"Daaaaaalí!" | © NOS Audiovisuais

Daaaaaalí!, a Crítica | Quentin Dupieux em jeito surreal na Festa do Cinema Francês

Quentin Dupieux, máximo dadaísta do cinema francês contemporâneo, cruza-se com Salvador Dalí, o rei do surrealismo, numa comédia inusitada. “Daaaaaalí!” integra a secção “Rir à Grande e à Francesa” na Festa do Cinema Francês.

Um dos grandes problemas da cinebiografia, especialmente quando esta centra personalidades artísticas, é a desconexão entre a convencionalidade da forma e a figura central. Quando se retratam vidas revolucionárias, que quebraram as regras ou reinventaram o mundo, porque razão ficamos presos aos preceitos mais básicos do drama? Pensem nos filmes sobre Pollock ou Ray Charles, Lucille Ball, Judy Garland, Goya, Miguel Ângelo, David Bowie e tantos outros. Enfim, assim se diagnosticam as maladias de um subgénero preso à febre dos prémios e a procura constante pelo prestígio entre as massas e a massa crítica também.

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A respeitabilidade muitas vezes mata a imaginação. Por isso, talvez a melhor forma de abordar a cinebiografia seja com uma atitude desrespeitosa, meio rude, pronta a ofender e desafiar o espetador. Foi isso mesmo que Quentin Dupieux fez com Salvador Dalí, um desses génios artísticos cujo legado não merece ser embalsamado nos enfadonhos tradicionalismos da biopic sedenta do Óscar. Certamente, “Daaaaaalí” não se está a candidatar a prémio algum, preferindo brincar com as audiências e deitar a língua de fora. Prefere divertir-se numa evasão constante da seriedade. Até os seus jogos mais concetuais se pontuam com uma risada brusca, quase ordinária.

Um “biopic” que foge à convenção e ao bom gosto.

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Não dizemos isso em tom negativo, entenda-se. “Daaaaaalí!” é uma piada de mau gosto, mas grande inspiração que, do seu modo paradoxal, honra a memória de Salvador Dalí melhor que um projeto dito normal. Existe algo próximo de uma admissão de humildade por parte de Dupieux. Ou, pelo menos, uma vontade de revelar quão difícil será a confrontação do cineasta contemporâneo e esse artista plástico que definiu todo um movimento. Há muito em “Daaaaaalí!” que cheira a meta-cinema sobre a dificuldade de capturar a figura principal do projeto, algo escorregadio e esquivo, impertinente, perito em evasão e jogos fabulistas.

Afinal, este é um filme sobre a tentativa de fazer um filme, seguindo uma jornalista francesa que quer entrevistar Dalí, mas nunca o consegue fazer. Judith é apoiada por um produtor entusiasmado, desenvolvendo o trabalho com a intenção de fazer um documentário baseado na conversa impossível. Só que qualquer tentativa de dar início à coisa dá para o torto. Ora não há tempo ou o espaço-tempo contrai-se e um prelúdio no corredor perpetua-se além do real, parecendo mais sonho, porventura um pesadelo. Muitos episódios semelhantes acontecem ao longo dos anos, se bem que só Dalí envelhece, enquanto Judith está congelada, presa ao momento da entrevista por realizar.


Mais do que isso, através de sonho e memória, de várias camadas de histórias contadas e descontadas, Dalí metamorfoseia-se. Cinco atores diferentes interpretam o papel titular – Edouard Baer, Jonathan Coen, Gilles Lellouche, Pio Marmaï e Didier Flamand – destabilizando ainda mais o espetador. A caracterização cosmética e o figurino não mudam muito, dando mesmo a impressão que estamos perante uma personagem em fluxo transformativo, tão moldável e estranho como a matéria-prima feita em objeto artístico. A persona do homem famoso é uma performance, sua entidade uma série de máscaras. Não há só um “eu.”

Não admira que a desgraçada da Judith não o consiga entrevistar.  Mas lá se começam alguns diálogos, aqui e ali, sempre interrompidos, sem destino certo e sem conclusão. Muitas cenas se repetem, por vezes dando a impressão que as personagens estão enclausuradas num texto do qual querem escapulir. Daí surge muito humor, com os regressos cíclicos ao mesmo jantar a darem especial vontade de rir. Há um padre que não se cala e sempre que julgamos ter finalmente passado à frente, apercebemo-nos que ainda estamos dentro da sua história. Dalí desespera e nós rimo-nos, deleitados com a paródia à la Buñuel.

Dupieux arrisca um registo diferente do costume.

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De facto, “Daaaaaaalí!” mostra o realizador a experimentar com um estilo ligeiramente distinto do seu habitual. Apesar de muitos críticos categorizarem o trabalho deste autor como surreal, dadaísmo está mais perto da verdade, um surgimento de absurdismo que põe em questão as próprias ideias do que é arte e o que é pura patetice. O melhor de tudo é que a estranheza do seu cinema se desenrola num jeito perfeitamente casual, salientando a loucura com a ausência de uma reação chocada. Desta vez, contudo, salta-lhe o estilo para o surreal.

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A montagem e a estrutura são onde se reconhece mais essa mudança, mas as tonalidades de toda a obra rejeitam o absurdo sem estribeiras em prol de uma qualidade onírica mais pronunciada. O pintor, em particular, está sempre a demonstrar-se contra a forma do conto e a jornalista é sincera no seu suplício. Por vezes, isso resulta em grandes piadas. Noutras ocasiões, proporciona uma experiência mais serena e redundante que aquilo a que Quentin Dupieux nos habituou. De vez em quando, arrisca-se o tédio, mesmo com uma duração de 77 minutos. Dito isso, aplaudimos o homem que virou do dadá para o sonho e nos fez rir com suas irrealidades, que desafiou o molde do biopic e fez um filme à imagem de Salvador Dalí. É um verdadeiro encontro dos artistas.

A Festa do Cinema Francês decorre em Lisboa até ao dia 13. Depois disso, parte para o resto do país. Não percas!

Festa do Cinema Francês '24 | Daaaaaalí!, a Crítica

Movie title: Daaaaaalí!

Date published: 5 de October de 2024

Duration: 77 min.

Director(s): Quentin Dupieux

Actor(s): Anaïs Demoustier, Edouard Baer, Jonathan Cohen, Gilles Lellouche, Pio Marmaï, Didier Flamand, Romain Duris

Genre: Comédia, Biografia, Drama, 2023

  • Cláudio Alves - 80
80

CONCLUSÃO:

“Daaaaaalí!” demonstra a mutabilidade de Quentin Dupieux que renuncia ao absurdismo em nome de um registo mais estudadamente surreal. Em certas passagens, até parece prestar homenagem aos mestres desse movimento no cinema – o próprio Dalí e Buñuel também. Não é dos trabalhos mais extravagantes do realizador francês, mas parece-nos um exemplo a seguir no que se refere à cinebiografia. Não que haja algo minimamente biográfico no exercício. Isto é pura fantasia que, no máximo questiona a validade fundamental do filme retratista.

O MELHOR: O jantar com a história interminável do padre e aquele final ao estilo das Matrioskas, sempre a desencantar uma nova dimensão, todas umas dentro das outras. Além disso, o plano derradeiro é um piscar de olho certeiro.

O PIOR: Estrutura textual e montagem são zonas de loucura e variedade- Infelizmente, os restantes aspetos formais da fita pecam pelo ar simples e desengonçado- Queríamos muito mais, especialmente quando alguns dos filmes passados de Dupieux nos deram visões tão rebuscadas como moscas gigantes ou cartas de amor arquitetónicas em nome de Oscar Niemeyer.

CA

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