©José Vieira Mendes

74ª Berlinale | Small Things Like These vs. Tensões Mundiais

A 74ª Berlinale abre hoje com a sua habitual componente politico-activista com a sombra das Guerras da Ucrânia e Gaza, a ascensão da extrema-direita na Europa e por uma quase ironia com o filme “Small Things Like These” (“Pequenas Coisas Como Estas”), de Tim Mielants, protagonizado por Cillian Murphy. Não está prevista uma chuva de estrelas na passadeira vermelha, mas mais logo deve aparecer além do protagonista, também Matt Damon.

O 74º Festival Internacional de Cinema de Berlim abre hoje, 15 de fevereiro de 2024 (vai até 24) com a estreia mundial de “Small Things Like These”, uma produção belga-irlandesa, realizada por Tim Mielants a partir de um argumento de Enda Walsh e, com um elenco internacional que inclui Cillian Murphy, Eileen Walsh, Michelle Fairley e Emily Watson. E assim, Cillian Murphy, “o rei da melancolia” está de volta em pouco tempo, depois de “Oppenheimer” e, interpretando novamente um homem atormentado, que enfrenta segredos sobre sua cidade natal e sobre si mesmo.

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O filme, que abre também a Competição Internacional — sem grandes nomes e oscilando entre a veterana e a descoberta —  é uma adaptação de um best-seller, lançado em 2021 e nomeado ao Prémio Booker, da premiada escritora irlandesa Claire Keegan — a  mesma de “Foster”, também adaptado ao cinema em língua irlandesa, e intitulado “The Quiet Girl – A Menina Silenciosa” um filme maravilhoso, estreado o ano passado e nomeado ao Óscar Internacional.

Small Things Like These
“Small Things Like These” um ‘filme de actor’ e Cilliam Murphy a figura certa, para o interpretar. ©Shane O’Connor

“Small Things Like These”, reúne o realizador Tim Mielants (“WIL”, “De Patrick”, “The Responder”) e o actor Cillian Murphy, que trabalharam juntos na terceira temporada da famosa série “Peaky Blinders”. O filme foi produzido entre outros, por Matt Damon e Ben Affleck, razão pela qual, o primeiro deve aparecer mais logo na passadeira vermelha do Berlinale Palast. A história passa-se no Natal de 1985, quando um dedicado pai e comerciante de carvão Bill Furlong (Murphy) descobre segredos surpreendentes guardados no convento de freiras da sua cidade, juntamente com algumas verdades chocantes e dramáticas sobre a sua infância.




Na verdade, esta história de silêncios e parcos diálogos — e ainda bem, porque não teríamos percebido quase nada — revela o caso das lavanderias Magdalen da Irlanda, no fundo asilos horríveis, administrados por instituições católicas, desde a década de 1820 até 1996. Casas de recolhimento aparentemente para acolher raparigas “caídas em desgraça”, jovens mães solteiras, mulheres vulneráveis ou que eram simplesmente consideradas um fardo para as suas famílias.

Berlinale 74

Em “The Quiet Girl – A Menina Silenciosa”, de Colm Bairéa,  já tínhamos a noção da habilidade da escritora Claire Keegan para retratar pequenas personagens, protagonistas de histórias aparentemente simples e torná-los inesquecíveis. Em “Small Things Like These”, o realizador belga Tim Mielants com base na escrita delicada de Keegan, rica e ao mesmo tempo de um realismo profundo, consegue fazer um filme tocante, que encontra em Cillian Murphy, um grande intérprete. Trata-se efetivamente de um “filme de actor” e Murphy a figura certa — também por sua escolha já que é também um dos produtores — para personificar a história desse homem de poucas palavras, com olhos arregalados, “tão claros quanto os céus da Irlanda”. É uma história que alia a bondade e generosidade, que devemos ter com os mais frágeis, com a força de vontade para enfrentar e ultrapassar os traumas do passado, injustiças e neste caso também os dogmas de uma Igreja Católica repressiva e a sua influência durante décadas ainda na Irlanda do século XX.

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“Small Things Like These” é um filme sereno, inspirador, tranquilo, talvez demasiado tranquilo para uma abertura da 74ª Berlinale, que como em todos os festivais esperava-se, mais grandiosa e afirmativa. Porém, este lançamento internacional do filme e a sua escolha para a abertura, acaba por coincidir com o início do Zeitgeist Irland 24, “uma celebração da cultura irlandesa na Alemanha que dura um ano”, conforme as palavras de Carlo Chatrian, no seu último ano de diretor artístico da Berlinale. A organização da Berlinale, pregou-nos também uma partida ao exibir “Small Things Like These”, apenas com legendas em alemão, não tendo em conta as dificuldades de entendermos, por vezes um “inglês fechado”, com o forte sotaque do interior da Irlanda. 




VÊ TRAILER DE ‘LOVE LIES BLEEDING”

AS RECORRENTES TENSÕES MUNDIAIS

Como é habitual no Festival Internacional de Cinema de Berlim, estão sempre em foco para além dos filmes e das estrelas, as questões políticas e as tensões mundiais do momento e portanto esta Berlinale 74, não foge à regra. As guerras em Gaza e Ucrânia, a repressão cultural no Irão, a ascensão da extrema-direita cada vez mais poderosa na Alemanha e na Europa começaram já a marcar a atmosfera cinzenta e pesada do Festival — não está muito frio mas o céu está coberto de nuvens e chuva. A questão de Gaza, por exemplo, é um tema que aparece espalhado e visível pelas ruas de Berlim, nos prédios e grafittis.

