A narrativa familiar de "Superstore" diz adeus na televisão portuguesa em 2022 |©FOX Comedy

Superstore | série completa em análise

“Superstore”, comédia de local de trabalho criada por Justin Spitzer e emitida originalmente entre 2015 e 2021, é uma celebração da dignidade de trabalhadores esquecidos mas essenciais  – os funcionários de grandes cadeias de supermercados. A série esteve no ar durante seis temporadas e chegou recentemente ao fim.

Em Portugal, a última temporada estreia na FOX Comedy no dia 19 de janeiro, às 13h10, a arrancar com o capítulo “Essential”. Emite de segunda a sexta-feira, sempre em dose dupla.

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Atenção: Contém spoilers ligeiros relativos à totalidade da série (temporada 1 a 6)

COMO A COMÉDIA DE SITUAÇÃO NO LOCAL DE TRABALHO SE MULTIPLICOU

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A versão americana de “The Office” na NBC, uma das grandes casas das sit-coms| © NBC Universal Television

“Superstore” é uma comédia situada no ambiente de trabalho, um sub-género que se insere dentro das narrativas de comédia de situação e que tem vindo a desenvolver um grande legado. Começou com “The Office” e teve continuação com outros conteúdos afins, como por exemplo “Parks& Recreation” ou “Brooklyn 9-9”, todas elas séries que partilham em si vários nomes de produtores e argumentistas em comum, como Dan Goor (“Grand Crew”) ou Mike Schur (“The Good Place”).

Quanto a esta série, o seu criador Justin Spitzer é também ele um discípulo de “The Office”, tendo servido como produtor e argumentista da versão americana do conteúdo britânico originalmente criado por  Ricky Gervais e Stephen Merchant e adaptada por Greg Daniels (“Upload”) para a audiência americana, onde a série voou mais alto e durou muito mais anos. Daniels acabou por ser assim um pouco o pai da comédia de ambiente de trabalho nos Estados Unidos, influenciando um número significativo de outras vozes no género cómico. 

Para Greg Daniels, a magia de “The Office”, que muito assimilada foi pelos seus “discípulos”, é colocar um conjunto de personagens surreais num ambiente mundano e aborrecido, para que estas se possam destacar e brilhar.

UM BANDO DE DESADEQUADOS SOCIAIS E EXCÊNTRICOS

Superstore série completa em análise
Jonah, Amy e Mateo são parte do coração de “Superstore” |©FOX

Justin Spitzer aprendeu esta lição como ninguém, colocando as suas personagens para lá de excêntricas no ambiente de uma grande cadeira de supermercados e retratando as suas aventuras e desventuras enraizadas no quotidiano de uma pequena povoação munida de um enorme supermercado que tentar sobreviver aos desafios da era digital.

A série explora um grupo de funcionários que trabalham no armazém e na loja do grande hipermercado “Cloud 9”, parte de uma cadeia internacional, aqui representada pela loja de St. Louis, Missouri. A protagonista da série é Amy (America Ferrara, estrela revolução da comédia dramática “Ugly Betty”), a empregada mais interessada e inteligente da loja, gerente do piso quando a série começa e grande executiva no grupo aquando da sexta temporada. Amy Sosa é inteligente e trabalhadora, mas uma gravidez na adolescência acabou por deitar por terra os seus sonhos. Hoje, 15 anos depois de estar a trabalhar nesta Superstore, continua a culpar-se pelo seu erro.

Ao lado de Amy surge Jonah (Ben Feldman de “Mad Men”), um idealista e sonhador, alguém que teve todas as oportunidades na vida mas acabou por desperdiçar a sua educação académica e encontrar o seu caminho até esta “Cloud 9”. Apresentado no episódio piloto como alguém que se parece considerar “acima” do trabalho de empregado de supermercado, ele e Amy batem-se e têm uma picardia frequente que apenas poderia, como anunciado desde o primeiro instante, acabar numa relação amorosa estável. Juntando-se à trindade de personagens ditas “normais” ou funcionais temos Garrett (Colton Dunn, “Key and Peele”), o funcionário responsável pelos anúncios que, apesar de se encontrar numa cadeira de rodas, recusa-se a ser vitimizado por seja quem for. Vence pelo seu humor sarcástico constante.

