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Mickey 17, a Crítica | Um filme sobre cópias é, ironicamente, único

Em “Mickey 17”, Bong Joon Ho prova que a única coisa melhor que um Robert Pattinson são dois Robert Pattinsons.

Quando o cineasta sul-coreano Bong Joon Ho nos presenteou com “Parasite” (Filmin) e levou para casa o Óscar de Melhor Filme, muitos especularam sobre qual seria o seu próximo passo. Seria possível superar tamanha proeza? A resposta chega-nos sob a forma de “Mickey 17”, uma obra que combina o melhor de “Snowpiercer” (Filmin) e “Okja” (Netflix) numa aventura espacial inegavelmente excêntrica que só poderia ter saído da mente deste realizador singular. Podíamos dizer que se trata de uma crítica feroz ao capitalismo, mas isso seria tão óbvio como afirmar que a água é transparente. Assim, o que torna “Mickey 17” verdadeiramente especial é a forma como Bong Joon Ho utiliza os horrores do sistema económico como ponto de partida para explorar algo muito mais profundo: o que significa ser humano num mundo que trata as pessoas como mercadorias descartáveis.

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Quando o teu trabalho é literalmente morrer

Mickey 17
© Kate Street Picture Company

Num futuro distópico onde a Terra se tornou inabitável, um grupo de sobreviventes embarca numa missão espacial para explorar Niflheim, um planeta gelado que poderá servir como novo lar para a humanidade. No topo da hierarquia está Kenneth Marshall, interpretado por um Mark Ruffalo deliciosamente sinistro, um político falhado que sonha criar o seu próprio pequeno feudo estelar povoado por “super pessoas num planeta branco e puro”. No fundo da escala social encontramos Mickey Barnes, brilhantemente interpretado por Robert Pattinson, um órfão com baixa autoestima que aceitou o cargo de “Descartável” da nave – um ser humano cujos dados e memórias são guardados num disco rígido para que o seu corpo possa ser infinitamente reimpresso cada vez que morre.

É aqui que o absurdo se instala confortavelmente. Mickey morre. Repetidamente. E ninguém se importa. De facto, é o seu trabalho. Precisam de alguém para verificar se existe um vírus mortal na superfície do planeta? Mandem um Mickey. Uma peça da nave precisa de ser reparada num ambiente hostil? Mandem um Mickey. Quando o filme começa, já estamos no Mickey 17, o que nos faz questionar quantas mortes atrozes este pobre coitado já sofreu em nome do “bem maior”. Como diz uma personagem com uma casualidade arrepiante: “Tenha uma boa morte, vemo-nos amanhã.”

Dois Pattinsons pelo preço de um

Robert Pattinson e Robert Pattinson em Mickey 17
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O que podia ser melhor que Robert Pattinson num filme de Bong Joon Ho? A resposta óbvia: dois Robert Pattinsons! Quando Mickey 17 cai numa colónia de “Creepers” – criaturas alienígenas que se parecem com isópodes gigantes saídos dos pesadelos mais febris de Hayao Miyazaki – a tripulação presume que ele morreu e imprime Mickey 18 sem sequer se dar ao trabalho de recuperar o corpo do anterior. Pequeno problema: Mickey 17 sobreviveu, e agora temos dois Mickeys numa nave onde a duplicação é estritamente proibida.

Pattinson entrega aqui um tour de force, criando duas personagens distintas a partir do mesmo material genético. Mickey 17 é tímido e submisso, fala como se alguém lhe estivesse constantemente a apertar a garganta, enquanto Mickey 18 é relativamente mais assertivo, faz-nos lembrar vagamente o Bruce Wayne emo que o ator interpretou recentemente. O conflito entre os dois Mickeys podia facilmente descambar para o território da farsa, mas nas mãos habilidosas de Bong, transforma-se numa exploração fascinante sobre identidade e valor próprio.

Uma nave chamada desigualdade

Mark Ruffalo
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Se existe algo que Bong Joon Ho sabe inegavelmente fazer com maestria é criar microcosmos que refletem as desigualdades sociais do nosso mundo. Se em “Snowpiercer” tínhamos um comboio estratificado por classes, aqui temos uma nave espacial onde a função de cada um determina o seu valor como ser humano. É uma das estranhas ironias do capitalismo que pessoas com funções claramente definidas sejam frequentemente menos valorizadas do que aquelas cujo maior talento é criar a ilusão da própria importância.

A produção de Fiona Crombie merece destaque especial, criando espaços claustrofóbicos que parecem uma versão de “Alien³” mas com mais coração. Cada corredor, cada compartimento da nave conta uma história sobre quem tem poder e quem não tem. A sujidade e o desgaste são palpáveis, comunicando visualmente que estamos perante uma sociedade em decomposição. Quando vemos a diferença no tratamento dos diversos Mickeys ao longo do tempo – do cuidado quase reverencial com que Mickey 1 é recebido à indiferença total com que Mickey 11 é deixado a morrer no chão enquanto o técnico joga no seu tablet – percebemos tudo o que precisamos saber sobre como os sistemas desumanizam as pessoas.

O amor de Bong pela humanidade

Naomi Ackie e Robert Pattinson
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Apesar da premissa sombria, “Mickey 17” é, surpreendentemente, o filme mais caloroso e afetuoso de Bong Joon Ho. No centro desta história encontra-se uma narrativa romântica bizarra, mas estranhamente comovente. Naomi Ackie brilha como Nasha, uma soldada de sangue quente que reconhece a coragem de Mickey pelo que realmente é e se vê inadvertidamente numa situação muito parecida à do filme “Challengers“, mas no espaço e com dois Robert Pattinsons.

