Maniac, primeira temporada em análise
É a mini-série do ano e uma das principais novidades de 2018. “Maniac” da Netflix mostra-nos a fantasia não como escape mas como forma de compreender a realidade. E é o palco perfeito para vincar a amplitude de Emma Stone e Jonah Hill, com o talento de ambos a navegar entre géneros.
O autor norte-americano Lloyd Alexander (1924-2007), com mais de 40 obras infanto-juvenis, disse em vida que não via a fantasia como um escape da realidade, mas sim como um meio para a compreender. Ao falar de “Maniac”, é difícil não ter presente este pensamento. Mas já lá iremos.
Na edição de 2017 da rubrica Actors on Actors da Variety, que coloca frente-a-frente e numa descontraída e informal conversa alguns dos melhores intérpretes do ano, habitualmente com algo em comum, Nicole Kidman – acompanhada por Ewan McGregor – identificou a participação de Matthew McConaughey e Woody Harrelson em “True Detective” (2014) como um ponto de viragem na atratividade do meio televisivo para os atores.
É inequívoco, muita coisa mudou. E as mini-séries, por não representarem um vínculo prolongado no tempo, tornam-se o palco perfeito para relançar carreiras, demonstrar versatilidade ou simplesmente abraçar um projeto paralelo apaixonante. Em 2019 teremos Meryl Streep em “Big Little Lies”, e a corrida ao Emmy de melhor atriz numa mini-série pode incluir nomes como Amy Adams (“Sharp Objects”), Emma Stone (“Maniac”), Patricia Arquette (“Escape at Dannemora”) e Florence Pugh (“The Little Drummer Girl”). Isto já assumindo que a “Homecoming” de Julia Roberts será submetida como drama e não como série limitada e ainda sem contar com os pesos pesados que farão companhia a Streep na aclamada série da HBO.
“Maniac” tem algo em comum com a série que Nicole Kidman disse ter mudado o panorama recente da televisão: tal como a primeira temporada de “True Detective”, também a série de Jonah Hill e Emma Stone foi realizada na íntegra por Cary Fukunaga. Aos 41 anos, um dos realizadores mais promissores de Hollywood e o eleito para dirigir o 25º Bond (caso não seja afastado como Danny Boyle por divergências criativas, preparem-se para um super plano-sequência a marcar a História do super-agente em 2020).
Aquela que pode ser considerada a mini-série de 2018 nasceu, em boa verdade, na Noruega. Espen PA Lervaag, Håkon Bast Mossige e Ingeborg Raustøl desenvolveram na Escandinávia o conceito que viria a ser adaptado por Patrick Somerville e Fukunaga. Na série original, um homem vivia um sem número de realidades alternativas no seu imaginário, sendo na realidade um paciente silencioso e enclausurado num hospital psiquiátrico.
Antes de mergulhar na loucura de “Maniac”, o reencontro de Stone e Hill pós-“Super Baldas”, subo à tona para vincar tratar-se acima de tudo de uma trip, capaz de abordar temas pesados e intensos de forma leve. Bom entretenimento, com tanto de profundo como de bizarro; uma aventura corajosa a nível de tom e de estrutura, hipnotizante através da sua componente visual imersiva e dos desempenhos multifacetados dos seus protagonistas. Globalmente, pela menor linearidade ou maior confusão (deliberada) e pela escrita sem medo, adivinha-se que a série não será consensual.
Tudo em “Maniac” respira de acordo com Owen Milgrim (Hill) e Annie Landsberg (Stone). Owen, a ovelha negra de uma família abastada, marginalizado pelos seus, visitado por um irmão que não existe, convicto de que tem uma missão e que está destinado a salvar o mundo. Annie, à procura de uma nova dose de uma droga capaz de a sedar e alienar da realidade, na qual se nega a completar o luto pela morte da sua irmã mais nova (Julia Garner). Os dois, juntos em plena solidão, conhecem-se como voluntários numa experiência farmacológica que se propõe, através de uma série de testes, a eliminar qualquer trauma, dor ou sofrimento, curando a mente.
