Eu Nunca…, série completa em análise
“Eu Nunca…”, ou “Never Have I Ever”, disse em 2023, mais precisamente em junho, adeus à história de Devi Vishwakumar, uma jovem norte-americana de ascendência indiana. Será que esta série adolescente de primeira linha conseguiu fechar em chave de ouro?
A resposta curta é um estrondoso sim. Ao longo de quatro temporadas, emitidas entre 2020 e 2023, “Eu Nunca…” acompanhou a vida escolar e pessoal de Devi Vishwakumar (Maitreyi Ramakrishnan), uma tempestuosa adolescente americana que procura recuperar de um enorme trauma enquanto vive a sua experiência de liceu norte-americano.
Presa entre dois mundos, a cultura indiana da sua família e a experiência clássica dos Estados Unidos, Devi tenta conjugar a sua personalidade explosiva com as expectativas da sua mãe, ao mesmo tempo que procura cumprir todos os seus desejos. Ambiciosa e corajosa, Devi quer entrar para a prestigiada universidade de Princeton, uma das mais cobiçadas nos Estados Unidos da América, e quer também arranjar um namorado atraente e perder a sua virgindade quanto antes.
Co-criada por Mindy Kaling (“The Office”, “The Mindy Project”), não sendo autobiográfica, esta série faz-se servir de alguns dos elementos da adolescência da sua criadora para criar o enredo central. Uma narrativa de ‘ coming of age’, “Never Have I Ever’ acompanha todos os ritos de passagem na vida de liceu de Devi, da primeira vez ao primeiro triângulo romântico (bem bicudo mas sempre hilariante).
A história é bem simples, acompanhando-se a juventude e interioridade de uma jovem dos seus 15 aos 18 anos. A série terminou organicamente, na sua quarta temporada, à medida que Devi parte para a universidade. Para trás ficaram quatro anos sólidos de criação de personagens repletas de profundidade, numa história capaz de elevar a banalidade do dia-a-dia e criar algo mais.
Em primeiro lugar, “Eu Nunca…” é uma história sobre uma família emigrante, e acerca de imigrantes indianos nos EUA. Uma comunidade habitualmente representada através de lugares-comuns pouco lisonjeiros. Esta série, co-criada por uma filha de indianos com uma relação difícil com a sua cultura de origem, representa a experiência Hindu com graça, classe, detalhe e muito respeito, não deixando de brincar com expectativas, clichés e pré-conceitos.
Descrita pela própria Netflix como uma comédia de auto-descoberta, Devi herda a determinação da sua criadora, uma mulher entre homens nas salas de argumentistas (Mindy Kailing), bem como a sua teimosia e a sua capacidade de inverter estereótipos. Devi é inteligentíssima e ferve em pouca água – diz tudo o que não deve, revolta-se de forma bem audível quando se sente injustiçada e tem as emoções à flor da pele. É tudo menos uma menina bem comportada e coloca a sua vontade acima de tudo o resto.
Ao longo de quatro temporadas, o seu arco de crescimento é estrondoso e para lá de orgânico. A revoltada Devi, que sofre com o trauma da morte inesperada do pai, torna-se verdadeira mais adulta e aprende a dar primazia aos sentimentos de quem a rodeia – quer estejamos a falar da sua mãe Nalini (Poorna Jagannathan) , dos seus pretendentes Paxton Hall-Yoshida (Darren Barnet) e Ben Gross (Jaren Lewison), das suas melhores amigas Fabiola (Lee Rodriguez) e Eleanor (Ramona Young), da sua avó Nirmala (Ranjita Chakravarty) ou da sua bela prima Kamala (Richa Moorjani).
Quatro temporadas depois, estabelecemos a relação de amor entre Devi e tantas outras personagens – e depois de muito bater com a cabeça – a nossa protagonista aprende a respeitar as vontades das suas amigas, os desejos dos seus potenciais interesses românticos, as mentalidades distintas dos seus familiares. Isto com a ajuda da Dra. Jamie (Niecy Nash), uma terapeuta sem papas nas línguas que se assume como a relação mais importante na vida da jovem Devi Vishwakumar.
Pelo meio, Devi comete mesmo muitos erros, trata as amigas com desrespeito e coloca-se a si própria sempre em primeiro lugar. Não obstante, e em grande parte devido ao argumento sólido da série, e parcialmente devido ao carisma da atriz Maitreyi Ramakrishnan, nunca deixamos de torcer pela nossa protagonista. Nem quando decide namorar com Paxton e Ben ao mesmo tempo, partindo o coração de ambos no processo, nem mesmo quando recusa respeitar a sua mãe, que se mantém forte não obstante o desgosto da perda do marido.