 

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“Superstore” é uma verdadeira série de elenco |©FOX

Por aí adiante é só “desgraça”, sendo as restantes personagens mais excêntricas do que o comum dos mortais, começando pela adolescente Cheyenne (Nichole Bloom), aparentemente demasiado burra para funcionar, ou passando ainda por Glenn (Mark McKinney), o amável gerente da loja que é também um fanático religioso e uma pessoa que se assemelha, no seu âmago, a um bebé gigante.

Para completar o ramalhete temos a lasciva Dina (Lauren Ash), o braço direito do gerente da loja, uma mulher de armas, forte, intransigente e apaixonadíssima pelos seus muitos pássaros; o perfecionista e ambicioso Mateo (Nico Santos) ou ainda Marcus (Jon Barinholtz), um idiota em todos os sentidos da palavra ou a não intencionalmente hilariante Sandra (Kalili Kauahi), uma senhora desprovida de coluna vertebral. 

As suas personalidades entram em conflito direto de forma frequente, não fossem todos eles tão diferentes, mas aqui reside grande parte do encanto deste bando de excêntricos. Por outro lado, o facto de serem, por vezes, estereótipos ambulantes ou demasiado exagerados para parecerem reais não é um problema que se manifeste contra as personagens de “Superstore”. Isto porque todas elas têm um arco de evolução bem pronunciado: Amy aprende a relaxar e evolui do ponto de vista profissional, Jonah compreende que a vida não é só brincadeira, Mateo enfrenta problemas de imigração com maturidade e coragem, Marcus parece até mais inteligente quando chegamos ao fim, Dina aprende a abrir o seu coração e Cheyenne até não é de todo má mãe quando aterramos na reta final.

 

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O caos tende a reinar nesta “Cloud 9” |©FOX

 

Entre todo o absurdo que envolve o quotidiano nesta loja, entre as reuniões aborrecidas e as lutas, jogos, tornados e nevões que ameaçam destruir a loja, “Superstore” é capaz de nos recordar, ao longo de seis temporadas, quão importante é o calor e a energia humana, quiçá insubstituíveis quando equacionamos o emergente comércio online.

SUPERSTORE COMO A CANÇÃO DOS HERÓIS ESQUECIDOS – DESRESPEITO E SINDICATOS 

Personagens Superstore T6
A T6 lida com a crise da COVID-19 |©FOX Comedy

Como série de comédia, pode-se dizer que “Superstore” foi sempre severamente esquecida e deixada de lado – um pouco à semelhança dos seus heróis. Os protagonistas destas aventuras são os funcionários de um grande hipermercado, o tipo de personagem que é apenas passageiro ou funcional quando falamos na esmagadora maioria das séries e filmes. Ninguém quer saber deste tipo de personagem, nem sequer de quem estas pessoas são na vida real.

Na 6ª temporada, mais frágil perante a saída de America Ferrara (mas encerrada em chave de ouro e com a protagonista de volta),  perante a intromissão da crise pandémica, que é traduzida da vida real para o pequeno ecrã, as personagens de “Superstore” têm a oportunidade de ser honradas como os trabalhadores essenciais, na primeira linha de combate à pandemia. As suas necessidades – o caos na loja, a falta de stock, de materiais de proteção individual, de informação, de recursos em geral, todas estas matérias bastante sérias são transversais à temporada.

