O estilo docemente venenoso de Um Pequeno Favor
A figurinista Renée Ehrlich Kalfus fez de “Um Pequeno Favor” um dos filmes mais bem vestidos do ano, especialmente no que diz respeito ao guarda-roupa andrógino de Blake Lively e à infantilidade dissimulada das roupas de Anna Kendrick.
“Um Pequeno Favor” é uma endiabrada subversão do thriller de mistério banal, estando mais próximo de uma paródia venenosa do que de “Em Parte Incerta”. Parte dessa tonalidade subversora devém da sua estética, muito colorida, cheia de referências a estilos retro e muito dependente do tipo de modas populares nas redes sociais como o Tumblr ou o Instagram.
Tendo em conta que uma das personagens principais é uma vlogger, essa referência faz bastante sentido. Ela é Stephanie, uma viúva cuja melhor amiga, a abrasiva e misteriosa Emily, desaparece sem deixar rasto. A vlogger que dá dicas de estilo de vida rapidamente se torna detetive amadora e descobre que nem tudo é o que parece.
Pelo caminho, há muitas mudanças de figurino e umas viagens ao armário de Emily, de onde Stephanie desencanta um sedutor vestido preto que não lhe serve. Além disso, o filme chama várias vezes atenção aos figurinos, quer seja na admiração que Stephanie tem pela elegância de Emily ou no desdém que um designer de moda pomposo tem pelo lenço da Hermés que Stephanie usa numa tentativa de parecer mais sofisticada.
Em suma, este é um filme onde roupas e a imagem exterior das personagens importa tanto ou mais que o diálogo expositivo. A relação entre as duas mulheres é ilustrada e complementada pelos figurinos, quer estão sempre em diálogo silenciosos entre si e com os ambientes habitados pelas personagens, quer seja casarões modernistas ou campos de férias religiosos.
Além do mais, é nos figurinos que reside muito do humor do filme, que brilha em instantes de exagero e excesso. Há poucas coisas mais excessivas ou chocantes que uma mulher adulta a se pavonear com meias cheias de gatinhos amorosos. Pelo menos, assim é no mundo de traições e esquemas sangrentos deste thriller.
Para continuares a ler esta exploração do guarda-roupa de “Um Pequeno Favor”, segue para a próxima página. Continua aqui:
É claro que, não obstante o seu protagonismo, Stephanie está longe de ser a personagem com o guarda-roupa mais interessante de “Um Pequeno Favor”. Esse título pertence claramente a Emily, cujo armário está recheado de peças bem mais interessantes que vestidos pretos apertados. De facto, a sua entrada no filme é um dos momentos mais belos do filme, assim como um dos mais focados na sofisticação dos figurinos.
Aí, no meio de uma chuva torrencial, observamos, em câmara lenta, como Emily sai do carro. Primeiro vislumbramos um par de saltos altos de pele de cobra no piso molhado, a perna de calças azuis com riscas verticais, um casaco e colete a condizer, um colarinho em branco reluzente, longos cabelos loiros e um chapéu de abas largas para manter o mistério da face da atriz.
Esta é uma entrada de estrela e, ao longo do filme, a espetacularidade das roupas envergadas por Blake Lively só aumenta. Um fato de três peças creme que ela usa para beber martinis num cemitério é particularmente belo. O melhor de tudo são os acessórios precisos e extravagantes, como uma coleção de pregadeiras em forma de armas ou uma bengala encimada por uma caveira reluzente.
Verdade seja dita, Lively está vestida numa espécie de paródia do estilo pessoal do realizador Paul Feig, um irreverente dandy que usa fatos com flores na lapela para as filmagens. No entanto, esse piscar de olho metatextual em nada tira valor ou poder dramatúrgicos às roupas com que a venenosa Emily constrói a sua imagem.
As roupas de Emily são uma arma que ela usa para impor domínio sobre as pessoas à sua volta. Para confirmar isso, basta vermos como ela se veste em relação aos seus parceiros de cena. Quando Stephanie entra pela primeira vez em sua casa, Emily despe camadas do seu fato de linhas masculinas, incluindo a gola com bibe, cada gesto uma micro agressão em forma de strip-tease casual.
A masculinidade do seu estilo básico é uma forma de se assumir como superior e intimidante para qualquer companhia feminina, especialmente Stephanie cujo gosto por pormenores infantis e paletas pasteis a torna numa espécie de prototípica imagem de feminilidade inofensiva.
