A Meia-Irmã Feia – Análise
Inspirada pelo body horror, tanto pelos clássicos como recentes triunfos, a realizadora norueguesa Emile Blichfeldt tornou o conto-de-fadas da Cinderela num pesadelo autêntico. Também conhecido como “The Ugly Stepsister” e “Den stygge stesøsteren,” esta “Meia-Irmã Feia” fez furor em Sundance e já foi nomeada para seis prémios Amanda, os Óscares noruegueses.
A Gata Borralheira já teve muitas faces ao longo da História do cinema. Ainda não tinha nascido o século XX e já a princesa que Charles Perrault imortalizou chegava ao grande ecrã. Fê-lo pela mão de George Albert Smith num registo de cinema narrativo ainda no seu estado mais primitivo, condensando o conto num abrir e fechar de olhos em imagética folclórica. Georges Méliès logo se seguiu com a sua versão e centenas de outros cineastas depois dele. A flexibilidade da história predispôs-se a grandes reinvenções, adaptando-se a Cinderela a novos tempos e novas culturas, uma metamorfose incessante desde as páginas oitocentistas até à vanguarda do digital.
Em Hollywood, a versão mais marcante terá sido a animação da Disney em 1950, mas o remake de Kenneth Branagh também merece menção. Digo o mesmo dos musicais com Andrews e Brandy e Leslie Caron, e revezamento modernizado que Hilary Duff protagonizou no novo milénio. Interessantemente, com estas infindáveis versões, raro é o exercício que descentraliza a personagem titular, mas existem exceções que provam a regra. Penso principalmente nas tentativas de redimir ou, pelo menos, entender as meias-irmãs feias que causam tanto transtorno à órfã feita criada. “Confessions of an Ugly Stepsister” ou as sequelas que a Disney lançou em VHS e DVD.
Mas, por falar em transformações causadas por perspetivas trocadas, também se pode refletir sobre o que acontece ao conto-de-fadas que passa de um género cinematográfico ao outro. Já falei no musical e há também muita exploração da Cinderela em estilo de comédia romântica contemporânea. Mas e o terror? Apesar de pensarmos nas versões do conto codificadas na literatura, há versões da história que remontam até aos tempos da Grécia Antiga. Ao longo desta existência milenar, muitas formas de contar o fado da Gata Borralheira apelaram a surgimentos de violência e hediondos gestos, expressões sanguinárias que inspiram o susto.
A busca pela beleza é o caminho para a loucura.
A mais famosa destas possibilidades será a germânica “Aschenputtel” em que, no desespero de casar com o príncipe, as meias-irmãs mutilavam o próprio corpo e, no fim, viam-se castigadas por pássaros que lhes rasgavam os olhos. Por isso mesmo, é fácil concluir que, de todos os contos-de-fadas clássicos, a história da Cinderela estaria especialmente predisposta a ser adaptada ao filme de terror. No entanto, é mais fácil ver uma Branca-de-Neve ou Bela Adormecida em tais preparos. Entre as centenas de Gatas Borralheiras filmadas, só meia-dúzia se transfiguram em pesadelo. Dou especial destaque à versão de Bong Man-dae e a “Boa Noite Cinderela” de Carlos Conceição.
Naquela proposta coreana, já se vê uma associação da história ao apelo faustiano da cirurgia plástica, essa forma de conquistar ideais de beleza através da manipulação da carne. Podíamos, portanto, entender essa fita de 2006 como precedente para o que Emilie Blichfeldt fez com “A Meia-Irmã Feia,” onde o terror da cosmetologia e a agonia da personagem secundária virada principal se unem para criar uma experiência desoladora, tragicomédia cruel e disforme, explícita ao ponto de puxar pelo vómito ao espectador. Porque, afinal, estas ideias todas conjugadas traçam um caminho direto para o subgénero mais visceral do cinema – body horror.
Decorrido num passado imaginário que se parece com a Noruega do século XIX, mas carece de especificidade e coerência, o filme considera a figura de Elvira. Ela e a irmã, Alma, vivem à mercê da sua ambiciosa mãe, Rebekka, cuja busca por riqueza a terá levado a seduzir um velho viúvo chamado Otto. Só que o senhor tinha as mesmas intenções oportunistas da noiva e casou-se com ela na esperança de saldar as dívidas com o dinheiro que, afinal, Rebekka não tem. Otto morre na noite de núpcias, deixando-a de novo enviuvada, na penúria, e com Agnes, sua nova enteada, para cuidar como se fosse sua filha.
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A arrogância da menina, bem mais bela que Elvira e Alma, não agrada à madrasta que ainda se vê mais vingativa quando a descobre em relações com o moço da estrebaria. Para poupar dinheiro, Rebekka faz de Agnes sua serviçal e gasta os poucos fundos que tem no embelezamento da filha mais velha por quaisquer meios possíveis, desde tratamentos cosméticos até lições de dança e boas maneiras. O objetivo será casar Elvira com o príncipe Julian e assim salvar a família. E como Rebekka não quer pagar aos coveiros, o cadáver de Otto permanece por enterrar, apodrecendo em cima da mesa de jantar sem ninguém que não seja Agnes a chorar-lhe a morte.
Em certa medida, Blichfeldt imagina Elvira como uma figura essencialmente passiva, ciente das expetativas maternas e feliz em sujeitar-se a quaisquer medidas drásticas que a outra mulher julga apropriadas. Ao início, é difícil registar alguma interioridade na meia-irmã feia da Gata Borralheira, com a prestação de Lea Myren até puxando pela leitura da personagem em traços de infantilidade prolongada, extemporânea em jeito grotesco. Mas, pouco a pouco, a missão mercenária da mãe parece enraizar-se na cabeça da filha, dando-lhe propósito e zelo ferrenho. Elvira fica assim crente dessa diretiva máxima, a beleza acima de tudo e a qualquer custo.
