"O Segundo Acto" | © Alambique

O Segundo Acto – Análise

“O Segundo Acto,” intitulado “Le Deuxieme Acte” no original francês, teve as honras de abrir o Festival de Cannes no ano passado. Agora, chega às salas de cinema portuguesas, pronto a confundir audiências com suas irrealidades justapostas e noções de uma vida de perpétua performance. Louis Garrel, Léa Seydoux, Vincent Lindon e Raphaël Quenard compõem o elenco principal.

Algures na ruralidade francesa, no meio do nada, um par de namorados prepara-se para um almoço daqueles cuja carga dramática dá para sustentar todo um espetáculo. Ou, como será esse o caso, o terço de um filme. Florence leva o pai, Guillaume, decidida a apresentá-lo ao homem com quem ela quer partilhar a vida, David. Por seu lado, o namorado quer trocar as voltas à companheira e traz consigo um amigo, Willy, para facilitar o plano. É que David já não suporta Florence e tem esperança que ela se apaixone pelo outro homem e o deixe em paz. O lugar-comum é rei nesta farsa gálica com uma banda-sonora duvidosa, com escassa originalidade e ainda menos audácia.

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Algures na ruralidade francesa, quatro atores rodam um filme. David é um bissexual neurótico com medo de ser cancelado por uma qualquer transgressão moral, ao mesmo tempo que se mantém no armário. Willy tem tendência para o preconceito e o assédio sexual, levando a uma agressão por parte do colega e um nariz partido. Guillaume, por seu lado, é um veterano muito opinado que acaba de descobrir ter sido escolhido para o próximo filme de Paul Thomas Anderson. Florence é uma má atriz a perder a paciência com as tretas dos colegas e só quer terminar as filmagens para poder seguir a vida e pôr para trás esta tarde infernal.

Algures na ruralidade francesa, quatro atores rodam um filme sobre atores a rodarem um filme. O autor desta criação será uma inteligência artificial pioneira, aqui assinando a primeira produção cinematográfica escrita e realizada na sua integridade por via dessas novas tecnologias. Muito mais profissionais que as suas personagens, o elenco até se dá bem, mas têm que forçar sorrisos quando o “realizador” lhes corta o salário por umas quaisquer falhas e os custos acrescidos. Os intérpretes de Willy e Guillaume até são namorados e, terminado o dia de trabalho, ponderam adotar um cão, quiçá até o matrimónio.

Verdade ou Mentira? Vida ou Cinema?

o segundo acto critica
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Estas três histórias sobrepõem-se no “Segundo Acto” de Quentin Dupieux, sendo que a terceira dimensão será aquela mais próxima de uma realidade objetiva dentro da lógica interna da narrativa. Não que objetividade exista na arte e muito menos no cinema deste provocador francês cuja obra tem tipificado o dadaísmo cinematográfico no século XXI, transcendendo o surreal na direção de algo ainda mais marcadamente irracional. Neste caso, contudo, há uma certa ordem no projeto, um exercício de mise en abyme onde as considerações de Dupieux sobre performance se destacam acima de qualquer outro elemento.

Nesse sentido, podíamos entender “O Segundo Acto” como um primo afastado de “Yannick,” onde o cineasta havia usado uma peça de teatro interrompida e sequestrada como alicerce para temáticas semelhantes. Refiro-me principalmente à ideia da vida enquanto performance, a nossa realidade material enquanto palco, plateau, espaço do espetáculo que cada um atua para um público simultaneamente inexistente e absoluto. Não que Dupieux se fique pelo cliché Shakespereano, preferindo puxar a coisa para um registo reminiscente de Buñuel, onde o artifício da interação e da norma social abre as portas para uma realidade irrealizada.


Ou melhor, para uma irrealidade capaz de nos abrir os olhos para arbitrariedades humanas e seus absurdos. No imaginário de Dupieux, poderíamos supor que a vida é um filme, alguma comédia negra onde nada faz sentido em jeito convencional e a única maneira de sobreviver à loucura é rendermo-nos a ela. E, para tudo isto funcionar, o que aparece em cena é sempre meio banal, anódino com intenção, como se o realizador torcesse o nariz perante a expectativa de algo mais emocionante ou espetacular. Não é um cinema fácil, mas cativa alguns fãs seletos. Confesso que me conto entre esses adeptos de Dupieux.

