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Ela Disse, em análise

“Ela Disse”, de Maria Schrader (realizadora em “Unorthodox”)  explora e dramatiza a investigação e artigo do New York Times (bem como o livro subsequente), que motivou a chegada do movimento #metoo e iniciou um processo de denúncias de abusos sexuais sistémicos, impulsionando a edificação de um diálogo que persiste (e persistirá).

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Esta recente produção cinematográfica, que se apresenta no circuito de festivais de cinema e na temporada de prémios em 2022/2023 com uma presença tímida, é na realidade um dos filmes mais eficazes do ano. Sim, não disse emocionante, inovador, ou deslumbrante do ponto de vista estético. Todavia, enquanto elemento biográfico, e enquanto homenagem séria à importância do jornalismo de investigação, “Ela Disse” sem dúvida cumpre o seu propósito e mais que justifica a sua existência.

Sem parecer fatídica ou categórica, a multiplicação de fontes de informação na era contemporânea, onde todos são “criadores de conteúdo”, acabou por contribuir para uma significativa desvalorização da profissão do jornalismo, uma relativamente recente e que tão ameaçada já se viu, ao longo da sua história, por inúmeros constrangimentos externos.

Ora, “She Said” é precisamente o tipo de narrativa que pertence numa sala de aula de jornalismo. Depois de os alunos e alunas verem Citizen Kane”, “Verdade ou Mentira” (para aprenderem a importância das verificações de fontes”) e “O Caso Spotlight” (para se inteirarem em relação ao que é uma boa representação de investigação criteriosa), eis que os e as jovens que rumam para uma profissão com muito idealismo envolvido mas pouco futuro, podem encontrar um outro filme de onde extrair ensinamentos: “Ela Disse”.

Com Carey Mulligan (“Uma Miúda com Potencial”, “An Education”) e Zoe Kazan (“The Plot Against America”, “The Big Sick”/ “Amor de Improviso”) no papel das jornalistas galardoadas Megan Twohey e Jodi Kantor do New York Times, “Ela Disse”, conduz-nos, como que através de um labirinto, pelos primeiros dias do #metoo.

A sua contextualização inclui até uma primeira tentativa tristemente falhada de tentar afetar a campanha de Trump através do testemunho de algumas das suas vítimas de abuso sexual, e toca até no caso da FOX News, que foi temática central, como uma espécie de pré-pré #metoo, no filme “Bombshell: O Escândalo”.

Mas onde “Bombshell”, um filme que por vezes cai na tentação de adoptar uma perspectiva de narração masculina, e que também mostra laivos ocasionais de ‘victim blaming’ (“porque é que não falaste?”), “She Said” não vacila. Uma narrativa ‘amiga’ das vítimas, a longa-metragem caracteriza-se por uma extrema empatia, minúcia, e pela capacidade de nos fazer torcer verdadeiramente tanto pela equipa jornalística como pelas vítimas.

Como vantagem, temos até algumas das vítimas de Harvey Weinstein, em câmara, ou emprestando a voz, a tornar toda a reconstrução mais rica e detalhada. Verdade seja dita, não são poucas as vezes em que o filme resvala, até um pouco demais, para o campo da reconstituição, em particular quando jovens recordam e narram os seus encontros traumáticos com o grande produtor da Miramax, encontros estes que as deixaram devastadas, traumatizadas e forçadas a mudar de indústria.

Early #metoo and the movie she said (2022)
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A crueldade do mundo do cinema é colocada em destaque e Megan Twohey, a personagem interpretada por Carey Mulligan, chega mesmo a verbalizar um argumento comum que é colocado em torno desta questão: “porquê falar de mulheres de Hollywood que já têm uma voz, atrizes?“. Uma vez com os preconceitos para trás das costas, as duas jornalistas, suportadas pela sua equipa, descobrem muito sobre a teia de abusos de Weinstein, que se estendia afinal bem para além das atrizes que havia abusado.

Volvidos quatro anos desde o início do movimento #metoo, “Ela Disse” pode já não surgir numa altura em que o tema está nas bocas do mundo (pelo menos em comparação com o período do julgamento de Weinstein). Todavia, como objeto que estimula a reflexão e maior conhecimento acerca do início deste movimento importantíssimo, que foi bem além da indústria do entretenimento, a obra nunca poderia vir numa má altura. Tal não existe.