Não obstante, bem antes dos esforços dos heróis da “primeira linha” serem contemplados em “Superstore” com o seu último ano, já esta era uma série com uma temática raríssima, quase inédita na televisão americana – esta é uma série sobre Direitos dos Trabalhadores. “Sindicato” e “Sindicalização” são termos-chave ao longo de várias temporadas, e muitos dos atentados contra estes funcionários estão em primeiro plano ao longo da narrativa, inclusive tratados com incrível seriedade e até mediante o sacrifício dos próprios atores. A certa altura, uma America Ferrara que há pouco tempo tinha dado à luz, surge cansada e desmaquilhada em cena a ilustrar a desumanidade que é um estatuto existente nos EUA – a não obrigatoriedade de conferir licença de maternidade.

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A questão da licença de maternidade é mencionada em duas ocasiões distintas, e numa delas até origina um despedimento e uma enorme greve por parte dos funcionários da loja. E entre greves e reivindicações laborais, os episódios de “Superstore” não deixaram de ser engraçados e extremamente humanos por lidarem com matérias tão sensíveis e pouco habituais. Por isso é que “Superstore” merecia ter recebido algum reconhecimento do ponto de vista crítico, pela sua hábil homenagem aos trabalhadores que lutam pela subida do ordenado mínimo. Contudo, ao contrário de muitas outras séries do género, “Superstore” nunca recebeu nomeações para Emmys ou sequer Globos de Ouro.

IMIGRAÇÃO E RESPEITO PELAS CULTURAS DEMAIS 

Finale Superstore
Mateo, Chey, Amy, Marcus,

Há quem critique “Superstore” por ser um conteúdo demasiado moralista ou cheio de si próprio. Há alguma legitimidade nestas palavras, em particular para quem queira que o seu humor seja apenas físico ou circunstancial. Claro que o que não falta nesta comédia é humor de circunstância e humor físico que se prende com jogos e lutas, mas há várias cruzadas assumidas pelos seus criadores. Uma delas, bem presente desde o início, é a da apropriação cultural. Como latina, America Ferrara sempre foi muito sonora em relação ao facto de não gostar de ser colocada numa caixa – nunca teve sotaque como latina nativa dos EUA, filha de emigrantes que tanto amam os EUA que lhe chamaram precisamente “America”.

Ao longo de todas as temporadas, existe um esforço de consciencialização do público em relação à pluralidade das culturas – quer falemos da cultura dos países da América latina, do Hawaii, Italiana, sendo ainda brevemente abordada a temática do racismo sistémico, sempre através de esforços humorísticos concertados.

As matérias de emigração são personificadas pela personagem Mateo (Nico Santos), um jovem trabalhador que, à semelhança de tantos outros, emigrou jovem para os EUA sem saber que a sua documentação era falsa. Confrontado com um potencial regresso não desejado às Filipinas, Mateo é em “Superstore” a face da luta contra as deportações sumárias e cruéis e as desnecessárias detenções em centros de membros produtivos da sociedade. A jornada de Mateo é suave, não retratando a crueldade real dos centros de detenção, a qual é maravilhosamente refletida na última temporada de “Orange is the New Black”. Ainda assim, é raro vermos esta temática tão sensível tratada durante longos períodos de tempo num registo cómico e, só por aí, “Superstore” já merece que este ato corajoso lhe seja aplaudido.

Por se manter sempre equilibrada entre a comédia e o dramedy, mas sem nunca pender efetivamente para o drama, “Superstore” manteve-se um conteúdo com alto valor de entretenimento do início ao fim, não obstante quão sérias possam ser as suas temáticas – de direitos dos trabalhadores a direitos LGBT, de liberdade religiosa a liberdade sexual, de misoginia a racismo. Em “Superstore” fala-se de tudo um pouco e sempre com muito humor tolo à mistura.

A última temporada de “Superstore” exibe na FOX Comedy , de segunda a sexta às 20h00, a partir de 19 de janeiro. As primeiras cinco temporadas estão disponíveis para streaming na Netflix e na Amazon Prime Video

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