No entanto, não estou aqui para montar a defesa incondicional da sua obra. De facto, serei o primeiro a dizer quando as experiências estapafúrdicas do francês fracassam, como será o caso de “Wrong Cops” e do frustrante “Incrível, mas é Verdade.” Esse segundo título padece de um problema muito comum na filmografia do artista, partindo de uma premissa intrigante com que, depois, não sabe trabalhar e acaba em reticências acidentais. Mais do que terminar, essa comédia parecia perder o fôlego e ideias à medida que avançava, um ofego asmático em forma de filme. “O Segundo Acto” tem quase o problema inverso.

Um filme menor com grandes atores.

o segundo acto critica
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A ideia da quarta parede derrubada traz alguma comédia às primeiras passagens da fita, mas rapidamente tomba na redundância. Salvamento vem com um empregado de mesa figurante cuja inabilidade para conter os nervos e servir o vinho suscita toda uma crise e força o esbatimento daquela primeira dimensão da história. Quando ele sai de cena com um estrondo, o choque funciona como um botão de reiniciar para os jogos de Dupieux, acrescentando novos fascínios ao projeto que, até aí, arriscava a redundância senão até o tédio de um público saturado, pelos cabelos, talvez até em revolta contra o filme.

Infelizmente, este movimento crescente também significa que “O Segundo Acto” se torna mais incoerente à medida que o fim se aproxima. A ambivalência para com a IA parece-me especialmente despropositada, qual piada fácil com que Dupieux não consegue produzir algo mais que um riso incrédulo e de curta duração. Por falar em duração, convém dizer que “O Segundo Acto” nunca cansa pelo simples facto de nem aos 90 minutos chegar, ficando-se pela pequenez de um esboço sem ambições maiores que si. Numa perspetiva ingrata, talvez descreveria o filme como uma obra menor que sabe que o é, não tem problemas com isso, nem pede desculpa pela sua condição.

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Mas, se é filme menor, isso não significa uma ausência de grandes nomes na equipa e as ideias fortes já mencionadas. “O Segundo Acto” reúne alguns dos melhores atores franceses da atualidade, incluindo esses muito-amados frutos do nepotismo que são Léa Seydoux e Louis Garrel. Depois temos Vincent Lindon cujo legado já lhe poderia valer o estatuto de lenda viva, enquanto Raphaël Quenard é uma estrela em ascensão. Por fim, Manuel Guillot completa o elenco como o figurante cuja angústia torce o tom da obra e precipita as reviravoltas finais que tanto me deleitaram. Ainda ficaria mais contente se “O Segundo Acto” estivesse disposto a subverter ainda mais o imperativo da lógica como os melhores trabalhos de Quentin Dupieux têm feito, mas fica sempre aquém desses triunfos do supremo Dadá cinematográfico.

Conclusão:

  • “O Segundo Acto” é mais convencional e fiel a lógicas internas que as melhores e mais mirabolantes obras de Quentin Dupieux. Mesmo assim, consegue tecer uma tapeçaria agradavelmente bizarra, entrelaçando três verdades sobre o mesmo encontro de quatro indivíduos num restaurante perdido algures em França. Prefiro este autor quando ele é ainda mais doido, deixando-se levar pela irracionalidade das suas ideias. Aqui, tudo se manifesta em boa ordem, muito limpo e fechado.
  • Não que o filme tenha algo a que se possa chamar de começo ou final. Trata-se, portanto, de um segundo acto em muito mais que título, como que inserido a meio de três ou mais narrativas cuja forma total só mesmo Dupieux deve saber. Mas é claro que isso pode tornar o trabalho mais comercial em comparação à maluquice de “Rubber,” “Wrong” e “100% Camurça.”
  • A maior mais-valia será mesmo o elenco, com destaque para Manuel Guillot. Há uma certa justiça cósmica na meta-textualidade deste desconhecido capaz de ofuscar nomes tão sonantes como Garrel, Seydoux e Lindon.
Overall
6.5/10
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