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Queer Lisboa ’23 | Queendom, a Crítica

A 30 de setembro, a vivaz cerimónia de encerramento do Queer Lisboa 2023 foi sucedida pela exibição do documentário “Queendom”, uma peça única que nos permite mergulhar, sem reservas, na intimidade de uma corajosa e criativa ativista não-binária Russa. 

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Estreado no SXSW na primavera de 2023, “Queendom”, um documentário intimista mas com uma veia artística bem aguçada, chegou a Portugal como o grande título escolhido para encerrar o Queer em Lisboa. E que escolha, uma que tem vindo a correr mundo e que ainda neste mês de outubro passa pelo prolífico BFI London Film Festival.

A obra de Agniia Galdanova marca apenas a sua segunda incursão no reino das longas, mas a firmeza da sua realização não deixa antever qualquer imaturidade. “Queendom” apresenta-nos Gena, uma artista queer visionária, que se assemelha a um verdadeiro alien na sua cidade nativa na Rússia – Madagan, historicamente um ponto de entrada para as Gulags de Kolyma.

Gena Marvin no Queer
©Dogwoof

Madagan mune-se de uma paisagem natural fenomenal, filmada com agilidade por Galdanova. Um vale entre montanhas cobertas de um manto branco que se prolonga para lá da linha do horizonte onde regressamos por duas vezes durante a duração do filme, Magadan é um local isolado, descrito na Wiki Voyage como uma cidade isolada, remota, sem ligações férreas e com uma estrada para fora da cidade onde é impossível circular no verão sem veículos todo-o-terreno.

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É aqui que encontramos inicialmente Gena, numa altura em que ainda não havia assumido, com total liberdade, a sua persona artística e com a família a tratá-la ainda pelo seu nome e pronomes masculinos. O que nos aponta, desde logo, para um dos grandes triunfos orgânicos da longa-metragem: encontramos uma personagem principal em estado puro de crescimento. Começamos a narrativa com esta jovem ativista de 21 anos, mergulhada numa realidade onde se destaca de forma gritante, e acabamos por acompanhar, ao longo do espaço de cerca de dois anos, as suas vitórias, terrores e evolução pessoal.




A história de Gena Marvin, e a história de Magadan, de Moscovo e da comunidade queer russa colidem, mas nunca se confundem. O sentimento de lugar, de tempo e de espaço é estrondoso, à medida que o filme começa durante a crise de COVID-19 e nos leva até à temível invasão da Ucrânia. Durante todos estes eventos, a jovem Gena é a nossa luz cintilante, uma revolucionária nata que se passeia por supermercados em “full drag”, com uma visão estética aguçada e que prepara performances de índole política que ganham vida nas ruas de Magadan e posteriormente nas ruas de Moscovo e Paris.

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Gena é a heroína perfeita e parte da razão para este documentário resultar tão bem. Com os seus trajes arrojados, forte coragem e intencionalidade política e performances deslumbrantes, Agniia Galdanova tem o “trabalho facilitado” (salvo seja), na medida em que soube escolher um excelente sujeito fílmico.

Não obstante, a realizadora sabe como moldar esta sua matéria-prima de excelência. Sem nunca explorar Gena ou a sua dor como pessoa Queer numa Rússia opressora, convida-nos para a intimidade de quem filma. Conhecemos os avós de Gena, conservadores e teimosos, em particular o seu avô, mas indiscutivelmente dedicados à pessoa que reconhecem como o seu neto.

 

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E por muito que nunca compreendam as intenções de Gena, a sua fortíssima, inteligente e hilariante presença nas redes sociais (@Gena_Marvin no TikTok, @Genamarvin no Instagram, imperdível), estas duas figuras parentais que a acompanham, sempre inapropriadas e disruptivas, não deixam de a amar incondicionalmente. Aqui começa a entrar a mágoa e humanidade que permeiam o filme, que nunca nos abandonam e que nos estilhaçam a alma.

