Lily Gladstone em Assassinos da Lua das Flores | Sem Oscar ‘scene’ mas com Oscar ‘face’
Lily Gladstone é uma das favoritas ao Óscar pelo seu impressionante trabalho no novo filme de Martin Scorsese.
Em “Assassinos da Lua das Flores”, o novo filme de Martin Scorsese, encontrámos um elenco de peso em que Leonardo DiCaprio e Robert De Niro se reúnem em topo de forma. No entanto, quando abandonámos a sala de cinema, quem fica na nossa memória é a atriz Lily Gladstone que, com poucos diálogos, expressa tudo o que precisa de ser dito com a força do seu rosto.
Filha de pai Black Feet e mãe branca, Gladstone cresceu entre a reserva de Black Feet e Seattle. Formou-se na Universidade de Montana com um bacharelato em Belas Artes em Teatro com foco em Representação e especialização em Estudos Nativos Americanos.
O seu primeiro papel profissional foi no filme independente, “Winter in the Blood” (2013), de Alex Smith e Andrew J. Smith. Gladstone estava apenas a ajudar nos castings como leitora porque já tinha colaborado em filmes estudantis dos realizadores, mas a diretora de casting Rene Haynes acabou por ficar cativada pela atriz, “Ela não estava a roubar as atenções nem nada parecido. Mas ela era tão fascinante.” e integrou-a no elenco.
Alguns anos depois, Haynes seria abordada por Mark Bennett que estava à procura de uma atriz para um papel de relevo em “Certas Mulheres”, de Kelly Recihardt. Haynes lembrou-se de Gladstone, que acabaria por ser a atriz selecionada.
Logo ali, Gladstone revelou-se ao público como um diamante em bruto, conquistando várias nomeações de prémios de crítica, incluindo o Indie Spirit Awards, como Melhor Atriz Secundária, acabando até por vencer o Boston Society Film Critics.
Quando se fala em Gladstone, pensa-se na subtileza e na nuance captada através do rosto, mas a atriz não tem essa visão de si própria, em entrevista à Vulture ela confidenciou que se considerava “uma character actress” e que “sempre fui a criança esquisita e energética”. Para a atriz, a sua face oval com uma notável transparência emocional é o grande motivo dessa ideia de suavidade. “Quando era pequena, o meu pai sempre me disse que eu não lhe poderia mentir porque dava para ver o que o meu rosto fazia”.
A atriz também acredita que como passou muito tempo com os mais velhos, “acostumei-me a estar numa posição em que se está aberto e pronto para aprender e ouvir. Alguém que está a ouvir está muito interessado. Acho que é isso que é interessante para uma câmara, mas quem sabe?”
Scorsese, um dos maiores realizadores em atividade, parece saber… “Ela tinha uma noção muito aguçada da sua própria presença diante da câmara e uma confiança extremamente incomum na simplicidade” e “Isso é uma coisa rara. Não dá para tirar os olhos dela”.
Quando Gladstone fez a audição via zoom com Martin Scorsese, o projeto tinha um foco diferente. DiCaprio interpretaria Tom White, o agente do FBI que acabaria por ser vivido por Jesse Plemons, e o filme seguiria a investigação dos crimes. Como nunca mais ouviu nada sobre o projeto, a atriz acreditou que a audição não tinha corrido bem.
Se a proposta chegasse, o plano da atriz seria aceitar, “porque não se recusa” uma oferta destas. Todavia, ela tinha as suas hesitações com a ideia de enquadrar um período tão escuro e ignorado da história do seu povo num mistério a ser resolvido pelos agentes federais. Além disso, a família da sua personagem Mollie não tinha uma presença significativa no argumento, mesmo sendo os alvos destes vis ataques.
Quando Scorsese voltou a contactar Gladstone já depois da pandemia, havia uma mudança porque, conforme o cineasta revelou em entrevista à Time Magazine, tinha percebido “que estava a fazer um filme sobre todos os homens brancos” e que esse não era o caminho certo a seguir.
O foco da história agora seria o casamento entre o ambicioso Ernest Burkhart, agora interpretado por DiCaprio, e a personagem de Gladstone que ganha contornos complexos durante os assassinatos e a posterior investigação do FBI.
Na nova perspectiva, a atriz acreditava que já não era um filme que seguia o tropo do “white saviour”, era uma história em que o povo Osage dizia “Façam alguma coisa. Aqui está o dinheiro. Venham nos ajudar.” explica.
A contribuição de Gladstone no filme foi muito além de atriz, havendo abertura por parte do mestre em ouvir e incluir a perspectiva nativo-americana.
Em relação a que histórias indígenas são contadas e quem as conta, Gladstone acredita que “é uma faca de dois gumes”. Por um lado, “queremos que mais nativos escrevam histórias nativas” mas “também queremos que os mestres prestem atenção ao que está a acontecer. A história americana não é história sem a história nativa”. Ou seja, ter alguém do nível de notoriedade e influência de Scorsese significa um grande alcance, todavia Gladstone recorda que há casos do passado em que cineastas de renome apresentaram projetos sobre comunidades tribais que deixaram os povos arrependidos de terem concordado em participar.
Com toda esta nova abordagem, aquela que é uma das favoritas ao Óscar destaca que tal lhe permitiu encontrar a sua personagem através de diálogos mínimos e momentos mais imersivos, contrariando os palavrosos diálogos de três páginas que antes lhe tinham sido apresentados.
Existe um debate sobre se Gladstone deveria ter optado por posicionar-se como Atriz Secundária, mas após o visionamento do filme, é perceptível o motivo da decisão de se definir como a Atriz Principal.
Quando em cena, Gladstone é a força do filme, assumindo o lado mais trágico da sua personagem, balançando também a atitude mais obstinada e provocadora da personagem no romance com o “handsome devil” interpretado por Leonardo DiCaprio. Inclusive, a química dos dois é muito palpável e deveria ser aproveitada no futuro em contextos menos sinistros.
Mesmo que a sua presença no ecrã seja inferior à de DiCaprio e provavelmente, até à de Robert De Niro, a sua Mollie é tratada com primazia pela câmara, que escolhe focar-se nas expressões faciais dela, mesmo quando há outros momentos mais chamativos a ocorrer.
É no conforto do expressivo rosto de Gladstone que encontramos a mensagem e a denúncia que Scorsese quer deixar, a ideia de como a ganância e o sentido de pertença levou à brutal e amplamente esquecida desumanização e chacina de um povo.
Portanto, Gladstone é o coração pulsante do filme e tem todo o direito a reclamar o estatuto de atriz principal num filme que coloca o foco na brutalização da sua comunidade. Vale também referir que a Academia tem o problemático histórico de não premiar atrizes não brancas na categoria principal com Michelle Yeoh, no ano anterior, a ser apenas a segunda premiada da história.
Em relação às suas chances, a atriz terá de lidar com o recém-favoritismo de Emma Stone por “Pobres Criaturas”, um dos grandes candidatos a Melhor Filme.
Muitos irão dizer que Gladstone não cumpre os critérios de uma prestação que o Óscar costuma reconhecer, não tem a chamada “oscar scene”. Pois bem, Lily Gladstone tem algo bastante superior, uma “oscar face” que assombrará os votantes por um longo período de tempo.
CLIPE | LILY GLADSTONE É A ESTRELA DE ASSASSINOS DA LUA DAS FLORES
“Assassinos da Lua das Flores” chega aos cinemas portugueses já no dia 19 de Outubro. Quais são as tuas expetativas para a mais recente obra-prima de Martin Scorsese?