Ao longo de dez episódios, que vão desde 27 até 47 minutos de duração, “Maniac” tece uma teia alucinante, com o seu quê de “O Despertar da Mente”, “A Origem” e “Legion”. O teste que nos faz viver as fantasias de Annie e Owen – supervisionado por dois cientistas interpretados por Justin Theroux e Sonoya Mizuno e monitorizado pelo interface GRTA, com a voz de Sally Field – é apresentado através de três fases, e respetivamente 3 comprimidos.
O comprimido A traz à superfície o episódio mais traumático que moldou a vida dos participantes. Depois, a montanha russa de fantasias interligadas inicia-se com o comprimido B, comportamental, capaz de expor de que forma cada participante mente a si mesmo. Finalmente, o comprimido C propõe-se a provocar aceitação e a dotar Annie, Owen e as restantes cobaias de uma capacidade de seguir em frente através do confronto.
Se isto não vos chega para experimentar “Maniac”, saibam então que, através de um erro sistémico, Annie e Owen, os sujeitos 9 e 1 da experiência, passam a partilhar as suas fantasias a partir da segunda fase, mesclando traumas, vivendo a dor um do outro e procurando uma superação conjunta porém complexa. Duas pessoas a viver o mesmo sonho, a alucinar com dose dupla de recalcamento, visitados por uma amálgama de símbolos, temas e pessoas do passado de ambos.
O puzzle é rico, surreal e melancólico, conferindo às peças sentido com o tempo e pontuando o humor negro que aligeira definitivamente “Maniac” com picos de catarse emocional. Esses picos, diga-se, chegam quase sempre com a câmara apaixonada pelos grandes olhos de Emma Stone, fazendo entrar o seu interrogatório em “Exactly Like You” e o confronto em “Utangatta” na galeria de melhores cenas deste ano.
Somerville (primeiro projeto depois de ter colaborado com Damon Lindelof em “The Leftovers”) e Fukunaga conceberam um universo fascinante, futurista mas tangível, e encheram-no com easter eggs e callbacks. Sim, é de loucos pensar que “Maniac” flutua entre o resgate de um lémure, uma jornada medieval à la “O Senhor dos Anéis”, a elegância dos anos 40, uma convenção das Nações Unidas, arriscando em dado momento fazer de Owen uma espécie de Post Malone e esticando a corda ao máximo com o falcão. Mas verdadeiramente de loucos é pensar que o resultado ou somatório de tudo isto… faz sentido.
Como Dom Quixote, “Maniac” atribui às suas personagens a incapacidade de distinguir a realidade e a ficção. A imortal obra de Cervantes é aliás um dos temas recorrentes da série (até moinhos aparecem!). Noves e uns, pipocas, o cubo de Rubik, um filme com elfos que mais tarde vira fantasia sonhada, toda a filmografia de Fukunaga distorcida, e homenagens a “Voando Sobre Um Ninho de Cucos”, “Alien – O 8º Passageiro” ou “Doutor Estranhoamor” são outros exemplos da devoção de Somerville e Fukunaga a plantar referências que fazem com que a série viva equilibrada pelos seus desequilíbrios.
O final é propositadamente ambíguo ao oferecer-nos, depois das resoluções individualizadas de Owen e Annie com as suas famílias, uma fuga que fora descrita no sexto episódio por Owen como a sua verdadeira fantasia. Sonho e liberdade que se tornou realidade, ou apenas a manifestação que Owen continua a sonhar? Opto pela primeira hipótese, nem tudo tem que ser um totem que permanece (ou não) em rotação eterna.
TRAILER | “MANIAC”
Já mergulhaste nas fantasias e alucinações de “Maniac”? Em que lugar colocas o projeto de Patrick Somerville e Cary Fukunaga para a Netflix no ranking de melhores séries de 2018?
Maniac
Name: Maniac
Description: Dois estranhos voluntariam-se para participar numa experiência farmacológica que se propõe a eliminar qualquer trauma, dor ou sofrimento, curando a mente.
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Miguel Pontares - 84
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Inês Serra - 70
CONCLUSÃO
O MELHOR – Os desempenhos dos dois protagonistas, principalmente Emma Stone. “Maniac” entretém, tendo tanto de profundo como de bizarro, e afirma-se como uma aventura corajosa a nível de tom e estrutura.
O PIOR – A menor linearidade ou maior confusão (deliberada), fruto de uma escrita sem medo, deixa adivinhar que a série não será consensual.