Waiting for the Barbarians | © Iervolino Entertainment

76º Festival de Veneza | A Máfia e o Deserto

São duas propostas diametralmente opostas as que fecharam a competição de Veneza 76: a adaptação de um grande romance ‘Waiting for the Barbarians’, do colombiano Ciro Guerra e o documentário antropológico ‘La mafia non è viu queda di una volta’, do italiano Franco Maresco.

Comecemos com o novo e grotesco documentário ‘La mafia non è viu queda di una volta’, de Franco Maresco com o regresso de algumas das personagens memoráveis ​​dos seus filmes anteriores: mais uma vez com Ciccio Mira, de ‘Belluscone-una storia siciliana’; e ‘La mafia non è viu queda di una volta’, começa também com a fotógrafa Letizia Battaglia, uma exuberante octogenária que durante décadas registou os homicídios da máfia, a sociedade palerminiana e as suas contradições, a quem Maresco dedicou outro dos seus filmes ‘La mia Battaglia’. Battaglia vai ao Festival Neomelodici  — uma variante siciliana da ‘música pimba’, mas elogiosa do crime — chamado Falcone e Borsellino — supostamente em homenagem aos dois juízes abatidos pela Cosa Nostra — na Via Notarbartolo, localizada no problemático bairro ZEN de Palermo, realizado em 23 de maio de 2017; e permite-se a fazer algumas considerações amargas sobre o significado do evento. Imediatamente depois, perto de Ucciardone, um ‘bunker’ de Palermo, encontramos o jornalista, campeão da luta anti-máfia desonrada, Pino Maniaci, e que sofreu um desagradável acidente profissional. Concluímos com as evidências dessa tal festa neomelódica, organizado por dois ousados empresários musicais ​​muito amados na cidade: o incontornável Ciccio Mira e seu fiel braço direito Matteo Mannino. Tudo parece correr bem, mas logo percebemos que aqui e ali surge um estranho mal-entendido…

La mafia non è viu queda di una volta
Ciccio Mira, um ‘mítico’, organizador de festivais de rua e empresário de ‘artistas neomelódicos. | © Dream Film

Traduzindo à letra ‘A máfia já não é mais o que era’ o novo filme do realizador Franco Maresco, o único documentário em competição na Veneza 76, encontrou a sua inspiração em 2017, 25 anos depois dos massacres da máfia de 1992, em que Giovanni Falcone, a esposa Francesca Morvillo, Paolo Borsellino e os agentes envolvidos nas investigações foram barbaramente assassinados. Franco Maresco, sentiu a necessidade de encontrar uma forma de contar um pedaço da história da Itália e da luta contra a máfia, indo além da mera comemoração que nos últimos anos tem sido polémica e realizada a cada 23 de maio ou a 19 de julho.

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La mafia non è viu queda di una volta
O incontornável Ciccio Mira e seu fiel braço direito Matteo Mannino. | © Dream Film

O importante impulso para esta obra notável — situado entre o humor, a irónica denúncia e o cinismo — é dado como já se disse pela fotógrafa Letizia Battaglia, envolvida desde sempre na luta contra a máfia. A fotógrafa de Palermo, de renome internacional foi considerada recentemente pelo New York Times, como uma das ’11 mulheres que marcaram nosso tempo’; e a quem o Museu Maxxi em Roma dedicou há pouco tempo uma grande exposição. Letizia Battaglia é a protagonista da história que paralelamente se une, com outra figura tão forte quanto periférica, proveniente do outro lado da barricada: Ciccio Mira, um ‘mítico’, organizador de festivais de rua e empresário de ‘artistas neomelódicos’, cantores de música popular e com óbvias ligações à máfia. Ciccio Mira esteve preso alguns meses, devido aos rumores de envio de mensagens aos mafiosos presos, através das suas ‘manifestações artísticas’, e das suas transmissões de televisão e rádio no canal local TSB- nas quais Mira é ator, apresentador, maestro e produtor, ajudado pelo seu inseparável alter-ego Matteo Mannino. Maresco revela esse Ciccio Mira ainda mais do que no seu filme anterior, um verdadeiro ‘cromo’, que inspira uma particular empatia, mesmo com as suas ideias nostálgicas da máfia do passado. Mira, agora já sem ajuda de Mannino, que está com Alzheimer, parece procurar finalmente a sua redenção, tanto como homem, como empresário artístico: cuidou (por assim dizer…) de um protegido seu, o jovem cantor Cristian Miscel, muitas vezes sujeito a crises psicóticas, quando a sua mãe e o empresário não conseguem garantir a sua presença no palco para cantar; e depois claro organizando esse tal evento único no ZEN, por ocasião das ‘comemorações’ que recordam os dois mártires mortos pela máfia. O foco da história está na evolução material e cultural da máfia e da anti-máfia, nos últimos 27 anos que se seguiram ao massacre de Capaci e via d’Amelio.