Falar só da conceção de Elvira em escrita e trabalho de atriz é insuficiente, pois “A Meia-Irmã Feia” é daqueles filmes em que o espetáculo sensorial da cena define as figuras humanas nela presentes. Não é só a sujeição da rapariga a cirurgias rudimentares que interessa. Mais importante é a encenação destes horrores, o jeito absurdo como Blichfeldt nos mostra o teatro de uma rinoplastia oitocentista e o trauma de suturar pestanas postiças em grande plano extremo. O corpo de Elvira torna-se em palco para uma ópera bufa de coração negro e humores cruéis, cada nova cena uma nova oportunidade para a humilhar ao belo prazer do público cinéfilo.
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Testemunhar como a rapariga não só aceita esta tortura, mas também a entende como parte do seu propósito nesta vida é reminiscente de ver uma pobre alma cair em devaneio religioso. Até o ato de engolir um ovo de bicha solitária ecoa a comunhão católica, enquanto os olhos esbugalhados sugerem o êxtase de uma fanática. Por muito que Blichfeldt exulte sensibilidades cómicas, é difícil não ter pena de Elvira e simpatizar com sua loucura, mesmo enquanto a menina insegura das primeiras cenas se torna numa ignóbil criatura disposta a tudo para atingir os seus fins. Quão mais bela, mais monstruosa fica, até que está disposta a infligir violência sobre os outros e não só sobre si mesma.
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O body horror é sempre meio solipsista – não necessariamente no mau sentido – e aqui resulta num retrato de personagem com claras intenções satíricas e a crítica declarada contra o culto da superficialidade. Por muito que o trajado remeta para um passado incerto, o comentário de Blichfeldt ataca as indústrias da beleza em pleno século XXI e o modo como estas se aproveitam das pressões misóginas que a sociedade impõe sobre as mulheres. Não admira que “A Meia-Irmã Feia” tenha sido alvo de comparações para com “A Substância” desde a sua estreia no circuito dos festivais. Infelizmente, tais analogias desmerecem o filme norueguês.
“Cinderela” ao estilo de “A Substância”.
Pois, apesar de Coralie Fargeat fazer muita referência cinematográfica, o burlesco de Demi Moore e Margaret Qualey em personagem bifurcada jamais se sentiu derivativo ou incoerente na sua proposta estilística. “A Meia-Irmã Feia” tem alguns gestos que parecem surgir mais por estarem na moda do que por clara motivação artística. Penso na banda-sonora eletrónica de John Erik Kaada e Vilde Tuv, na fotografia digital tétrica de Marcel Zyskind, na inclusão de planos-pormenor do sexo como ferramenta do choque fácil. Além de que, aplicar esta linguagem extremada ao conto-de-fadas e depois esticá-lo até aos 110 minutos só expõe os limites moralistas do material.
Críticas ferozes à sociedade sexista assim se arriscam a acusações de misoginia eles mesmos, especialmente quando a câmara contempla com tanto pavor a sexualidade sem vergonha da madrasta ou os desejos proíbidos de Agnes. As provocações de Blichfeldt e companhia acabam em conclusões sem grande profundidade, mais perto da filosofia do adolescente rancoroso que algo mais complexo que isso. Não será só “A Substância” que se eleva acima desta experiência. É fácil sugerir uma infinidade de outros títulos, desde o “Grave” de Ducournau até à “Hagazussa” de Feigelfeld, passando pelos prazeres de série-B à la “Frankenhooker” e “May.”
Enfim, fico grato pela materialidade exuberante da maquilhagem e dos efeitos, cenografia e figurinos, esse empenho na criação de um cinema háptico onde até a fada-madrinha se manifesta em forma de bichos-da-seda alimentados pelo festim do patriarca defunto. Num paradigma atual em que o terror se define tanto por temas psicológicos, heranças da memória e traumas geracionais, estas permutações híper-palpáveis do género merecem sempre aplauso. Além de que também não posso negar a diversão mórbida deste espetáculo, ou quão os esforços dos atores impressionam. Se houver justiça no mundo, Lea Myren será uma estrela!
A Meia-Irmã Feia
Conclusão:
- “A Meia-Irmã Feia” aparece na intersecção de uma série de tradições, tanto folclóricas como literárias e cinematográficas. Trata-se de mais uma reinvenção da Gata Borralheira, desta vez centrada numa das meias-irmãs maldosas que tentaram roubar o príncipe à órfã virada criada virada realeza por matrimónio. Só que, além disso, a realizadora Emile Blichfeldt pensou no conto através de um prisma-pesadelo, tornando a história da desengraçada Elvira num body horror cruel.
- O filme passa-se num século XIX imaginário, numa Escandinávia que nunca existiu, mesclando detalhes de décadas diferentes, fantasia e até alguma moda dos anos 60 que viram Bardot e Deneuve tornarem-se fenómenos mundiais. É uma colagem meio estranha de signos e significantes, concluindo com uma mensagem feminista sobre a tortura a que as mulheres se sujeitam para corresponderem aos ideais de beleza ditados por uma sociedade patriarcal.
- Prezo a execução técnica do exercício e tenho muito amor pelo empenho de Lea Myren no papel principal. Contudo, há algumas insuficiências textuais em evidência e um gosto pelo castigo que acaba por descambar no moralismo. Entre o excesso da forma didática e o Grand Guignol das imagens, “A Meia-Irmã Feia” arrisca a auto contradição, sem, no entanto, perder o seu apelo enquanto provocação perversa.