TIFF ’24 | O cinema do festival faz intrigas no Vaticano e musicais no México
Selena Gomez e Zoë Saldaña vieram ao TIFF apresentar “Emilia Pérez,” um musical ensandecido que já lhes valeu um prémio em Cannes. A seguir vêm os Óscares?
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O quinto dia do Festival de Toronto fez-se no habitual jogo de contrastes. Por um lado, temos obras obscuras, vindas de países com indústrias subdesenvolvidas que dependem do circuito dos festivais para se fazerem ver. Por outro, há os futuros campeões de bilheteiras e fitas sedentas de Óscar, que vêm ao TIFF principalmente para consolidarem o burburinho mediático antes da estreia comercial. E que circo dos media se sentiu na baixa de Toronto. A presença de Selena Gomez no tapete vermelhe criou um descomunal engarrafamento, com gente desesperada para ver nem que fosse um singelo soslaio do seu ídolo. Mas antes de falarmos do seu musical mexicano, há que fazer outras paragens pelo mapa mundo do cinema.
Abram alas para o cinema da Somália
“The Village Next to Paradise” de Mo Harawe fez furor quando estreou na Croisette, em maio deste ano. Assim se assinalou a rara presença Somália nos festivais europeus e se anuncia uma nova voz a seguir para cinéfilos de gostos aventurosos. Trata-se de uma estreia para Harawe, sua primeira longa-metragem, mas já se sente a confiança de um autor consagrado. De facto, o primeiro ato da história é um feito engenhoso. Começa-se por contextualizar a ação numa agressiva campanha militar na Somália pela parte das forças Americanas, manifestada principalmente no uso de drones assassinos e outras armas aéreas. A colagem de telejornais é intensa, preparando-nos para um tom agressivo que o filme não vai cumprir.
De facto, sem aquele prólogo, dificilmente se entenderiam os argumentos políticos da fita, seu comentário na presença do ‘Oeste’ no ‘Sul Global.’ Só o som revela a ameaça dos céus. Isso e a tensão que sobressalta as figuras humanas, um laivo de medo depressa resvalado para a resignação de quem já se teve de habituar a este quotidiano violento. Aí, Haware parte para um retrato coletivo da família, traçando o seu fado e eventual separação, uma tragédia que, mesmo assim, deixa espaço para alguma esperança. Se há uma fragilidade a apontar na obra serão os seus ritmos frouxos, reveladores da indisciplina na mesa de montagem. Mas enfim, ainda é um cineasta estreante. Aplaudimos ardentemente, ao mesmo tempo que esperamos melhor para a próxima.
“Conclave” deleita e desilude
O Papa morreu. Assim começa a primeira longa-metragem do alemão Edward Berger depois do sucesso de “A Oeste, Nada de Novo.” Em repetição dos modelos passados, ele volta a dedicar esforços a uma adaptação literária, escolhendo o best-seller de Robert Harris como nova vítima. Não que o original literário seja especialmente vitimado pelo guião. Trata-se de um trabalho feito com relativa fidelidade, mesmo quando isso pode prejudicar a qualidade geral do projeto.
Diga-se de passagem, “Conclave” veste o figurino do realpolitik, mas é uma telenovela com os traços sensacionalistas. Em forma de filme, faz lembrar um daqueles livros leves que se compra no aeroporto antes de um voo comprido. Fala-se de Óscares no futuro, mas esses troféus deviam focar as atenções noutro sítio qualquer. Isso não quer dizer que “Conclave” seja só desméritos. Há muita qualidade neste aspirante a blockbuster e o fator do entretenimento não se pode descontar. Fazem-se as honras a uma fotografia notável e um design sem mácula, uma sonoplastia forte e a exultação dos ritmos de um thriller à moda antiga. Além do mais, estamos perante um elenco composto quase exclusivamente por grandes nomes e poucos são os que saem do filme com razão para vergonha. Stanley Tucci, John Lithgow, Isabella Rossellini e tantos outros estão de parabéns.
