Atlanta

Atlanta, segunda temporada em análise

Absurda e excêntrica, perspicaz e pertinente, descomplexada, subversiva e a transbordar de criatividade, “Atlanta” é o símbolo máximo das comédias que se atrevem a sentir tudo. Pertence à Robbin’ Season o melhor episódio de 2018.

Na cerimónia dos Emmys, a dupla de anfitriões, Colin Jost e Michael Che, propôs que as comédias da atualidade são na verdade dramas com cerca de 20 minutos. Bem vistas as coisas, a piada refletia uma tendência emergente nos últimos anos, na qual as fronteiras entre género se começam a esbater, permitindo ao autor cómico expor uma narrativa mais rica, explorar o sofrimento, e em última instância apresentar um quadro de sensações amplo, prisma do mundo real.

A arte de fazer (boa) comédia é vulgarmente desvalorizada. Os Óscares, onde não há separação por categorias como nos Emmy ou Globos de Ouro, exemplificam-no. Afinal, a dificuldade está enraizada na pluralidade cultural – todos choramos por razões semelhantes, mas rimo-nos de coisas diferentes – e numa espécie de exame que a Comédia enfrenta sempre. O eterno desafio de promover em nós uma alteração comportamental, conquistar-nos e fazer-nos rir ou sorrir. Até há poucos anos, na era das séries com as chamadas “gargalhadas enlatadas” como pano de fundo, que indicavam ao espectador quando se devia rir, subindo de tom nas punch lines, a Comédia era infelizmente mais matemática que hoje, mais stand-up e menos fluída.

Brian Tyree Henry (Atlanta)
Brian Tyree Henry (Atlanta)

A revolução destes dramas com 20 minutos foi operada por séries como “Louie”, “Master of None”, “Patriot” ou mais recentemente “Barry”. No limite, até “GLOW” e “Maniac” cabem neste enquadramento, servindo “BoJack Horseman” de porta-estandarte desta ténue fronteira na animação. Todos estes programas assumem ou privilegiam um POV humorístico, mas não se escondem de todas as restantes camadas – o desgosto, a depressão ou a solidão. Como se fizessem cair a máscara do comediante que sobe ao palco (penso em Robin Williams neste momento), colocando também sob o holofote tudo o que ele sente. Posto isto, há uma série que faz tudo isto melhor do que todas as outras. Falo de algo único – “Atlanta”.

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A série criada por Donald Glover (aka Childish Gambino) em 2016 é uma espécie de “Seinfeld” dos tempos modernos. Uma série simultaneamente sobre tudo e sobre nada. Absurda e excêntrica, perspicaz e pertinente, corajosa e descomplexada, subversiva e a transbordar de criatividade. Praticamente limitada a apenas 4 personagens – Earn (Glover), Paper Boi (Brian Tyree Henry), Darius (Lakeith Stanfield) e Van (Zazie Beetz) – e com a capacidade de sair constantemente fora da caixa e, sem limites impostos, colocar no ecrã algo novo. Algo diferente.

Zazie Beetz (Atlanta)
Zazie Beetz (Atlanta)

Após um ano de paragem, consequência natural da ocupada agenda de um músico genial, que foi Lando Calrissian e em breve dará voz a Simba, a série do FX voltou para se afirmar como uma das melhores de 2018, abraçando o subtítulo Robbin’ Season.

No centro, o desafio do manager Earn Marks fazer o seu primo, Paper Boi, singrar no panorama musical. Mesmo não tendo casa própria, uma carteira de contactos de respeito, sendo incapaz de estabilizar a sua relação com Van e ser presença regular na vida da filha. Com a realização maioritariamente entregue ao cada-vez-mais-cotado Hiro Murai, e o irmão de Donald Glover, Stephen, como elemento preponderante na escrita. “Atlanta” brilha pela sinceridade e química dos seus intérpretes, pelo respeito pela noção de comunidade/ bairro e paixão pelos subúrbios de Atlanta, pela imaginação com que nos oferece contos do século XXI e pelo modo como confere espaço e tempo a cada um dos 4 protagonistas, com uma sensacional noção do que é construir personagens e criar obstáculos, delineados com originalidade por quem sabe o que tem para dizer.

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A liberdade que o FX dá a Donald Glover – seria catastrófico o acordo Disney-FOX desvirtuar esta característica que define e distingue o canal de “The Americans”, “Legion”, “Fargo”, “It’s Always Sunny in Philadelphia”, “Archer” e dos projetos de Ryan Murphy –, depositando confiança cega na sua visão, resultou em alguns dos episódios mais marcantes do ano.

