Sirât – Análise
Oliver Laxe ganhou o prémio do júri em Cannes por “Sirât,” sua mais recente obra onde Sergi López atravessa o deserto em busca da filha perdida. O filme chega aos cinemas portugueses com distribuição da Nitrato.
Cada espectador procura por algo diferente no grande ecrã. Há quem se guie pela busca por uma história empolgante, seguindo o princípio da narrativa como fundamento do cinema. Outros, veem tudo pelo prisma da moral e da política, entendendo esta arte como veículo de mensagens, quiçá ferramenta educativo ou um reflexo ideológico.
Por outras palavras, querem um cinema que valide, um panfleto, um manifesto. Muita gente só se quer divertir e esquecer as mágoas de cada dia, privilegiando o entretenimento acima de tudo o resto. Existem estas buscas e muitas mais – pela provocação, pela beleza, pelo conforto, etc.
A prerrogativa de cada um acabará sempre por ditar reações, elevando algumas obras e desvalidando tantas outras. Em certa medida, o mesmo acontece com cineastas na sua relação com a arte à qual se dedicam. As prioridades divergem bastante e, de um ponto de vista crítico, pode-se tornar ingrato, até injusto, esperar algo semelhante de quem quer quebrar tabus e de quem se ajoelha ao altar do escapismo.
Tudo isto para dizer que “Sirât,” novo filme do galego Oliver Laxe, não é daquele cinema que vai agradar a todos, regendo-se por objetivos específicos, meio antagónicos contra a ditadura da convenção e os bons costumes de uma história bem contada.
Perante o apocalipse, vamos dançar até morrer.
De facto, a escassa narrativa surge-nos somente como alicerce para o que Laxe sobre ela constrói. Um homem viaja pelo deserto, tentando encontrar a filha perdida. Como companhia, tem o filho pequeno e um grupo de ravers nómadas a caminho de mais uma grande festa sob o sol escaldante do Norte de África. Em simultâneo, longe da subjetividade limitada destas figuras, o mundo cambaleia no precipício do fim. A guerra está no horizonte, possivelmente à escala global, e os noticiários, ocasionalmente ouvidos pela rádio, são como arautos do apocalipse. Será assim que tudo acaba? Com dança e desespero?
Em todo o caso, hão de reparar que me referi a figuras ao invés de personagens. Assim fiz porque nem o pai nem seu filho nem os hedonistas de pele queimada chegam ao nível de especificidade, às características essenciais da personagem. Isso não é algo necessariamente negativo, convém dizer. Não no contexto de um cinema feito à revelia de reconfortos e expetativas de enredo, de mensagem. Não quando Laxe tão claramente se apresenta como um criador de experiências sensoriais. Daquelas cujo valor vai além da lógica e do sentimento, daquelas que só dá para entender no âmago. Não quando “Sirât” é um murro no estômago em forma de filme.
Este sobressalto cinematográfico começa por invocar essas visceralidades a partir do formalismo puro, retratando como uma rave é preparada no deserto marroquino. A câmara foca-se no gesto e nas gradações de som, à medida que o equipamento se instala e a parede de altifalantes se ergue perante a paisagem, qual monólito da “Odisseia no Espaço.” Entre a sonoplastia de Laia Casanovas e as composições de Kangding Ray, a musicalidade toma o filme de assalto e a abstração do techno tudo domina. Muito a montagem ajuda, cada corte a ressoar como um instrumento na orquestra invisível na qual Laxe é maestro.
Já quando os órgãos do espectador estremecem com as vibrações sónicas, a multidão aparece em cena e a fotografia de Mauro Herce toma lugar de primazia nesta experiência na vertigem do abstrato. O corpo humano pinta o telão em mil tons de bronze e rubor suado, redefinindo a urbe enquanto extensão da paisagem natural. Quando o sol completa a sua viagem celeste e a escuridão da noite domina, então parece mesmo que “Sirât” nos sujeita ao transe, hipnotizando-nos com sua alucinação. Jamais a fita recaptura esta folia, mas a forma exaltada mantém-se forte. Assim é na calma e na loucura deste conto cruel onde a misericórdia não existe.
Surpresas capazes de parar o coração.
Isso é especialmente verdade quando Laxe usa a ideia da caravana através do deserto para explorar as vicissitudes do suspense em cinema, ultrapassando a analogia vulgar com Hitchcock para se aproximar do “Salário do Medo” segundo Henri-Georges Clouzot. Sem querer cair em spoilers – “Sirât” deve ser visto com o mínimo de informação possível sobre o que acontece durante a odisseia – há dois momentos que deviam vir com um aviso sobre o risco de ataque cardíaco. São um par de choques intensos o suficiente para refazer o resto da viagem à sua imagem, quebrando as idiomáticas emocionais e a própria realidade do que vemos.
Nem o filme nem os espectadores são os mesmos depois do que acontece e é só graças à mestria de Laxe, sua equipa, seu elenco, é que “Sirât” evita cair no absurdo. Sergi López merece particular elogio, liderando uma trupe de atores sem grande experiência que se estão quase a interpretar a si mesmos. Somente a claridade psicológica do patriarca sustém o projeto quando este ainda recupera o fôlego depois do primeiro susto. É como se ele estivesse em sinergia com o engenho cinematográfico, adaptando-se aos preceitos sensualistas deste pesadelo sem trair a simplicidade primordial com que Laxe percorre a paisagem árida.
Por estas razões mencionei as diferentes expectativas de cada espectador no início do texto. Será justo dizer que “Sirât” é o filme mais acessível e de maior potencial comercial na carreira do seu autor. Não obstante, trata-se de um confronto abrasivo, apoiado no formalismo audiovisual ao ponto de alienar aqueles que não procuram esse tipo de experiência no cinema. No meu caso, que tendo a amar obras mais formalistas e as abstrações passadas de Oliver Laxe, o filme é uma delícia, o encontro perfeito entre espectador e espetáculo. É também mais uma prova de que, na contemporaneidade, poucas indústrias estão ao nível do cinema espanhol. Podem acrescentar o nome do galego aos de Almodóvar, Erice, Patiño, Serra e Simón.
Sirât
Conclusão:
- Depois de “Mimosas” e “O Que Arde,” Oliver Laxe volta à ribalta do cinema mundial com “Sirât.” Na máxima expressão do seu formalismo imersivo, o realizador sujeita as audiências a um crescendo de ansiedade com dois píncaros de choque capazes de dar arritmia ao público mais sensível. Este será daqueles filmes que leva alguém a sair da sala de cinema meio atónitos.
- Sergi López lidera o elenco e sustém a crueldade que Laxe precipita sobre as figuras humanas do seu conto. O rescaldo do primeiro choque é especialmente notável, algum do melhor trabalho na carreira do ator espanhol. Se julgam saber do que ele é capaz depois de ver “O Labirinto do Fauno,” desenganem-se.
- Além do Prémio do Júri dado ao realizador, o Festival de Cannes também galardoou “Sirât” com uma honra para a banda-sonora. Mereceu e ainda merecia mais uns quantos troféus pela fotografia, montagem e toda a sonoplastia que se enterra na consciência do espectador e puxa pelos extremos da aflição.