A Última Sessão de Freud, a Crítica | Anthony Hopkins é o pai da psicanálise
Em “A Última Sessão de Freud,” Anthony Hopkins e Matthew Goode dão vida a Sigmund Freud e C.S. Lewis num debate dramático sobre a existência de Deus.
Conversas impossíveis entre personalidades conhecidas são um modelo narrativo e retórico que há muito singra. Ora no panorama da filosofia clássica ou na literatura moderna, esses diálogos permitem a troca de argumentos em jeito Socrático, normalmente focados em questões de moral, política, crença, fé. Mas há interações que transcendem esses preceitos comuns. Muitos dramaturgos têm imaginado um encontro entre as Rainhas Isabel I e Maria da Escócia, e, até no foro da moda, Prada e Chanel têm servido para protagonizar discussões ficcionadas. Através disto, autores contemporâneos podem debater vários temas através do passado ressurreto.
Terá sido esse o ímpeto que levou Armand Nicholi a escrever “The Question of God,” um romance onde imaginou uma tarde passada entre Sigmund Freud e C.S. Lewis nos últimos dias da vida do psicanalista. Dessa prosa nasceu um texto dramático, uma evolução lógica para um trabalho tão apoiado na interação de dois indivíduos num espaço e tempo limitado. Mark St. Germain assinou a peça, trazendo a conversa imaginada para os palcos e, mais tarde, a grande tela. Foi ele também que adaptou a peça e a tornou em argumento de cinema, levando estes Freud e Lewis ficcionados ao mercado de Cannes, onde o projeto levantou voo.
Assim nasceu “A Última Sessão de Freud.” Foi Matthew Brown quem realizou a obra, situando-a numa réplica da moradia de Freud em meados de 1939. De facto, esse espaço é um dos grandes triunfos do filme, desenhado pela cenógrafa Luciana Arrighi, cuja filmografia inclui alguns dos dramas de época mais amados do cinema Britânico das últimas décadas. Ela até já ganhou um Óscar pelo seu trabalho, um fado que não se repetiu com o diálogo Freudiano. Não que isso indique qualquer falta de qualidade. Na verdade, “A Última Sessão de Freud” evidencia todas as suas mais-valias enquanto designer, apoiando-se numa pesquisa quase arqueológica.
Já se referiu a natureza de réplica que esses espaços domésticos têm, mas vale a pena sublinhar a ideia. Arrighi levou a atenção ao detalhe até às antípodas da obsessão, a tal ponto que, quando a rodagem terminou em Dublin, muito do interior foi doado ao Museu de Freud em Londres. Esse preciosismo resulta num realismo imersivo, pelo menos a nível material. A casa sente-se tátil através do ecrã, transcendendo a ilusão da imagem projetada para transmitir a ideia de uma casa com vida real, cheia de traços pessoais, relíquias de existências passadas entre quatro paredes. Nesse sentido, o filme alcança um realismo profundo.
Das páginas para o palco para o grande ecrã.
É uma pena, portanto, que Brown faça pouco uso dessa qualidade na sua encenação. Note-se um trabalho de câmara enfadonho, com poucas ideias visuais, que jamais perscruta os recantos desse espaço detalhado com o apreço merecido. Há uma certa passividade no registo, talvez até uma alienação. Observamos a conversa à distância e até o grande plano, bem apertado na cara dos atores, parece insuficientemente íntimo. Fez-se a transição do palco para o plateau, mas a barreira do espaço teatral manteve-se. Nos seus piores momentos, “A Última Sessão de Freud” arrisca cair na mediocridade do espetáculo filmado.
Talvez por isso, Brown tenha levado o diretor de fotografia Ben Smithard a uma estética tão friamente estilizada. A cor foi calibrada para níveis fracos, meio mortiços, conferindo ao drama o aspeto de um mausoléu onde todos os intervenientes reluzem com a palidez marmórea de um cadáver embalsamado. Só pela noite, quando a chuva brilha como cristal a cair do céu é que estas escolhas visuais demonstram alguma expressividade e vingam enquanto estratégia. Enfim, no contexto da forma, “A Última Sessão de Freud” desaponta, mas também nos questionamos se essa será a razão principal para ver a fita.