Teddy Perkins (Atlanta)
Teddy Perkins (Atlanta)

Deixando o enigmático Teddy Perkins (muito provavelmente o melhor episódio de 2018) para o fim, o storytelling desta segunda temporada de “Atlanta” incluiu nomeadamente uma festa privada em busca de Drake (Champagne Papi), um mergulho nas tradições e raízes de Van para agudizar a sua relação com Earn num ping-pong tenso (Helen), um corte de cabelo adiado durante um episódio inteiro, com Paper Boi a ser levado ao limite pelas sucessivas desculpas e obstáculos criados pelo seu barbeiro (Barbershop), uma alucinação na floresta como forma de luto (Woods) ou uma viagem à adolescência de Earn e Paper Boi para, através da asfixiante discussão de qual de dois colegas de turma tem uma camisola oficial e qual tem uma falsa, vincar os laços da relação entre os primos (FUBU).

Teddy Perkins, o sétimo capítulo de uma temporada fantástica, que talvez até merecesse um “Fora de Série” especial como há um ano fizemos com “Rick and Morty” (3.07 The Ricklantis Mixup), é tudo o que “Atlanta” é.

Intriga, humor, criatividade, bom gosto, uma mensagem forte e a habitual subversão – sim, o melhor episódio do ano é um episódio de terror numa série de comédia. Uma espécie de “Foge”, porventura superior. E isto dito por um tremendo fã da longa-metragem de estreia de Jordan Peele.

Lakeith Stanfield (Atlanta)
Lakeith Stanfield (Atlanta)

Num episódio mais longo do que o habitual na série, e que ao contrário dos restantes foi emitido sem qualquer interrupção comercial nos EUA, Teddy Perkins, escrito por Donald Glover e realizado por Hiro Murai, entregou o protagonismo ao habitualmente secundário Lakeith Stanfield. Ambíguo, desconfortável e assustador, Perkins atribui a Darius uma tarefa teoricamente simples: ir buscar um piano de teclas coloridas que descobrira online. O piano serve de ponto de partida para uma profunda reflexão inspirada em Michael Jackson, que bebe muito da relação deste e de Marvin Gaye com os seus pais, alimentando teorias e hipóteses, explorando infâncias traumáticas e o preço do talento e da eternidade numa mansão destinada a virar museu.

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Espécie de curta-metragem acessória ao tronco principal da narrativa, Teddy Perkins é uma envolvente obra-prima, que brilha em contraluz e em cada detalhe, com Donald Glover de tez branca (embora os créditos indiquem “Teddy Perkins interpretado por ele próprio” para elevar a personagem a mito urbano, uma brincadeira que gerou muito falatório na cerimónia dos Emmys) e a “Evil” de Stevie Wonder a servir de cereja no topo do bolo.

Crabs in a Barrel (Atlanta)
Crabs in a Barrel (Atlanta)

O FX não demorou a confirmar a 3ª temporada, que tudo indica estreará em 2019, apesar de Donald Glover ser uma cabecinha pensadora, versátil, fascinante e bastante ocupada, e sendo Brian Tyree Henry, Zazie Beetz, Lakeith Stanfield e Hiro Murai cada vez mais requisitados.

A fasquia está muitíssimo elevada, e o carácter experimental, surreal e ousado por certo não se perderá. A lógica deixaria adivinhar tour a três pela Europa na próxima temporada, mas se há palavra que não se aplica no universo de “Atlanta” é lógica. Seja como for: estamos com Donald Glover, estamos bem entregues.

TRAILER | “ATLANTA”

Em que lugar colocarias “Atlanta” nas melhores séries de 2018? Será Donald Glover o artista mais completo da atualidade?

Atlanta - Temporada 2
Atlanta Poster

Name: Atlanta

Description: Earn (Donald Glover) tenta fazer o seu primo Paper Boi singrar no panorama musical, mesmo não tendo casa própria, uma carteira de contactos de respeito, sendo incapaz de estabilizar a sua relação com Van ou ser presença regular na vida da filha.

  • Miguel Pontares - 89
89

CONCLUSÃO

O MELHOR – Teddy Perkins. “Atlanta” brilha pela sinceridade e química dos seus intérpretes, pelo respeito pelas noções de comunidade e bairro, pela imaginação e liberdade com que nos oferece contos do século XXI, com uma sensacional construção de personagens e criação de obstáculos, delineados com originalidade por quem sabe o que tem para dizer.

O PIOR – Se por um lado Brian Tyree Henry é o principal destaque individual da temporada, fica a sensação que Zazie Beetz podia ter mais tempo de ecrã. A menor linearidade narrativa beneficia a abordagem refrescante que coloca sucessivamente o espectador de olhos vendados até ao momento em que o pano cai e o episódio começa, mas essa diferença tem como preço não nos agarrar a um caminho uno como grandes séries de 2018 como “Better Call Saul” e “The Handmaid’s Tale”.

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