Tilda Swinton em "A Voz Humana" © El Deseo

A Voz Humana | De Anna Magnani a Tilda Swinton

Exploramos as principais adaptações cinematográficas da peça A Voz Humana, de Jean Cocteau desde Anna Magnani a Tilda Swinton. 

Finalmente, depois de tantos meses de adiamentos imprevistos provocados pela pandemia, “A Voz Humana“, o primeiro filme de Pedro Almodóvar em inglês chegou às salas portuguesas em julho. Rodado durante a quarentena primaveril de 2020 e exibido ao mundo pela primeira vez na 77ª edição do Festival de Veneza, “A Voz Humana” é uma curta-metragem de 30 minutos, no qual Pedro Almodóvar explora todas as suas temáticas e remete pela milésima vez ao universo feminino.

A protagonista, a quem dá vida Tilda Swinton, é uma mulher desesperada, por uma paixão praticamente proibida, e que não sabe bem o que fazer quando o seu amante desaparece. Ficar em casa enclausurada parece-lhe a melhor opção, e enquanto percorre esse espaço – que neste caso é um estúdio de cinema/teatro do género daquele visto no filme “Dogville” (Lars von Trier, 2004) – tenta libertar-se de tamanho tormento através de uma chamada telefónica. Chamada essa feita a partir de um iPhone com ligação Bluetooth aos seus AirPods, que garantem uma certa mobilidade a esta mulher alta, magra e quase sem alma. Observamos a sua rotina quotidiana, as suas idas ao banho, à cozinha e ao quarto onde várias vezes fez amor com esse tal homem. Tudo isso acontece à medida que vai sendo consumida pela loucura e sem ela perceber o que será do dia seguinte.

A trama pode até parecer atual, mas na realidade é uma adaptação livre da peça “A Voz Humana” (em francês “La Voix humaine”) escrita para a Comédia Francesa em 1928 por Jean Cocteau (1889 – 1963). Enquanto a história original decorria em Paris, o filme-ensaio de Pedro Almodóvar situa-a em Madrid, num artificioso espaço cinematográfico que parece evidenciar essa dupla representação da história. Temos um sofrimento que para ser compreendido precisa de ser intencionalmente representado em excesso e depois disso combatido, apagado da memória. Almodóvar mantém toda a intensidade do monólogo teatral, que culminará numa eventual superação da dor e da depressão.

A Voz Humana
Tilda Swinton em “A Voz Humana” © El Deseo

De uma forma hipnotizante, onde dominam tons quentes e avermelhados, Pedro Almodóvar reforça essa ideia de distanciamento provocados pelos telemóveis nos dias de hoje, e também do quanto muitas vezes não expomos por completo as nossas emoções e deixamo-las trancadas nos nossos lares. Por muito que os curtos cabelos loiros de Tilda Swinton conseguiam esconder os AirPods, não deixa de ser uma conexão, que se faz imperativamente por voz e não por corpo. Na ausência de um, o corpo do outro comunica, por mais débil que esteja.

Não pensemos, no entanto, que esta é a primeira referência de Cocteau na obra almodovariana. Como o crítico de cinema José Vieira Mendes referiu no seu texto para a MHD sobre antevisão a esta curta metragem intitulado “A Voz Humana: A Mulher do Fogo”, vimos praticamente o mesmo em “A Lei do Desejo” (1986) ou em “Mulheres à Beira de Um Ataque de Nervos” (1988), onde as personagens interpretadas pela mais poderosa chica almodovar Carmen Maura pareciam oferecer reminiscências da protagonista de Cocteau. No segundo caso, tentava mesmo contactar regularmente o seu amante, um homem casado e cujo corpo está ausente de toda a obra. As influências de Cocteau em Almodóvar são evidentes inclusive em “A Flor do Meu Segredo“, no qual a personagem de Marisa Paredes tenta lidar com um casamento fracassado. Tilda Swinton junta-se a uma lista de mulheres que precisa de escapar do ambiente abusivo do seu relacionamento, para ser ela própria, para entender o que significa o amor próprio. Esta busca de Pedro Almodóvar por personagens que reconsideram a sua dor, tem como todos sabemos influências dos cinemas de Douglas Sirk ou Michael Curtiz, sendo que o seu novo filme há um entrelaçamento da cor e da forma desses autores melodramáticos, com a força vital da palavra exigida no texto de Cocteau.

