71º Festival de Cannes (8): Koreeda, Lee e Von Trier

Em “Shoplifters”, o realizador Hirokazu Koreeda regressou a mais um drama doloroso e socialmente consciente sobre a sociedade japonesa. Spike Lee, em “BlacKkKlansman” infiltra-se no KKK, para explicar a ascensão de Trump. E Lars Von Trier deve estar a rir-se do que estamos a pensar sobre o seu novo filme “The House That Jack Built”.

Esta espécie de versão moderna de “Oliver Twist”, intitulada “Shoplifters”, de Hirokazu Koreeda é um retrato de uma família japonesa que vive executando pequenos roubos e expedientes. É curioso como “Shoplifters” nos oferece uma visão da pobreza, de uma forma pouco convencional. Por um lado, retrata um estilo de vida difícil e imediatista dos protagonistas, face às dificuldades diárias de sobreviver; ao mesmo tempo que mostra que as pessoas podem encontrar conforto e harmonia, mesmo vivendo nas piores condições económicas; por outro lado, “Shoplifters” é a devastador na forma como expõe as falhas do sistema de Segurança Social existente no Japão — que se pode transpor também para os países de maiores recursos económicos — relativamente às pessoas mais necessitadas, pobres e pessoas com trabalho incertos e parciais, como é o caso neste filme.

Shoplifters
O filme mostra que as pessoas podem encontrar e harmonia, nas piores condições económicas.

Decerto modo, “Shoplifters” marca um regresso deste realizador socialmente consciente à temática do seu filme “Nobody Knows”, prolongando um contínuo exame do que é a uma família, e de que forma esta pode constituir ainda o elemento de coesão na sociedade japonesa, em contínua evolução. Num dia frio de inverno, Osamu Shibata (Lily Franky) leva o seu filho Shota (Jyo Kairi) para as suas ‘compras’ habituais, quando encontra a caminho de casa uma miúda bonitinha abandonada, (Miyu Sasaki). Preocupado Osamu leva a miúda para casa, onde sua esposa Nobuyo (Sakura Ando) à primeira vista fica zangada por ter mais uma boca para alimentar, embora obviamente não consiga livrar-se da criança aliás vendo cicatrizes e hematomas em todo seu corpo. E assim, a garota fica com eles, batizando-a com o nome de Rin.

Shoplifters
Koreeda consegue arrancar sensíveis interpretações, aos pequenos Jyo Kairi e Miyu Sasaki.

“Shoplifters” reúne alguns dos actores favoritos de Koreeda, incluindo a veterana Kiki Killin (“Still Walking”, “After the Storm”) e Lily Franky, que ambos dão aos seus papéis um sentimento de dureza e experiência vivida. Kiki é uma personagem deliciosamente diabólica com um sentido aguçado para dar à volta às situações; e a trabalhar pela primeira vez com o realizador, a talentosa atriz Ando Sakura oferece uma das interpretações mais sublimes do filme: ostentando a leveza de um gato de rua, que se pode tornar selvagem e agressivo, esta personagem revela uma enorme ternura dirigida sobretudo à pequena Rin; há mesmo uma cena em que ela tenta esconder as suas lágrimas numa evocação inesquecível de uma carapaça dura que se quebra pela emoção. Muito aplaudido pela sua capacidade para dirigir crianças, Koreeda novamente consegue arrancar sensíveis interpretações, nada afectadas aos pequenos Jyo Kairi e Miyu Sasaki.

As contribuições técnicas são tão refinadas que o talento dos seus autores passa quase imperceptível: o director de fotografia Ryuoto Kondo, que trabalha pela primeira vez com Koreeda, captura a natureza com os contrastes acentuados do inverno e do verão; elementos que reforçam ainda a temporalidade, sobretudo na casa tradicional japonesa onde vivem os protagonistas, meio-arruinada e  encravada entre os modernos e impessoais arranha-céus. Novamente reivindicando para si próprio as tarefas de edição, argumento e realização, Hirokazu Koreeda consegue em “Shoplifters” um ritmo muito mais acelerado do que nos seus filmes anteriores.