Queendom Queer
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Em Moscovo, Gena apresenta-se nas ruas de saltos gigantescos, com fatos que denunciam situações políticas e sociais, dispensando o uso de qualquer palavra. A arte de Gena é multidisciplinar – de fita cola a lixo, de arame farpado a tinta vermelha, da “profanação” de símbolos nacionais à criação de uma estética que parece vinda de outro mundo – e serve funções nobres. Gena não pretende chocar a população russa, não verdadeiramente, quer antes reivindicar espaço para uma população LGBTQIA+ que sofre um enorme apagamento na Rússia. Quer também, mais tarde, criticar a invasão da Ucrânia.




Todas estas manifestação corajosas, negras e inequivocamente queer, comprometem, naturalmente, pois falamos da Rússia de Putin, a sua segurança. “Queendom” retrata esta perseguição, sempre da perspectiva de Gena apenas se afastando dela por breves momentos para filmar uma relevante manifestação pública anti-guerra, criando um clima de tensão palpável e que inaugura uma inesperada atmosfera de medo em quem vê o próprio documentário.

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Como mecanismo narrativo, este gesto resulta, por nos fazer temer verdadeiramente pela segurança de Gena. Contudo, não se pode dizer (de todo) que o gesto de Agniia Galdanova seja cínico ou levado a cabo apenas para efeitos de manipulação emocional. Não, faz tudo parte de uma intenção de denúncia, perpetuando a consciencialização pela qual Gena tanto luta.

Gena é, do início ao fim, a força que motiva a perspectiva da obra. As suas relações familiares, as suas amizades, as personagens que a sua mente cria com aparente naturalidade e facilidade. Galdanova incorpora também algum experimentalismo bem vindo, intercalando imagens mais “clássicas” do formato documental com momentos de performance não narrativa.

Tudo isto num jogo de tensões notável, belo, convidativo e inequivocamente marcante. A dor de Gena é real, mas também o são a sua paixão e poesia.

TRAILER | QUEENDOM ENCERROU O QUEER LISBOA EM 2023

Queendom, em análise
Poster Queendom 2023

Movie title: Queendom

Movie description: Gena, artista queer de uma pequena localidade na Rússia, encena em público performances radicais que se tornam numa nova forma de arte e ativismo, e que eventualmente colocam a sua vida em perigo.

Date published: 5 de October de 2023

Country: França, Estados Unidos

Duration: 98'

Author: Agniia Galdanova

Director(s): Agniia Galdanova

Actor(s): Gena Marvin

Genre: Documentário, Experimental, Queer

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  • Maggie SIlva - 95
95

CONCLUSÃO

“Queendom” é quase imbatível no seu sentimento de intimidade, e na forma como nos imerge na vivência da nossa personagem central. A tal aspiração documental, a de retratar a vida tal como ela é, nunca é possível. A câmara pesa, escolhas são feitas. O filme de Agniia Galdanova não consegue fugir a este dado adquirido, nenhum consegue, mas sem dúvida consegue aproximar-se de forma notável. No seu âmago, uma capacidade estupenda para conseguir oscilar entre o intimista, a performance e o retrato social e político mais lato.

Pros

  • Uma protagonista carismática e inteligente, o sonho de qualquer documentarista.
  • Equilíbrio astuto entre códigos do documentário e alguma liberdade experimental.
  • A criação de um espaço mais seguro para a artista, que se sente insegura em público, mas que na lente de Agniia brilha sem limites.
  • Uma denúncia da homofobia e transfobia russa que não se baseia em palavras vazias, mas em imagens concretas. Imagens difíceis de ver, mas que devem imperativamente ser registadas.

Cons

  • Nem sempre assistimos a uma articulação perfeita entre o experimentalismo e instâncias de performance e os momentos de documentário “clássico”, com algumas transições que poderíamos considerar bruscas.
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