La mafia non è viu queda di una volta
Letizia Battaglia, uma exuberante fotografa que durante décadas registou os homicídios da máfia. | © Dream Film

Tudo isto toma forma de um documentário astuto, que investiga o desconhecido com humor e cinismo, seguindo os passos da mudança com o advento das novas tecnologias, novos medias, ideias políticas, governos do país e da cidade. Em ‘La mafia non è viu queda di una volta’, de Franco Maresco, os seus dois principais protagonistas Battaglia (82 anos) e Mira (70 anos), que estão em lados opostos, contam a história de um território do Sul de Itália, que apresenta paradoxos e contradições, que se reflectem na história do país e da Europa.

Johnny Depp, caminha com confiança à frente de Mark Rylance, vestindo com seu melhor traje colonial, uns estranhos óculos de sol e exibindo uma expressão decididamente severa. Esta é uma das imagens mais fortes de ‘Waiting for the Barbarians’, do colombiano Ciro Guerra (‘Pássaros de Verão’, 2018), que dá um salto para trabalhar com um elenco internacional, na adaptação cinematográfica do premiado romance do escritor sul-africano J.M. Coetzee, Prémio Nobel da Literatura em 2013. O cenário é um lugarejo poeirento nos confins do deserto, na província ocidental de um certo Império. Um Magistrado (Mark Rylance) sem nome vai realizando as suas rotinas de funcionário leal e correcto ao serviço de uma ordem que não lhe cabe questionar: recolhe impostos, dita sentenças e pouco se preocupa com os bárbaros-nómadas que deambulam pelo deserto escaldante. Nas horas vagas, abandona-se à melancolia e à escavação de ruínas, cobertas pela areia. Os seus dias de modorra moral são interrompidos pela chegada do coronel Joll (Johnny Depp), emissário de uma misteriosa Terceira Divisão de ‘guardiões do Estado’. Especialista nas artes do ‘interrogatório’, Joll vem da capital para investigar um suposto movimento de sedição entre os bárbaros.

EXCERTO DE ‘WAITING FOR THE BARBARIANS’

Os rumores a respeito são mais que tênues, o que não impede Joll de torturar prisioneiros, disseminar a histeria xenófoba e silenciar dissidentes, entre os quais o Magistrado. Um sub-tenente do Império (Robert Pattinson) vai substitui-lo, acusando o Magistrado de traição, associando aos bárbaros. No entanto, Mandel (Pattinson) vai ter de escolher no meio de muitos conflitos, entre o que pensa ser correcto e o seu dever para com o Império. Ciro Guerra —nomeado para o Óscar de Melhor Filme em Língua Estrangeira, em 2016, pelo O Abraço da Serpente— dirige sem grande convicção este drama de aventuras, que faz vagamente lembrar ‘O Deserto dos Tartaros’ de Buzzati/Zurlini, (1976) num filme que procura ter um impacto político, sobre a intolerância e a maldade, que na verdade é uma alegoria da guerra entre opressor e oprimido. ‘Waiting for the Barbarians’ concentra-se numa crise de consciência, reiterando as preocupações éticas que já moviam o romance de J.M. Coetzee: uma profunda meditação sobre a natureza do poder absoluto, da censura, do compromisso e da moral em tempos difíceis. Destaca-se também o regresso de Johnny Depp ao cinema mais autoral, após um longo período de pirataria nas Caraíbas.

JVM em Veneza

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