“Shoplifters” é um filme muito bonito, comovente, primorosamente realizado, que certamente vai tocar tanto nos corações do grande público, como tocou nos da crítica, aqui em Cannes.

BlacKkKlansman
“BlacKkKlansman”, que quase parecem sketches de um show cómico.

O realizador norte-americano Spike Lee foi aplaudido de pé por seis minutos na sessão oficial após a projecção do seu novo filme “BlacKkKlansman”, ontem à noite. O filme, conta a história real de um detetive afro-americano (John David Washington) e do seu parceiro judeu (Adam Driver), que se juntaram e conseguiram infiltrar-se na organização local da Klu Klux Klan, em Colorado Springs, em 1979. O filme não é genial, mas o tema é incrivelmente oportuno já que o filme termina com a conferência de imprensa de Donald Trump, recusando-se a condenar as ações dos nacionalistas brancos, durante o mortal motim de Charlottesville em 2017. Há muitos idiotas a rodearem o atual presidente e o filme faz uns excelentes e irónicos paralelos com a entourage e a ascensão de Trump.

BlacKkKlansman
O filme defende mais a paz do que o confronto, mostrando a idiotice das ideias raciais.

Nos magníficos diálogos de “BlacKkKlansman”, que quase parecem sketches de um show cómico, um membro da KKK fala em adotar uma política “América primeiro”, no que se refere às suas ambições políticas: o ex-Grande Feiticeiro David Duke, líder dos KKK, muito bem interpretado pelo jovem Topher Grace (o Eddie Brock/Venom de “Homem Aranha 3”). Mas na verdade, o filme defende mais a paz do que os conflitos raciais, mostrando a idiotice das ideias segregacionistas e fascistas de movimentos como o KKK ou o Tea Party.  Como é habitual na sua postura activista Spike Lee andou pela passadeira vermelha com as juntas de bronze de “Do the Right Thing”, que diziam ‘amor’ de um lado e ‘odeio’ do outro.

BlacKkKlansman
Um filme divertido, com boas interpretações e boa música.

Com ele estavam o elenco quase completo com Washington, Driver, Grace, Damaris Lewis, Jasper Paakkonen, Laura Harrier e Corey Hawkins, que têm desempenhos muito aceitáveis no filme. Apesar de alguns dos críticos considerarem “BlacKkKlansman” como o melhor filme de Lee dos últimos anos, este não é mais de que um filme divertido, com boas interpretações, boa música, mas com muito pouca coisa para contar. Curiosamente “BlacKkKlansman” vai estrear nos EUA a 10 de agosto, precisamente um ano depois dos tumultos de Charlottesville, onde morreram 3 pessoas e 38 ficaram feridas.

The House That Jack Built
Dois dos protagonistas do banho de sangue Uma Thurman e Matt Dillon.

Uma vaga homicida, um banho de sangue e maldade, parece ter funcionado como uma espécie de massagem auto-erótica, para Lars von Trier, em “The House That Jack Built”, um filme que parece querer gozar com a polémica que o levou o realizador a ser banido do Festival de Cannes, há sete anos atrás.

Talvez nunca Lars von Trier tenha sido tão subtilmente provocador como neste “The House That Jack Built”, um retrato de investigação sobre um serial killer da costa noroeste dos EUA, nos anos 70. O filme é literalmente uma descida ao inferno, misturada com uma dialética masturbatória sobre o sentido da arte e da criação, na qual há ainda acenos visuais às ditaduras de Hitler, Mussolini, Mao, Stalin ou Idi Amin Dada. Trabalhando desta vez com uma espécie de avatar-assassino de ‘falinhas mansas’ interpretado por de Matt Dillon, Lars von Trier organiza uma metódica exibição de violência sádica, sobretudo contra mulheres e crianças, submetendo mesmo a mãe dos garotos, numa das cenas mais chocantes, a um horrível piquenique em família, antes de lhe acabar com a vida.

The House That Jack Built
São 5 ‘incidentes’ que representam um suposto de 60 mortes ao todo, ou assassinatos em série.