Ficamos sempre do seu lado, salvo seja, porque sabemos que os seus atos resultam do sofrimento e duma personalidade impulsiva, desprovida de mau intento. É essa a magia de “Never Have I Ever”, fazer-nos torcer por uma miúda que não é perfeita, mas que está a passar por um processo constante de aperfeiçoamento. A série é perfeita para um binge-watch, à medida que vemos a picardia entre Devi e Ben desenrolar-se (num “text book” de romance, o delicioso lugar-comum de enemies to lovers – inimigos a amantes).
O seu outro romance, vivido com o rapaz mais popular da escola, Paxton, é inteiramente diferente. Diz-nos que o idealismo nem sempre é um bom companheiro, à medida que o próprio Paxton cresce e supera noções elementares como o conceito de popularidade. Mesmo uma personagem como esta, o aparente desportista sem muito na cabeça, nos é capaz de surpreender, não tivéssemos já defendido a maravilhosa construção de personagens desta comédia dramática adolescente.
Outro elemento essencial é mesmo o equilíbrio entre comédia e drama. Sofremos com Devi, mas rimo-nos com Devi, somos convidados para viver no seu mundo de forma plena. Com vários detalhes deliciosos, “Eu Nunca…” vence através da forma como habita a mente dos seus protagonistas. Num toque de génio, o tenista John McEnroe narra a vida de Devi, não fosse ele o desportista favorito do falecido Mohan Vishwakumar ( Sendhil Ramamurthy), pai de Devi.
Em alguns episódios pontuais, dois dedicados a Ben, e dois dedicados a Paxton, os nossos co-protagonistas, John McEnroe afasta-se e dá espaço a dois outros narradores omniscientes, Gigi Hadid, como a bela narradora da vida do belo Paxton, e Andy Samberg como um dos ídolos de Ben, que assume também a narração pontual do seu ponto de vista. Esta escapatória ocasional de pontos de vista, que ocorre pontualmente ao longo das quatro temporadas, enriquece a série com novos pontos de vista.
Particular destaque para um episódio narrado por Andy Samberg, na primeira temporada, apresentado do ponto de vista do eterno rival de Devi, Ben, intitulado “Never Have I Ever …been the loneliest boy in the world”( “Eu Nunca Fui o Rapaz mais Solitário do Mundo”). Aqui, o humor da série, extremamente inteligente, chega ao seu estado de graça. Aqui, o argumento revela a diferença clara entre uma boa série adolescente e uma série adolescente banal.
Com tristeza ocasional bem demarcada, “Eu Nunca…” sabe equilibrar bem a balança e nunca entrar no campo do melodrama adolescente que permeia há décadas a televisão (do seminal “Dawson’s Creek” ao atual fenómeno da Amazon “The Summer I Turned Pretty“). “Never Have I Ever …” é mais humano e real, mas também mais exacerbado do que a maioria dos dramas adolescentes. É também mais inteligente que a maioria das obras que caiem dentro do cânone.
A vida das personagens é repleta e carregámo-las connosco, bem depois de acabarmos de ver as quatro temporadas já emitidas. E para bem dos seus pecados, “Eu Nunca…” consegue também fazer-nos partir o coco a rir. Vai deixar saudades.
TRAILER | EU NUNCA, SÉRIE COMPLETA NA NETFLIX
Já viste “Eu Nunca…”, a série adolescente co-criada pela hilariante Mindy Kaling?
Eu Nunca..., série completa em análise
Name: Eu Nunca...
Description: Eu Nunca… é uma comédia de autodescoberta sobre a complexa vida de uma adolescente indo-americana moderna de primeira geração. A série é protagonizada por Maitreyi Ramakrishnan no papel de Devi, uma estudante sobredotada que se mete em apuros por ferver em pouca água. "Eu Nunca…" foi criada pelas produtoras executivas Mindy Kaling e Lang Fisher, com Fisher a assumir também as funções de diretora de produção.
Author: Mindy Kaling e Lang Fisher
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Maggie Silva - 90
Eu Nunca...
“Eu Nunca…” é uma narrativa adolescente pouco usual, com um ângulo concreto e muito desenvolvimento das suas personagens ao longo dos anos. Do trauma ao crescimento, Devi é uma personagem plena e irresistível. A sua intérprete central ajuda muito à força do conteúdo, bem como o argumento.
Pros
- Uma dupla de criadoras à frente de um conteúdo adolescente, que sabem conferir-lhe uma aura de autenticidade inegável;
- A grande intérprete da personagem central;
- Um triângulo romântico bem aproveitado, e muito menos desesperante do que muitos encontrados em conteúdo adolescente;
- O verdadeiro crescimento que se faz sentir ao longo de quatro temporadas.
Cons
- Muitos mal entendidos para adiar acontecimentos, também conhecido como conveniência narrativa;
- Alguns dramas familiares arrastados.