Inesperadamente, até ao momento da estreia desta versão pouco se tem falado em Portugal de outras as adaptações cinematográficas de “A Voz Humana”. Tal acontece talvez porque cada obra apresenta uma visão específica do seu cineasta, sobre a sua maneira de entender o texto de Cocteau e como cada um deles entende as mulheres do seu tempo e do espaço público ao qual integram.  “A Voz Humana” de Almodóvar não deixa de ser uma visão espanhola e intimista sobre os pensamentos desta mulher e como tal, não quisemos esquecer outras ‘vozes humanas’, que permitiram abrir os olhos a uma sociedade que ainda combate o patriarcado e a opressão dos indivíduos do sexo feminino.

Com este artigo especial, queremos voltar ao passado, para entender como “A Voz Humana” é crucial para entenderemos as possibilidades dadas às atrizes e mulheres no mundo do cinema. Só assim poderão existir mais espectadores que pensem sobre a necessidade de uma sociedade mais justa, igualitária onde não domine tantos ódios entre os sexos.




L’Amore (1948), de Roberto Rossellini

L’Amore“, realizado por Roberto Rossellini e protagonizado por Anna Magnani deu início às adaptações cinematográficas da obra de Cocteau. Nesta obra, Rossellini apresenta-nos dois capítulos com foco total sobre Anna Magnani, sua esposa e companheira desde que juntos fizeram “Roma, Cidade Aberta” (1945). O primeiro capítulo é precisamente “Una voce umana” uma adaptação próxima ao monólogo original e cuja ideia de filmá-lo foi tida pela própria Anna Magnani, que em 1942 apresentara a peça nos palcos de Roma.

A Voz Humana
Anna Magnani no primeiro episódio do filme “O Amor” (1948) © Filmin Portugal

Jean Cocteau nessa época era ainda vivo e admirador declarado do filme “Libertação” (Roberto Rossellini, 1946). Em conversa com o cineasta chegaram a acordo sobre a sua transposição para o grande ecrã e, enquanto Rossellini interrompia a pré-produção da sua próxima longa metragem “Alemanha, Ano Zero” (1948), rapidamente juntou uma equipa em Paris para rodar este projeto com Magnani, e tudo decorreu em apenas 2 semanas.

O resultado está à vista, neste filme que poderemos considerar como o climax do relacionamento e parceria cinematográfica entre Anna Magnani e Roberto Rossellini. O rosto de Magnani enche por completo o ecrã, enquanto reage apática a frases do seu amante e que o espectador não ouve. A voz humana só consegue ser aqui imaginada, sendo que através do rosto de Magnani percebemos que a tragédia e a crueldade do amor, que por vezes não não passa de um conto de fadas nas nossas cabeças. A personagem de Magnani tem dificuldade em aceitar a realidade, e por conseguinte acaba por anular completamente a sua dignidade e o seu amor próprio. Roberto Rossellini tece fortes conexões entre o humano e o divino, porque o espectador continua a não perceber o que se passa do outro lado da linha, como se o homem por quem a protagonista está apaixonada fosse um Deus omnipresente. Neste sentido, acabam por surgir algumas questões relacionadas com as complexidades das histórias de amor.

Ironia do destino e antevisão da arte, “L’Amore” antecipa aquilo que Magnani ficaria a saber dois anos, quando Roberto Rossellini abandonou-a para iniciar um escandaloso romance com uma das maiores atrizes do cinema de Hollywood de então, Ingrid Bergman. “L’Amore” ou “O Amor” (no título português) está disponível em subscrição na plataforma de streaming Filmin Portugal (clica aqui) e também podes adquiri-lo em Blu-Ray através do site da FNAC.





