They Shot the Piano Player. © Festival de San Sebastián

Mataram o Pianista, a Crítica | A bossa nova e a beleza contra a barbárie!

Mais de uma década depois da nomeação aos Óscares de “Chico & Rita”, a dupla Fernando Trueba e Javier Mariscal, regressam com “Mataram o Pianista”, mais uma co-produção internacional de animação, em que novamente o cerne é a música. Desta vez trata-se de uma investigação jornalística sobre o misterioso desaparecimento do pianista brasileiro Tenório Jr., um dos músicos menos conhecidos da Bossa Nova. Estreou na Monstra 2024 e chega às salas a 21 de março.

Treze anos após a estreia de “Chico & Rita”, a dupla Javier Mariscal e Fernando Trueba regressam às salas de cinema portuguesas com este “Mataram o Pianista” uma animação, que mistura ficção (ou investigação) com documentário, para apresentar a história de Tenório Jr., um excepcional pianista da bossa nova, não tão conhecido como os seus contemporâneos (Vinicius da Moraes, Toquinho, ou Gilberto Gil…, entre outros). O realizador Fernando Trueba é conhecido pela sua melomania e sobretudo o seu gosto pelos ritmos latinos, além da sua enorme cinefilia. Vejam-se por exemplo filmes como “Calle 54” (2000) ou “O Milagre do Candeal” (2004).

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Neste seu novo filme, um jornalista musical de Nova Iorque, Jeff Harris (que não existe, é pura ficção), faz uma acelerada investigação sobre o desaparecimento, nunca muito bem explicado, desse pianista brasileiro, numa madrugada de março de 1976, que saiu do hotel para comprar cigarros, horas depois de se apresentar num espectáculo no Gran Rex, com os grandes Vinicius de Moraes e Toquinho e nunca mais ninguém o viu. Fernando Trueba descobriu Tenório Jr. depois de ter ouvido um solo de piano entre alguns discos que comprou no Brasil, precisamente durante as filmagens de “O Milagre do Candeal” (2004), um documentário sobre as experiências musicais de Carlinhos Brown, na comunidade do Candeal, em São Salvador, Bahia.

Surpreso com a pouca informação sobre Tenório Jr., o realizador começou a pesquisar e uma das primeiras pistas levaram-no precisamente ao Festival de Cinema de San Sebastian, onde assistimos o ano passado à estreia de “Mataram o Pianista”. Em 2005, foi lá apresentado o documentário “Vinicius” e, graças a isso, Trueba pode entrar em contato com pessoas que conheceram pessoalmente Tenório Jr.. Assim, passou umas décadas trabalhando neste projeto, entrevistando mais de uma centena de pessoas que tinham muito a dizer sobre o músico, sobre sua vida e o seu desaparecimento. 

They Shot the Piano Player
Em ‘Mataram o Pianista’, o actor Jeff Goldblum dá voz ao jornalista de investigação.  © Festival de San Sebastián

A ANIMAÇÃO FOI UMA IDEIA MALUCA

“Foi uma loucura não ter contado a ninguém, esperando que em algum momento esquecesse a ideia”, brincou o cineasta na conferência de imprensa após a exibição do filme. “Não foi assim e, com o passar dos dias, a ideia pareceu-me cada vez mais acertada”, explicou. Porém, segundo Trueba, “um documentário teria se tornado uma sucessão de depoimentos, enquanto que com a animação conseguiram reconstruir o pianista desaparecido interagindo com a sua família ou tocando nos mesmos locais onde o fez e que agora não existem mais”. Por isso, com todo esse material gravado, Trueba teve “a ideia maluca” de transformá-lo num filme de animação com o seu parceiro Javier Mariscal.




VÊ TRAILER DE “MATARAM O PIANISTA”

O JORNALISTA JEFF (GOLDBLUM) HARRIS

“Mataram o Pianista” conta a história de um jornalista nova-iorquino chamado Jeff Harris (Jeff Goldblum) — embora não tenha nenhuma semelhança física com com o original, vamos escutar a sua voz inconfundível — que está a preparar um artigo e depois um livro sobre a bossa nova e torna-se no fio condutor — numa espécie de alter ego do cineasta — das entrevistas que Fernando Trueba tinha realizado, sobre o músico, sobre sua vida e o seu desaparecimento.

Na verdade, ao que é revelado aos poucos nos mais diversos testemunhos do filme, tratou-se de um sequestro pelas mãos da polícia política argentina, que levou o infortunado pianista, para a ESMA (Escola de Mecânica da Marinha), uma casa dos horrores onde a ditadura de Videla, torturou, violou, assassinou muitos revolucionários. Tenório foi supostamente confundido com um deles e assassinado por usar barba e cabelos compridos, ter carteira profissional de músico, que para os militares, presumia ser amigo dos comunistas.

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“Há momentos em que a ficção é mais verdadeira do que a realidade e, neste caso, pareceu-me mais credível que fosse um americano e não um realizador de cinema espanhol a investigar o caso”. O cineasta justificou esta decisão aludindo, à ligação direta que os EUA, tinha com as ditaduras daquela época. A Operação Condor, apoiada pelos EUA, transformou a América Latina num ninho de ditadores e num terreno de caça sem quartel para subversivos.