São as ideias discutidas e a prestação do elenco que mais importam para um projeto deste género e, nesse aspeto, há muito pano para mangas naquilo que Brown e Germain engendraram. Com base no trabalho começado com o romance de Nicholi, o diálogo socrático tanto permite a discussão de ideias sobre o divino como ilumina a psicologia das duas mentes em duelo intelectual. Sente-se alguma superficialidade no texto, mas isso deve-se mais aos limites do modelo dramático que à falha do argumento. Acima de tudo, sente-se uma qualidade quase apocalíptica no fatalismo de Freud, uma raiva contra um mundo entre guerras onde o sofrimento é constante.
Visões e memórias, o conflito da filha devota, e uma certa ingenuidade pia vinda de Lewis complicam as questões – nem sempre para o bem do filme – mas é sempre o retrato de Freud que salta à vista como a alma deste trabalho. Por isso mesmo, Anthony Hopkins é o centro da ficção, a peça que, se removida, faria com que todo o edifício cénico desmoronasse sobre si mesmo. Como Sigmund Freud, ele é uma alma em suplício, distraído pelas dores de um cancro que lhe corrói o corpo ao mesmo tempo que a sua alma se defende das indagações de Lewis. Não há animosidade entre os dois, mas uma violência da crença e da dúvida em colisão.
Anthony Hopkins é magistral como Sigmund Freud.
Depois de “O Pai,” “O Filho,” “Armageddon Time” e tantos outros filmes recentes, o ator galês parece estar a viver um renascimento profissional e “A Última Sessão de Freud” é mais uma joia interpretativa para juntar ao seu espólio de tesouros. Apesar das pressões históricas, do espectro da Morte e a influência da morfina, o seu Freud vibra com clareza alucinante, uma lucidez que trespassa a fita e arrasa com o restante elenco. Vencedores no debate não os há, mas é o Freud de Hopkins quem nos fica na memória e nos assombra os dias a seguir ao visionamento. Não que Matthew Goode seja uma mediocridade qualquer como C.S. Lewis.
O autor das “Crónicas de Nárnia,” essa fábula com temas religiosos por meio da fantasia juvenil, traz consigo um raio de esperança que nunca consegue contrariar a escuridão de Freud e do período histórico retratado. Goode demonstra isso bem, sem ter a oportunidade para aprofundar a figura, mesmo quando o texto constrói paralelos entre as infâncias dos dois pensadores. Também não ajuda que Anthony Hopkins já tenha interpretado C.S. Lewis no “Shadowlands” de 1993, um filme com problemas semelhantes a esta “Última Sessão de Freud” que, mesmo assim, faz mais justiça a Lewis. Parece que só há uma verdade inegável no meio disto e não é nem a confirmação ou nega da existência de Deus. A grande verdade é que Anthony Hopkins só há um e, quando está em topo de forma, o seu talento eleva qualquer filme.
A Última Sessão de Freud, a Crítica
Movie title: Freud's Last Session
Date published: 7 de August de 2024
Duration: 108 min.
Director(s): Matthew Brown
Actor(s): Anthony Hopkins, Matthew Goode, Liv Lisa Fries, Jodi Balfour, Jeremy Northam, Orla Brady, George Andrew-Clarke, Rhys Mannion, Pádraic Delaney, Stephen Campbell Moore
Genre: Drama , 2023
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Cláudio Alves - 55
CONCLUSÃO:
Anthony Hopkins é um Sigmund Freud soberbo e atormentado, oferecendo ao espetador um retrato do psicanalista onde o sofrimento físico se mescla com as dores de uma mente fatalista. Tal trabalho arrasa com tudo o resto em “A Última Sessão de Freud,” um diálogo socrático em forma de filme que talvez nunca devesse ter saído dos palcos. O resto do elenco faz o que pode e a concretização visual do passado tem o seu mérito, mas esta fita é principalmente para fãs do ator.
O MELHOR: Hopkins, pois claro, com a cenografia de Arrighi a merecer aplausos também.
O PIOR: A fotografia displicente, a narrativa paralela de uma filha insatisfeita, a superficialidade da troca de ideias quando se pensa na densidade concetual em jogo.
CA