The Human Voice (1966) de Ted Kotcheff

Pode ser até estranho, mas a seguinte adaptação de “A Voz Humana” é um telefilme protagonizado por Ingrid Bergman. Apesar de não estar disponível para visionamento em nenhuma plataforma portuguesa ou sequer em DVD, poderemos encontrá-lo no Spotify. Trata-se apenas de um extenso áudio de 42 minutos com a voz de Ingrid Bergman e que dialoga connosco com maior intimidante, superior até a muitas chamadas vistas no cinema. Neste sentido, esquecemos por completo o espaço que nos rodeia e também o espaço que a rodeia a ela, personagem e atriz de cinema, na forma de arte à qual esta adaptação foi inicialmente pensada. As imagens em movimento passam assim a ser palavras em movimento, de uma mulher continuamente isolada e desconectada de tudo e de todos.

Como uma chamada telefónica ou um podcast, continuamos a sentir a dor desta mulher que precisa de aprender a estar bem consigo mesma. Não ouvimos a voz de quem está do outro lado, mas sabemos que existe um homem a tentar evitar que a sua ex-amante ceda ao desespero e que deixe de estar tão presa ao passado. A voz de Ingrid Bergman quebra-se e recompõe-se e volta a quebrar-se, repetindo várias vezes o quanto continua apaixonada por alguém que já não a quer. “A Voz Humana” deu oportunidade a Ingrid Bergman de experimentar algo de novo, uma década após as suas parcerias com Roberto Rossellini.

“A Voz Humana” com Ingrid Bergman estreou a 4 de maio de 1967 como o último capítulo de uma série televisiva designada ABC Stage 67. Mais difíceis de encontrar são as adaptações “La Voix Humane” (1970), de Dominique Delouche com Denise Duval ou ainda La Voix Humane (1990), de Peter Medak, com Julia Migenes.




I Want You (1995), de Earle Sebastian

Apesar de não ser uma adaptação cinematográfica, faz todo o sentido estabelecer aqui uma rutura da nossa lista, para falarmos do videoclip “I Want You“, realizado por Earle Sebastian e protagonizado nada mais nada menos pela rainha da pop, realizadora e atriz Madonna. Ao longo da sua carreira, Madonna estabeleceu paralelismos dos seus videoclips com a história do cinema, seja com referências a Marilyn Monroe e a “Os Homens Preferem as Loiras” (Howard Hawks, 1953) em “Material Girl” (1984) ou as referências a Anna Magnani em “L’Amore” neste video musical completamente a preto e branco.

Com apenas 6 minutos e 24 segundos de duração, “I Want You” dá força à depressão de uma mulher, cujo amor não foi correspondido e que se parece distanciar do mundo. “I Want You” está ligeiramente fora da caixa, quando o comparamos com outros títulos musicais de Madonna. Aliás, foi feito para um álbum de homenagem ao cantor de soul Marvin Gaye. O álbum designado “Inner City Blues” contou com canções de Marvin Gaye reinterpretadas por vários artistas especificamente para o projeto.




Voce umana (2014), de Edoardo Ponti

A seguinte adaptação de “A Voz Humana” na qual prestamos atenção é protagonizada por Sophia Loren, que regressou ao ecrã após a sua participação em “Nove”, de Rob Marshall. Na altura do lançamento desta curta-metragem, Sophia Loren tinha 80 anos, portanto é a ela que cabe o título de atriz mais velha a protagonizar uma adaptação da obra de Jean Cocteau. “Voce umana” é dirigida pelo seu filho mais novo Edoardo Ponti, com quem voltaria a colaborar em “Uma Vida à Sua Frente“, um dos melhores filmes italianos de 2020 segundo a equipa da MHD. “Voce umana” é um hino à cultura napolitana na qual Sophia Loren cresceu e, por sua vez, uma das mais poderosas homenagens ao cinema italiano.

