Dahomey, a Crítica: Mati Diop estreia o seu Urso de Ouro hipnótico no Doclisboa
Mati Diop, cineasta francesa de origem senegalesa, continua a ser uma das realizadoras mais empolgantes da contemporaneidade. Tudo isto na marca da sua segunda longa-metragem. “Dahomey” é uma experiência imersiva sobre o significado da restituição de obras de arte e a reconstituição de uma nação.
Primeiro veio o belíssimo, poderoso e assombroso “Atlantique”, em 2019, Grande Prémio no Festival de Cannes. Uma obra sobre a construção de uma torre futurista num subúrbio de Dakar, acerca da exploração da mão-de-obra, tudo o que esta implica, sobre movimentos migratórios, e as suas devastadoras consequências. O Oceano Atlântico, esse, é sempre a última barreira e fora filmado de forma belíssima, capaz de tirar o fôlego, com o azul mais superlativo a ameaçar devorar-nos com a sua melancolia, em conjunto com os testemunhos de todas as vidas para ele perdidas.
Mati Diop, uma autora inegável com este Dahomey
Agora, com a sua segunda obra, uma peça documental em vez de fictícia mas igualmente forte, Mati Diop volta a encantar-nos: esta é apenas uma segunda longa-metragem, mas ninguém o diria. Vencedor do Urso de Ouro no Festival de Berlim, “Dahomey” é apenas o segundo documentário a merecer tal distinção e não podíamos deixar de valorizar esta atribuição.
Com “Dahomey” constatamos uma marca autoral fortíssima. Esta é sim a mesma Mati Diop que filmou habilmente o Atlântico em 2019, e que com “Dahomey” estuda a gloriosa nação de Daomé. Este foi um reino poderoso da África Ocidental que existiu aproximadamente entre os anos de 1600 e 1904, um reino onde viveram fortes mulheres guerreiras (como retratado no blockbuster “The Woman King”) e um reino ao qual foi roubada a sua língua, os seus costumes e os seus tesouros, pilhados pelos colonizadores franceses na ordem dos milhares. Como é possível restituir o que foi roubado, e como é que o próprio sentido de comunidade deste povo pode restabelecer-se em pleno?
E de que forma a museologia, como conceito ocidental, pode servir o povo do Benim, com a sua história ancestral e civilizações ilustres? Há muitas questões colocadas por Mati Diop neste “Dahomey”, que, na marca de apenas uma hora e 8 minutos, pouco acima da extensão da longa-metragem, consegue problematizar um sem fim de questões e dar voz a uma nação de forma holística.
Uma versão dramatizada do regresso a casa de obras de arte
“Dahomey” é a história imersiva e a viagem guiada de um conjunto de obras de arte que regressam a casa. É a ilustração visual mais potente que já vimos no que à restituição de obras de arte diz respeito, uma narrada do ponto de vista do povo que foi brutalmente saqueado pelos seus colonizadores.
As temáticas de auto-determinação, restituição e apropriação são tratadas com um cuidado profundo, e a câmara de Diop é tão inventiva e criativa quanto não intrusiva. Em “Dahomey” temos a recuperação dramatizada da história de 26 tesouros reais do Reino de Daomé, agora a República do Benim, os quais foram em tempos mantidos num museu parisiense.
Entre as várias peças de arte, encontramos o número 26, o nosso narrador do filme. Ao todo, a guerra entre França e o extinto reino de Dahomey originou um total de cerca de 7.000 artefactos roubados. Agora, acompanhamos a devolução ao Benim de uma percentagem ínfima dessas peças e procuramos compreender o significado político e social deste acto.
O nosso narrador, o tesouro número 26, ganha vida nos primeiros minutos. Este acto é inesperado, poderoso, e torna todo o documentário para lá de entusiasmante – a partir do momento em que esta obra de arte começa a narrar o filme, também quem vê ganha vida. Aqui entra a tal marca autoral tão nítida de Mati Diop, a qualidade atmosférica e hipnótica que se vê associada ao seu trabalho.
