uma roupagem que honra a figura feminina e a eleva. Ao contrário da primeira obra apresentada nesta sessão do Queer Lisboa, a audaz e bela obra animada “I Am a Horse” é auto-suficiente e transmite uma ideia completa.




ARIBADA (NATALIA ESCOBAR, KAIKIRIUMA PAETAU, 30′)

Na região de produção de café da Colômbia, Aribada, a monstra ressuscitada, conhece Las Traviesas, um grupo de mulheres trans do povo Emberá, juntando-se a elas na criação da sua própria comunidade trans*futurista.

Aribada”, uma obra com um percurso de festivais lato e impressionante, da estreia na Quinzena dos Realizadores de Cannes à passagem pelo Festival de Cinema de Nova Iorque, é um gesto notável, assente numa visão etnográfica, e capaz de captar sujeitos fílmicos habitualmente descartados.

Mergulhamos na região da produção de café da Colômbia, entre tradição e ruptura, entre trajes típicos e o reconhecer de influências ocidentais na forma de vestir. Aqui, encontramo-nos com um grupo de mulheres trans indígenas. As ‘Travesias’ são sempre ‘outro’, e ouvir a sua história é fascinante e algo melancólico. São outro na sua tribo Emberá , são outro para visitantes ou para colombianes não indígenas.

A proposta por parte da realização desta curta exibida no Queer Lisboa é criar um mundo muito próprio, só para estas mulheres trans, uma comunidade “trans*futurista”. Com uma atmosfera quase mágica e expectavelmente ritualista, vamos acompanhando a existência encantadora e bela destas mulheres, bem como o poder dos seus espíritos.

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Sem dúvida que “Aribada” é uma obra que conquistou o seu lugar no mundo e que merece a rota notável de festivais que traz no seu currículo. Todavia, é fácil apontar alguns aspectos menos felizes a esta docuficção. Como híbrido que é, o filme tenta criar um compromisso entre ficção e documentário, mas as poucas vezes em que ouvimos as vozes das nossas protagonistas, não sentimos senão o sentimento de algo que é forçado. As suas palavras nunca são orgânicas, nem tão pouco as suas performances.

Por vezes, a realização de um documentário implica conhecer, por dentro e por fora, a comunidade representada. Esse trabalho, de profunda cumplicidade, não se sente necessariamente nesta obra, onde quem está em frente à câmara nos parece algo tímido e fechado. Não obstante, a tremenda beleza da curta-metragem é inegável, tal como as suas cores, intenções e o ângulo muito único da sua escolha de tema.




SCRED TBM (KEVIN LE DORTZ, 16′)

Queer Lisboa Competição de Curtas
©Queer Lisboa

Gabriel, jovem pai e num relacionamento, leva uma vida dupla. Através de uma app e com o pseudónimo «Scred TBM», vive parte da sua sexualidade em segredo. Organiza escrupulosamente os seus encontros para nunca ser desmascarado, mas tudo muda no dia em que conhece um novo perfil.

Coesa, provocadora e incrivelmente perversa, “Scred TBM” é uma exploração da temática da homofobia interiorizada fora da norma. O nosso protagonista, Gabriel, não teve a vida mais fácil e seguiu um caminho heteronormativo do qual procura escapar através de pequenos encontros românticos furtivos. Assim se se sucede a sua rotina, até ao dia em que um evento macabro irá comprovar o quão difícil é o caminho que escolheu para si.

Este filme de Kevin Le Dortz é inteligente e provocador (apesar de não ser de forma alguma revolucionário). Parte de uma ideia base e leva-a às últimas consequências. Sem se elevar a uma categoria de excelência, cumpre com grande sucesso a sua premissa.

Finnegan Oldfield, que dá vida ao protagonista, é muito hábil nesta tarefa.

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KEREL (SEA OF LOVE) (JON CUYSON, 14′) 

Kerel no Queer Lisboa '23
©Queer Lisboa

Preso num navio de carga durante o confinamento, Kerel, um marinheiro gay filipino, escapa através da sua memória e relembra o seu complicado passado, presente e futuro.

Mais um híbrido ou docuficção,“Kerel (Sea of Love)” é uma obra que se vê ancorada na memória, algures entre a imagem filmada e as stills paradas da fotografia.

Um refúgio para o protagonista, este “Kerel” é uma reflexão não sequencial que trata de temas como identidade ou migrações. Visualmente, as imagens a preto e branco que se sucedem são estimulantes e encantadoras (e ricas também, promovendo o encontro entre imagem de arquivo, filme e texto). Tematicamente, existe muita dispersão, intencional, que não nos permite conectar inteiramente com o protagonista.

Não obstante, “Sea of Love” é muito rico na criação de atmosfera, com um sentimento de saudade e melancolia que ameaçam devorar-nos a qualquer instante.




WARSHA (DANIA BDEIR, 16′) 

Queer Lisboa Warsha Sundance
©Queer Lisboa

Um operador de gruas em Beirute oferece-se para cobrir um turno numa das gruas mais perigosas, onde será capaz de encontrar a sua liberdade.

E se o melhor se reserva para o fim, parece ser mesmo essa a lógica subjacente a esta primeira sessão competição de curtas do Queer Lisboa em 2023. “Warsha”, vencedor do Prémio do Júri para Ficção Internacional no Festival de Sundance, é uma curta verdadeiramente bem conseguida e capaz de fechar esta projeção em chave de ouro.

Somos apresentades a Khansa, na pele de Mohammad, um migrante sírio que se submete a uma provação arriscada para poder cumprir o seu sonho performantivo em paz – treinar a sua rotina drag, aquela que é só para si, suprimida por uma sociedade com grande fervor religioso e que não aceita tais manifestações culturais.

Mas no topo de uma grua, de um “monstro” de grua aliás, Mohammad veste a sua pele mais genuína e é com perícia que a realizadora Dania Bdeir nos permite voar mais alto e sentir a êxtase do protagonista. Visualmente, “Warsha” é deslumbrante, com planos aéreos vertiginosos e golden hour abundante. O que não falta em curtas-metragens são ideias por concluir, mas este pequeno filme é coeso e encantador.

O comentário social está lá, bem forte, sem que seja necessária uma crítica transmitida através das palavras. Quanto aos estímulos sensoriais, vão do medo à vertigem, da compaixão ao êxtase com notável habilidade.

Entre 22 e 30 de setembro, o Queer Lisboa decorre, uma vez mais na capital. Continuem a acompanhar a cobertura do nosso mais antigo festival!

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