De qualquer modo “The House That Jack Built” é um filme que tem de se ver pois é tão fútil quanto inquietante. O filme é estruturado em 5 capítulos e um epílogo e como um diálogo inusitado entre Jack  (Matt Dillon) e um sarcástico interlocutor chamado Verge (Bruno Ganz), que permanece quase duas horas sem aparecer. O sua identidade parece ter sido tirada da literatura clássica e de o livro “O Inferno”, da “Divina Comédia”, de Dante. Jack descreve as suas conquistas (ou capítulos) como 5 ‘incidentes’ que representam um suposto de 60 mortes ao todo, ou assassinatos em série. E começa com o primeiro: Jack pára a sua Van vermelha, para ajudar uma bem composta condutora (Uma Turman), que está com o carro empanado, numa estrada deserta. Com um certo gozo e superioridade a mulher praticamente incita Jack a acabar com ela, fornecendo-lhe inclusive a arma para o fazer. Mas mesmo comparando a sofisticação de Jack, com os extravagantes desvios de Glenn Gould, William Blake, o seu gosto pela arquitetura gótica ou pela produção de vinho de mesa, o Mr. Sofisticação é um serial killer como os outros.

The House That Jack Built
Há um flagrante sentimento anti-americano nos filmes de Lars von Trier.

Há também em “The House That Jack Built” um flagrante sentimento anti-americano que já não é novidade nos filmes de Lars von Trier: no malfadado piquenique tanto a mãe (Sofie Grabel), como as crianças, usam bonés de basebol vermelhos, que parecem chamar pela América de Trump. Outras imagens parecem mesmo destinadas a reavivar algumas feridas da América, como o assassinato de James Byrd Jr., em 1998, em que o seu corpo foi arrastado atrás de uma camionete; ou a mutilação bárbara de Sharon Tate, pela família Manson.

The House That Jack Built
Matt Dillon interpreta com firmeza o seu papel de ‘serial killer’.

Matt Dillon interpreta com firmeza o seu papel, — sobretudo para um actor que tem estado afastado dos grandes filmes — ficando pouco a pouco cada vez mais imprudente, agitado e perturbado, sobretudo quando o rasto de sangue e da carnificina de Jack, vai crescendo no drama. Há também algum humor nas aspirações de Jack em transformar os seus assassinatos, em obras de arte icónicas, que fazem lembrar as esculturas do artista plástico flamengo Jan Fabre. Jack organiza os corpos em fotografias a preto e branco, como se fossem troféus e envia-as anonimamente para jornais locais, assinando como o tal Mr. Sofisticação. O tema “Fame”, de David Bowie, é usado várias vezes para insistir na necessidade que Jack tem de notoriedade e afirmação. O desempenho de Dillon é no entanto limitado pelo fato de que as qualidades mais notáveis ​​de Jack são mais discutidas e teorizadas, do que propriamente mostradas, mesmo que sejam um espectáculo sombrio provocado por um psicopata. As cenas do pós-piquenique impressionantes, assim como o flashback que mostra a infância de Jack, observando os trabalhadores de campo cortando os prados com foices. O som das foices a cortar são arrepiastes, tanto quanto a imagem de morte. No final, as ambições arquitectónicas de Jack parecem finalmente cumpridas; e no epílogo, quando Verge guia Jack através do Inferno para o seu inevitável destino, esperava-se afinal que Jack continua-se o seu caminho de maldade e em vez de ser atraído para torrente de lava, que faz lembrar um dos volumes de “O Senhor dos Anéis”. Por fim fica-nos a sensação  que continua em aberto à interpretação de cada um, se von Trier está ali se justificando como artista, ou  se continua na sua luta interior, recorrente em quase todos os seus filmes, pela glorificação do sofrimento humano? Há realmente uma tese consistente por trás de todo aquele discurso irónico e violento. Só é estranho é que o von Trier sinta tanta necessidade de proclamar a sua genialidade num dos seus filmes talvez menos interessantes. Ou então von Trier deve estar a rir-se enquanto vai imaginando o que é que todos nós estamos a pensar onde ele queria chegar com este “The House That Jack Built”.

José Vieira Mendes (em Cannes)

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