Mataram o Pianista
O pianista brasileiro Tenório Jr., um dos músicos menos conhecidos da bossa nova. ©Filmes4you/Divulgação



ENTRE O RIO DE JANEIRO E BUENOS AIRES

As imagens coloridas desenhadas por Mariscal — autor de Cobi, a mascote de Barcelona’92 — são magnificas e fazem-nos viajar no tempo e no espaço — do Rio de Janeiro a Nova Iorque e a Buenos Aires; notável é igualmente a banda sonora, repleta de fabulosas canções que muitas conhecemos, que nos fazem cantar para dentro alguns dos melhores ritmos brasileiros de sempre. É um beleza observar ainda, a plasticidade das ilustrações, o desenho dos personagens, os azuis e vermelhos, os brancos e pretos, os sons, os acordes, as vozes (entre elas também a do grande Tony Ramos, em João, o amigo ou o contacto brasileiro de Jeff), as percussões.

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Sabemos da ampla ligação do cineasta com a música, até como produtor musical de Bebo Valdés, assim uma das melhores cenas de “Mataram o Pianista”, foi reservada para o seu amigo do peito — falecido em 2013, aos 94 anos — pois o pianista cubano toca uma partitura resgatada de Tenório Jr. a pedido do jornalista protagonista. Trata-se de um precioso momento musical que recria a gravação, de “Embalo” (1964), o único álbum composto por Tenório Jr..

Mataram o Pianista
“Mataram o Pianista” dá vida ao homem e à boémia em Copacabana, Ipanema e Leblon. ©Filmes4you/Divulgação

UMA DECLARAÇÃO DE AMOR À BOSSA NOVA

Em suma, o filme acaba por ser também uma declaração de amor dos autores à bossa nova e ao cinema, com as referências a Jean-Luc Godard e François Truffaut: um dos personagens chega mesmo a afirmar que a bossa nova e a nouvelle vague, mudaram a história da música e do cinema. Para os dois criadores da longa-metragem, “estes dois movimentos revolucionários mudaram o mundo e desenvolveram outra forma de contar e cantar” e, esse sentimento está permeado por todo o filme, que é uma luminosa canção de amor à vida e à música, numa celebração do legado de um artista que foi assolado pela estúpida e sanguinária decisão de uns idiotas.

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“Mataram o Pianista” dá vida ao homem, tocando as teclas, rindo com a família ou com os seus amigos e parceiros da famosa boémia da praia de Copacabana, Ipanema ou Leblon, lembrando-o como um dos grandes nomes do samba-jazz e da história da música brasileira. O filme tem ainda o seu lado didático e uma forte mensagem contra a barbárie, nestes tempos polarizados e com a extrema direita em ascensão em todo o mundo.

“Mataram o Pianista”, a Crítica
Mataram o Pianista

Movie title: Dispararon al pianista

Movie description: Um jornalista de Nova Iorque inicia uma investigação para descobrir a verdade por trás do trágico e misteriosos desaparecimento do jovem virtuoso piano brasileiro Tenório Jr., originando uma jornada narrativa que, ao mesmo tempo, irá comemorar a época da Bossa Nova brasileira e a liberdade criativa que caracterizou a raiz deste movimento, tendo em pano de fundo a contrastante brutalidade dos regimes ditatoriais que, nos anos 60 e 70, emergem na América Latina.

Date published: 12 de March de 2024

Country: Espanha

Duration: 103 min

Director(s): Fernando Trueba e Javier Mariscal

Actor(s): Jeff Goldblum, Roberta Wallach, Tony Ramos

Genre: Animação, Biográfico, 2023,

  • José Vieira Mendes - 85
85

CONCLUSÃO:

Após uma prolongada gestação de mais de uma década, a magistral dupla constituída pelo cineasta espanhol Fernando Trueba e pelo desenhador Javier Mariscal — os criadores de ‘Chico & Rita’ (2010) — regressaram com “Mataram o Pianista” um filme musical maravilhoso, que é ao mesmo tempo um documentário de investigação. Este filme em tom otimista e ousado, segue a figura de Jeff Harris (a voz de Jeff Goldblum), um jornalista musical de Nova Iorque, numa investigação para a The New Yorker — que depois se transforma em livro — para descobrir a verdade sobre o misterioso desaparecimento do discreto, mas extraordinário músico e pianista brasileiro Tenório Jr., que desapareceu em Buenos Aires, durante a ditadura militar e não mais foi visto. A narrativa reflecte de uma forma sentida a paixão que permeia esta luminosa animação, passada entre as ruas de Nova Iorque e da Cidade Maravilhosa, com a Praia de Ipanema e o Morro dos Dois Irmão, em fundo. O filme, desenrola-se com a ajuda do carioca João (dobrado pela voz de outro grande, Tony Ramos), leva-nos numa viagem vibrante ao coração de uma música que mudaria a história para sempre e partilha a trágica história desse músico cuja vida foi demasiado curta, por culpa de uns sanguinários idiotas. Nesta co-produção internacional estão envolvidos a produtora portuguesa Animanostra, com o produtor Humberto Santana no genérico, bem com a RTP e o ICA.

JVM

Pros

O maravilhoso visual da animação, dos desenhos das cidades e das personagens e sobretudo uma banda sonora imbatível, com a música de Vinicius de Moraes ou João Gilberto ou a do próprio Tenório Jr., praticamente desconhecida.

Cons

É mesmo talvez um certo excesso de depoimentos e de figuras que dão seu testemunho sobre o protagonista, às vezes sem acrescentar muito à narrativa. Mas a animação e as vozes originais dessas pessoas, superam esta questão. 

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