Nesta história somos transportados precisamente para Napóles, uma cidade recém saída da Segunda Guerra Mundial, e onde existe essa ansiedade feroz de voltar a abraçar, de voltar a tocar quem esteve mais distante. Edoardo Ponti dá uma atenção cuidada aos detalhes, à cidade como pano de fundo e revela-nos um diálogo subtil, que procura, em primeiro lugar, a ajudar o espectador a familiarizar-se com a peça de Jean Cocteau e, em segundo lugar, perceber como Ponti faz a sua homenagem ao cinema neo-realista de Roberto Rossellini, com alguns toques da commedia all’italiana a quem Sophia Loren pode ser considerada estrela maior.

Como mulher mais madura, os seus olhos revelam a mágoa de perder um amor que chegou mais tarde, mas contempla o mar e a linha do horizonte com uma certa firmeza. Por um lado quer dizer ao mundo que está apaixonada, quer pensar sobre o seu futuro, quando por outro lado aquilo que irá fazer é esconder o seu tormento, enquanto vai tentar aceitar a inevitável separação. Desta forma, Ponti estabelece um diálogo não só entre uma mulher e o seu homem, mas um diálogo entre Sophia Loren e o seu passado artístico, entre o cinema italiano de hoje e o cinema italiano de ontem. A fala da personagem Angela de Sophia Loren ao telefone, pode ser também a sua própria fala enquanto atriz de um tipo e forma de fazer cinema que se foi perdendo aos poucos e com quem agora é preciso cortar para que possam ser abertas novas portas. É a voz humana de Sophia Loren que Edoardo Ponti pede para que seja respeitada, para que se possa fazer um novo cinema naquele país.

Caso sejas fã de Sophia Loren não podes perceber a nossa análise à sua longa carreira, desde a sua vitória do Óscar com “Duas Mulheres” de Vittorio De Sica até à sua atual última aparição no cinema, “Uma Vida à Sua Frente”. Lê aqui a nossa homenagem à diva do cinema italiano.




 The Human Voice (2018), de Patrick Kennedy

Terminamos a lista de revisitações às curtas de “A Voz Humana“, com o projeto realizado por Patrick Kennedy e protagonizado por Rosamund Pike, a nomeada ao Óscar de Melhor Atriz por “Em Parte Incerta” (David Fincher, 2014) e vencedora do Globo de Ouro de Melhor Atriz em Comédia e Musical em “Tudo Pelo Vosso Bem” (J Blakeson, 2020). Esta continua a ser uma história de uma mulher às portas da morte sentimental, e por muito que deseje ser saudável emocionalmente, parece não estar emaranhada naquela voz distante.

Ao contrário do olhar nostálgico de Edoardo Ponti na sua curta de 2014, Patrick Kennedy oferece um filme muito mais negro, com os tons escuros a serem utilizados na casa da protagonista e também nas fotografias que por lá estão espalhadas. Através dela percebemos a intimidade entre homem e mulher e o quão intenso e astronómico foi o seu romance. O telefone mais do que uma última despedida, passa a ser o instrumento de aproximação dos corpos que nunca se tocam, mas que se parecem tocar graças aos movimentos de Pike. Se o objetivo era aproximar “A Voz Humana” de outras obras como “Match Point” (2005), de Woody Allen ou os filmes mais negros de Alfred Hitchcock, Patrick Kennedy conseguiu-o. “The Human Voice” deixa-nos um vazio no final do seu visionamento, por não sabermos bem o que acontecerá àquela mulher de roupa interior e também por entendermos que cada despedida é como uma chamada telefónica, onde o toque e o afeto não passam de um som intermitente e de uma miragem distante. Para ver “A Voz Humana” é preciso perceber o quanto as dinâmicas entre homens e mulheres precisam de ser discutidas no cinema.

Abaixo poderás assistir através do YouTube a esta curta-metragem com Rosamund Pike.

Qual a tua adaptação preferida de “A Voz Humana” de Jean Cocteau?  

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