Emily sabe bem manipular a sua imagem para conseguir o que quer e os fatos não são o seu único truque estilístico. Num avião de volta aos EUA com o futuro marido, ela usa sexo para ofuscar quaisquer preocupações morais que ele possa ter em relação a um roubo que ela cometeu e o seu figurino reflete isso, abandonando as linhas masculinas em nome de uma minissaia de colegial marota. A câmara foca-se no tecido baloiçante à medida que ela desce o corredor da aeronave na direção da casa-de-banho, onde ela e Henry decidem ingressar no ‘mile high club’.
Por fim, quando todos os esquemas em jogo estão de pernas para o ar e é necessário alguém impor ordem para o clímax, Emily volta do mundo dos mortos vestida com a sua mais bizarra escolha até então. Longe das linhas masculinas dos seus fatos anteriores, Emily veste um vestido camiseiro ao estilo dos anos 50 num padrão floral com um saiote de tule rosa, como que parodiando estilos parecidos que Stephanie usou em cenas anteriores.
O choque é imediato e essa é a arma principal de Emily, surpreender a sua audiência e assim manipulá-la melhor. É claro que se ela soubesse ler figurinos poderia ver que as dinâmicas de poder se alteraram. É Stephanie quem veste as calças agora.
Para terminares esta análise dos figurinos de “Um Pequeno Favor”, com especial foco nas roupas de Anna Kendrick como Stephanie, segue para a próxima página.
Voltando à verdadeira protagonista de “Um Simples Favor”, Stephanie também sabe manipular a sua imagem como uma arma. No entanto, neste caso trata-se de uma arma mais social que Stephanie usa para projetar uma imagem de forçosa amabilidade. Ela poderia ter construído todo o seu guarda-roupa com a intenção de tirar fotografias adoráveis e expô-las no Instagram, para adoração das suas seguidoras.
Ela é uma figura das redes sociais, afinal, e a sua imagem é a sua marca e a qualidade profundamente curada e manipuladora dessa marca deixa passar uma ideia de malignidade muito antes de as facetas mais negras da vlogger serem postas ao descoberto. Por outras palavras, tal é o exagero de amorosos detalhes na indumentária de Stephanie que ela começa a parecer ligeiramente psicótica no seu otimismo risonho.
Com um casaco amarelo vivo dos Brooks Brothers e meias com um padrão de gatinhos, Stephanie é certamente alguém que não se parece inserir no mundo de mansões modernistas e martinis fortes em que Emily vive. Contudo, desde o início, que os figurinos de Stephanie parecem estar desenhados de modo a coordenarem cromaticamente com a decoração da casa da amiga, nomeadamente as pinturas que cobrem as paredes.
O estilo em si é completamente contrastante e os padrões não condizem com nada, mas as cores combinam, como que a sugerir a futura intromissão da vlogger na unidade familiar de Emily. É claro que, quando Stephanie se muda para a mansão e altera a decoração, então ela já está completamente assimilada. Não são só os guiões e os atores que contam histórias, as roupas também o fazem.
“Um Pequeno Favor” inclui muitas outras personagens coloridas, incluindo Henry Golding com ares de estrela de Hollywood Antiga no papel do marido de Emily e Rupert Friend como um aspirante a Tom Ford com muito mau gosto. No entanto, como deve ser evidente, o espetáculo principal é o do estilo combativo de Stephanie e Emily. Aliás, é no guarda-roupa das duas atrizes, que Renée Ehrlich Kalfus mais usou peças de grandes designers, como alguns fatos vintage da Ralph Lauren, e uma série de acessórios que passou uma eternidade a acumular, incluindo joalharia vitoriana para Blake Lively.
Entre este delicioso thriller humorístico, “Crazy Rich Asians”, “Ocean’s 8”, “Disobedience” e “Paddington 2” é uma pena que os Óscares raramente nomeiem guarda-roupas contemporâneos, pois todos estes filmes e seus figurinistas seriam merecedores da honra. Enfim, talvez Kalfus consiga uma nomeação para o sindicato dos figurinistas. É certo que as suas criações para esta sobremesa cinematográfica com uma pitada generosa de arsénico merecem muitos aplausos.
Não percas a oportunidade de ver todos estes lindíssimos figurinos no grande ecrã. Aproveita também e consulta os outros artigos desta rúbrica, chamada Figura de Estilo, onde exploramos o que de melhor se faz no mundo dos figurinos de TV e cinema.