Dito isso, “Conclave” pertence ao seu protagonista, o cardeal camareiro encarregue de supervisionar as eleições do novo papa e desvendar os segredos dos seus colegas. Ver Ralph Fiennes é como ouvir uma sinfonia cuja mestria se conta tanto pelas notas tocadas como nas que se mantiverem em silêncio. Um momento de paz interna na face da inocência é especialmente forte, um dos grandes feitos do ator em anos recentes. Duvidamos que ele consiga a glória de prémios e tudo o mais, mas uma onda de amor por Fiennes não seria o pior fado que podia ocorrer na temporada que se avizinha.
O caos musicado de “Emilia Pérez”
Como acontece todos os anos, o TIFF coincide com o arranque da temporada dos prémios. Em certa medida, quase se sente como o ponto de partida para a corrida do ouro. Isso quer dizer que, em termos de cinema internacional, há muitos países a selecionar o seu representante para os Óscares durante a passagem desses títulos por Toronto. No caso de França, três dos quatro finalistas tiveram a honra de se mostrar ao público canadiano – “All We Imagine as Light” de Payal Kapadia, “Misericordia” de Alain Guiraudie, e “Emilia Peréz” de Jacques Audiard.
Nas muitas festas organizadas pela Netflix, não se falava de outra coisa, tendo a companhia comprado os direitos da fita quando passou em Cannes. Nesse mesmo festival, “Emilia Peréz” consagrou-se com dois prémios. Foram-lhe atribuídos o galardão Especial do Júri – uma espécie de medalha de bronze – e um troféu coletivo para o seu elenco feminino. Ao todo, quatro atrizes saíram de Cannes com troféus, inclusive a primeira mulher trans a realizar tal proeza em toda a história do festival. No papel titular de uma traficante conhecida como homem que transiciona e se assume como mulher, Karla Sofía Gascón está excelente e até pode fazer mais história nos meses que se aproximam. Se ela conquistar a tão desejada nomeação da Academia de Hollywood, será também uma estreia para os Óscares. Ela e Adriana Paz são o melhor da obra e merecem toda a aclamação do mundo.
Saldaña e Gomez também se safam, mas a primeira tem o azar de interpretar um papel cujos principais desenvolvimentos narrativos ocorrem fora de cena. Esse é só um de um milhão de problemas em “Emilia Pérez,” um filme que se faz de apoiante de causas queer e depois cai numa litania sem fim de clichés, preconceitos e até umas piadas ofensivas lá metidas pelo meio. O retrato de México contemporâneo não lhe fica atrás em atrocidade e diz-se o mesmo da forma fílmica. Nem as músicas se salvam neste pandemónio, mesmo que algumas fiquem no ouvido, qual infeção sem cura.
“Else” propõe um romance em estilo ‘body horror’
O dia, ou a noite, terminou com uma proposta terrorífica na secção Midnight Madness. Como sempre, a sessão teve direito a brincadeiras com o público e muito alarido, até ao ponto em que se sentia uma eletricidade no ar, essas energias misteriosas que se geram na proximidade de muitos amantes do terror. Gostaríamos de dizer que “Else” de Thibault Emin merece o forrobodó, mas estaríamos a mentir. Ou melhor, alguns elementos merecem-no por completo.
Só na generalidade é que obra perde, nunca conseguindo escapar à noção de que é uma curta-metragem esticada além do que a história sustentava. Neste caso, trata-se de uma história de amor em tempo pandémico. No entanto, não é o COVID-19 que atormenta as personagens. Será um vírus demente que funde a matéria animal com os espaços que habitam. Uma das primeiras vítimas que vemos literalmente se funde com o pavimento, perdendo a humanidade entre o asfalto feito carne.
É assim que um hipocondríaco maniento se vê a partilhar casa com uma jovem caótica com quem havia partilhado uma noite antes do mundo entrar em colapso. Apesar da sua ligação nunca convencer ao nível emocional, os efeitos práticos e a cenografia da fita são geniais e valem o preço do bilhete. Não esperem um conto coerente, uma meditação sobre a pandemia com alguma profundidade, e estarão bem predispostos a se divertirem com “Else”.
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No próximo capítulo desta odisseia do TIFF, falaremos novamente de protestos e controvérsias políticas, culminando na proibição de um programado. Até câmara municipal se pôs ao barulho. Não percas!