Jornada poética de França para o Benim e pertença em Dahomey
A jornada de “26” começa em França, num museu, onde a obra se vê amordaçada e tratada com pouco carinho. Sentimos o seu sufoco, o seu desespero, a forma como personifica o sofrimento dos descendentes dos grandes guerreiros do Reino de Daomé e a sua luta. E eis que quando a estátua, juntamente com os restantes 25 tesouros, chega por fim a casa, ao Benim, é palpável como o tratamento no museu local é distinto, caridoso, pessoal, quente.
Eis que a obra, uma vez em “casa”, é tratada por arqueólogos, funcionários do museu, e antropólogos com um toque distinto, um toque mais humano, e um toque que é filmado na perfeição pela câmara de Mati Diop.
Neste Doclisboa é uma benção poder descobrir o poderoso documentário “Dahomey”, precisamente devido à qualidade humanista do olhar da cineasta. Sentimos, verdadeiramente, na pele, tudo o que a estátua sente. Sentimos o seu receio por estar encarcerada, sentimos a solidão por estar fechada no espaço do museu, a insegurança em relação a este ser o não o local indicado para si. Arrepiamo-nos, sentimos compaixão, desesperamos junto a si e sentimos esperança, muita esperança, num futuro onde o debate em torno das restituições de obras de arte roubadas se possa tornar mais franco e menos associado a conceitos difusos e pejorativos como “ideologia”.
Um debate público filmado por Mati Diop
A segunda metade do filme é igualmente forte, embora nos separemos um pouco mais do “número 26”, aquele que nos deixou agarrados ao ecrã no primeiro lugar. Assistimos, em primeiro plano, a um debate universitário acerca da importância da restituição das obras de arte. Aqui, a atual República do Benim procura conciliar o que significa receber de volta este conjunto de tesouros.
Todavia, existe uma cissão forte entre a identidade atual do Benim e a identidade que foi roubada a este povo, desde a sua língua aos seus costumes, passando pela própria forma de apresentação das obras de arte. A museologia ocidental não parece ser suficiente para encapsular o diálogo riquíssimo a que assistimos, e que Mati Diop filma de forma astuta – como uma testemunha quase invisível, que nos traz um pouco mais próximos de um artefacto documental que se faça invisível, mesmo que criativo e bem sustentado (e poético) nas suas escolhas. Quando ouvimos este fórum, ouvimos e compreendemos as muitas vozes do Benim atual, numa conversa entre passado e futuro, sempre do ponto de vista do povo em tempos colonizado e que recusa agora que essa herança o defina.
Inteligentíssimo, original, pautado por ângulos de filmagem tenros e humanos e por uma banda sonora verdadeiramente inspirada, “Dahomey” pode ser um documentário curto e sem um estrondoso orçamento, mas é empoderado pela escrita de Mati Diop, pela composição musical de Wally Badarou e Dean Blunt, pela fotografia exímia de Joséphine Drouin-Viallard e pela edição inteligente de Gabriel Gonzalez, capaz de contrapor presente e passado a cada momento.
Trailer | Dahomey está quase a estrear nas salas comerciais
Um documentário atmosférico e empolgante, “Dahomey” tem data de estreia em Portugal prevista para o dia 28 de novembro, pela mão da Nitrato. Recomendamos que não se perca esta obra tão impactante para o ano cinematográfico de 2024.
Dahomey, a Crítica
Movie title: Dahomey
Movie description: Novembro de 2021. 26 tesouros do Reino do Daomé estão prestes a deixar Paris para regressar ao seu país de origem, a atual República do Benim. Juntamente com milhares de outros, estes artefactos foram saqueados pelas tropas coloniais francesas, em 1892. Mas que atitude adotar perante o regresso a casa destes antepassados, num país que teve de avançar na sua ausência? Enquanto a alma dos artefactos é libertada, o debate instala-se entre os estudantes da Universidade de Abomey-Calavi.
Date published: 4 de November de 2024
Country: Senegal, França, Benim
Duration: 67'
Author: Mati Diop
Director(s): Mati Diop
Genre: Documentário
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Maggie Silva - 90
Conclusão
Mati Diop, cineasta francesa de origem senegalesa, continua a ser uma das realizadoras mais empolgantes da contemporaneidade. Tudo isto na marca da sua segunda longa-metragem. “Dahomey” é uma experiência imersiva sobre o significado da restituição de obras de arte e a reconstituição de uma nação.