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Kazan e Mulligan são uma dupla fortíssima e em muito contribuem para a emotividade da fita. Kazan, uma atriz que mora muito no reino do indie, mostra aqui, numa produção de maior dimensão, o que já sabíamos: é capaz de suportar um papel de protagonista em filme de estúdio com o maior dos desembaraços e entregar uma performance profunda, emotiva e acima de tudo empática. Se pensarmos no delicioso Ruby Sparks”, por exemplo, é excelente observar a sua evolução.

A dinâmica entre as duas presenças centrais do filme vive de um jogo de contrastes, entre a fragilidade contida de uma e a ferocidade da outra. Sem nunca parecerem unidimensionais ou caricaturais, o argumento permite-nos gravitar em direção a estas figuras.

Carey Mulligan e Koe Kazan em Ela Disse (2022)
Zoe Kazan e Carey Mulligan formam uma parelha equilibrada em “Ela Disse” |© 2022 Universal Studios. All Rights Reserved

Quanto a Carey Mulligan, uma autêntica força da natureza no que diz respeito a escolher papéis, encarna aqui mais uma mulher de armas. Depois de “An Education” ou recentemente e de forma mais relevante, “Uma Miúda com Potencial”, Carey parece cada vez mais uma especialista em ‘female rage’ (raiva feminina). A sua personagem é feroz, destemida, e capaz de colocar a cru muitos dos tormentos que assolam a ‘mulher comum’. Sim, aqui vemo-la particularmente feroz e acídica, pronta para enfrentar a entidade abstrata a que podemos chamar ‘The Man’.

“Ela Disse” é um filme muito simples e bastante formulaico apesar da forte carga emocional. Acima de tudo é eficaz, como referi previamente. Ora, esta simplicidade abundante deixa-me com um receio: que a obra seja esquecida entre as gotas da chuva e apelidada de “Oscar bait” (isco para os Óscares). Algo é certo ao ver o filme – as intenções da sua produção foram nobres e provavelmente até situadas algures no campo da redenção (considerando por exemplo que Brad Pitt, ciente das acusações contra Weinstein há décadas, é um dos produtores).

“She Said” estreou nas salas portuguesas no passado dia 17 de novembro e entra, à altura da redação deste artigo, na segunda semana de exibição. Permanece em exibição em mais de 2o ecrãs de cinema de norte a sul do país.

TRAILER | ELA DISSE ESTREOU NOS CINEMAS PORTUGUESES A 17 DE NOVEMBRO

Ela Disse, em análise
ELA DISSE

Movie title: Ela Disse

Movie description: Carey Mulligan (“Uma Miúda com Potencial”, “An Education”), atriz nomeada para dois Oscar® da Academia e Zoe Kazan(“The Plot Against America”, “Amor de Improviso”) são as jornalistas Megan Twohey e Jodi Kantor do New York Times, que descobriram uma das mais importantes histórias de uma geração – uma história que ajudou a divulgar o movimento #MeToo, estilhaçando décadas de silêncio à volta do tema do assédio sexual em Hollywood e alterou a cultura americana para sempre.

Date published: 24 de November de 2022

Country: EUA

Duration: 129 minutos

Author: Rebecca Lenkiewicz, Jodi Kantor e Megan Twohey

Director(s): Maria Schrader

Actor(s): Zoe Kazan , Carey Mulligan, Patricia Clarkson

Genre: Drama, Investigação

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  • Maggie SIlva - 80
80

CONCLUSÃO

“Ela Disse” é uma biografia de investigação que explora o arranque do movimento #metoo, tratando a temática com a devida seriedade e evitando erros comuns como a culpabilização das vítimas. Zoe Kazan e Carey Mulligan são o motor afetivo da longa-metragem.

Pros

  • As prestações centrais;
  • O respeito pelo trabalho de investigação;
  • Um filme longo que não se sente enquanto tal.

Cons

  • Perante a falta de aspiração artística ou poética, “Ela Disse” faz-se sentir quase documental. O filme não tenta investir na sua imagética, e apresenta um tom (quase) próximo do jornalístico;
  • O seu argumento é muito eficaz, mas não particularmente audaz.
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