Na cosmopolita e tradicionalmente tolerante capital da Alemanha, onde convivem muitas comunidades de imigrantes, judeus, palestinianos, árabes incluídos e muitos ativistas pela paz, este tema pode tornar-se bastante polarizador, aproveitando este evento de grande expressão mundial. Esperam-se nas conferências de imprensa, declarações dos cineastas e das estrelas presentes, sobre esta questão, além de protestos e manifestações de rua, por aqui na zona da Potsdamer Platz, sede do Festival. Houve, comenta-se aliás, que um pequeno grupo de realizadores alemães, retirou mesmo os seus filmes, que estavam inscritos no festival, manifestando-se contra o apoio do governo alemão a Israel.

VÊ TRAILER DE “SPACEMAN”

A organização da 74º Berlinale evitou também outra questão que poderia tornar-se altamente polémica e ter desencadeado manifestações e protestos, ao recusar, após enormes críticas da opinião pública, o convite para a noite de abertura, de cinco representantes locais, do emergente AfD, partido de extrema-direita da Alemanha. A dupla de diretores cessantes do festival, Mariette Rissenbeek e Carlo Chatrian, apressou-se a dizer que esses políticos, “não eram bem-vindos à Berlinale”, por alimentarem uma posição de “anti-semitismo, ressentimento anti-muçulmano (e) um discurso de ódio”.

A Berlinale, há muito tempo que está na linha da frente da defesa da presença dos realizadores iranianos ameaçados pela censura do regime, por isso instou Teerão para que permitisse, a participação de Maryam Moghaddam e Behtash Sanaeeha, a dupla de cineastas que teriam sido alvo de uma proibição de viajar e que vão mesmo apresentar — entre os 20 filmes de todo o mundo, selecionados para a Competição Internacional — o seu novo filme “My Favorite Cake”, uma obra crítica sobre a questão das restrições sociais, impostas às mulheres iranianas.




Another End
Gael Garcia Bernal é o protagonista de “Another End”, um filme estranho e arrepiante. ©Matteo Casili/Indigo Film

NÃO HÁ (MUITAS) ESTRELAS NO CÉU

As razões são muitas e envolvem sobretudo a temporada de festivais, a data dos Óscares e a melhor oportunidade de um bom lançamento europeu dos filmes norte-americanos e por isso não será novamente um ano marcado pela forte presença de muitas estrelas de Hollywood, na fria passadeira vermelha do Berlinale Palast. Mesmo assim vão aparecer por cá para defender os seus filmes, para além de Cillian Murphy e Matt Damon espera-se pelo menos, Kristen Stewart, Gael Garcia Bernal e Adam Sandler. Kristen Stewart, presidente do júri da Berlinale do ano passado — este ano presidido pela atriz quénio-mexicana Lupita Nyong’o, apresentará “Love Lies Bleeding”, da realizadora britânica Rose Glass, na Berlinale Special (fora da competição) a história de uma ligação violenta entre a gerente de um ginásio e uma culturista bissexual.

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Adam Sandler apresentará também “Spaceman”, do cineasta sueco Johan Renck (fora da competição), o seu novo filme como protagonista, para a Netflix, sobre um astronauta solitário afastado da sua esposa, interpretada por Carey Mulligan. Gael Garcia Bernal é o protagonista de “Another End”, do italiano Piero Messina, um filme estranho, onde se projeta a ideia da existência de uma nova tecnologia, que permitirá às pessoas enlutadas, voltarem a contactar com os seus mortos. Ao lado do ator mexicano estão duas vencedoras do prémio de Melhor Atriz do Festival de Cannes, a norueguesa Renate Reinsve (“A Pior Pessoa do Mundo”) e a francesa Berenice Bejo (“O Artista”). Para além das ideologias, do permanente ativismo politico e militante, a Berlinale 74, apresenta uma programação rara e alargada de filmes de fantasia e ficção científica e também do novo cinema africano, sendo um dos mais aguardados “Black Tea”, do realizador mauritano Abderrahmane Sissako.

VÊ TRAILER DE “BLACK TEA”

A PARTICIPAÇÃO PORTUGUESA

Do programa desta Berlinale 74, incluindo “Mãos de Fogo”, da Margarida Gil, na secção Encounters, constam 4 filmes com produção e co-produção portuguesa, em diferentes secções do festival, três talentos nacionais, e a excelente série de televisão “Matilha”, co-produzida entre a RTP e a Prime Video e protagonizada por Margarida Vila-Nova e Afonso Pimentel.

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Na Competição Internacional incluem-se “L’Empire”, de Bruno Dumont (França/Itália/Alemanha/Bélgica/Portugal [2024]); na Berlinale Forum, a video-instalação “Resonance Spiral”, de Filipa César e Marinho de Pina (Portugal/Guiné-Bissau/Alemanha [2024]) e “As noites ainda cheiram a pólvora” de Inadelso Cossa (Moçambique/Alemanha/França/Portugal/Países Baixos/Noruega [2024]); na Berlinale Talents vão participar Cátia Rodrigues (crítica de cinema e jornalista), Rafael Morais (actor e realizador), Bruno Barreto (realizador e argumentista).

Acresce ainda à presença nacional, uma comitiva composta por produtoras e distribuidoras de cinema portuguesas que irá participar no Mercado Europeu do Filme, além de um grupo de jornalista que há muito cobre a Berlinale. 

JVM

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