Assim, à medida que os dois Mickeys competem pela afeição de Nasha, o filme levanta questões fascinantes sobre o amor e a exclusividade. Afinal, se ambos são tecnicamente a mesma pessoa, com as mesmas memórias (até certo ponto), será que Nasha está a trair um com o outro? A situação podia facilmente descambar para o território da comédia barata, mas Bong trata-a com uma sensibilidade surpreendente, encontrando humor na situação sem nunca ridicularizar os sentimentos envolvidos.

A revolução não será impressa em 3D

Robert Pattinson em mickey 17
Robert Pattinson. © 2025 Warner Bros. Entertainment Inc. All Rights Reserved

O que eleva “Mickey 17” acima de uma simples sátira é a forma como utiliza a sua premissa absurda para explorar questões profundamente humanas. Num sistema que trata Mickey como mercadoria descartável, a sua multiplicação acidental torna-se um ato de resistência involuntária. Pela primeira vez, Mickey é forçado a olhar para si mesmo – literalmente – e a questionar o seu lugar no mundo.

O filme posiciona a incapacidade de sentir a dor alheia como a condição natural de um sistema orientado para o lucro, e a replicação humana como o passo final para eliminar o valor próprio de um trabalhador. Mas mesmo nas circunstâncias mais desumanizadoras, a obstinada humanidade das personagens recusa-se a ser apagada. Há algo inegavelmente comovente na forma como os diversos tripulantes da nave – interpretados por um elenco secundário excelente, com destaque para Thomas Turgoose – se vão gradualmente interessando pelo que significa realmente morrer, apenas para descobrir que, de certa forma, já sabem a resposta.

Assim, por muito que o Mickey seja tecnicamente imortal, “Mickey 17” é, no fundo, um filme sobre a fragilidade e preciosidade da vida humana. É sobre a forma como os sistemas económicos nos convencem de que somos substituíveis, quando a verdade é que cada um de nós carrega uma constelação única de experiências, memórias e potencialidades que nenhuma replicação podia verdadeiramente capturar.

Uma odisseia espacial com coração

Robert Pattinson em Mickey 17
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“Mickey 17” confirma assim que Bong Joon Ho é um dos cineastas mais originais e importantes da atualidade. Combinando a sua crítica social com uma nova camada de humanidade, o realizador criou inegavelmente o seu melhor filme em língua inglesa até à data. Robert Pattinson prova mais uma vez que está a anos-luz de distância dos seus dias como vampiro cintilante, entregando não uma, mas duas performances memoráveis que certamente entrarão para os anais da sua já impressionante carreira.

O filme não é perfeito – o arco do Mickey 18 parece por vezes apressado, e algumas personagens secundárias, particularmente Ylfa (Toni Collette), parecem subdesenvolvidas. Mas estas são pequenas falhas num filme que é simultaneamente uma aventura espacial, uma sátira social e uma meditação sobre o que significa estar vivo.

Como Bong nos ensinou repetidamente ao longo da sua carreira, os verdadeiros monstros não são os alienígenas bizarros de planetas distantes, mas os sistemas que criamos e que nos devoram por dentro. “Mickey 17” acrescenta a esta mensagem familiar uma nota de esperança: talvez, mesmo nas circunstâncias mais desumanizadoras, a nossa humanidade obstinada se recuse a ser completamente erradicada.

Nota final: 8/10 Mickeys que foram descartados na produção deste filme

Assim, Bong Joon Ho continua a ser um realizador com uma voz única e inconfundível. Não é perfeito, mas é precisamente nestas imperfeições que a humanidade do filme reside.

Trailer | Mickey 17

Qual é o vosso exemplo favorito de duplicação no cinema, e como é que “Mickey 17” se compara a essas experiências? Patilha a tua opinião nos comentários.

Mickey 17, a Crítica
Mickey 17 - Poster

Movie title: Mickey 17

Movie description: "Mickey 17" é um filme de ficção científica realizado por Bong Joon Ho, baseado no livro "Mickey7" de Edward Ashton. A história acompanha Mickey Barnes (Robert Pattinson), um "descartável" numa missão para colonizar o planeta gelado Niflheim. Após ser dado como morto numa missão, Mickey retorna à base e descobre que um novo clone seu, Mickey 18, foi ativado para o substituir. Ao enfrentar a política da duplicação proibida, ambos os Mickeys lutam pela sobrevivência e pelo seu lugar na colónia. O filme explora temas de identidade, valor humano e as implicações éticas da clonagem.

Date published: 6 de March de 2025

Country: Reino Unido, Estados Unidos da América

Duration: 137'

Director(s): Bong Joon Ho

Actor(s): Robert Pattinson, Toni Collette, Mark Ruffalo, Naomi Ackie

Genre: Ficção Científica, Aventura, Comédia Negra

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  • Vítor Carvalho - 80
80

Conclusão

“Mickey 17” é uma odisseia espacial que mistura o absurdo com o profundamente humano, provando que Bong Joon Ho é um mestre em transformar críticas sociais em narrativas cativantes. Com dois Robert Pattinsons pelo preço de um, o filme equilibra humor, tragédia e uma pitada de romance, tudo enquanto questiona o que nos torna verdadeiramente humanos num sistema que nos trata como descartáveis. Apesar de alguns arcos apressados e personagens secundárias subdesenvolvidas, a obra brilha com a sua originalidade e coração. No fim, “Mickey 17” é uma viagem que vale cada Mickey sacrificado. 8/10 Mickeys descartados durante a produção deste filme.

Pros

  • O filme confirma Bong Joon Ho como um dos cineastas mais originais e importantes da atualidade, combinando crítica social com uma nova camada de humanidade.
  • Robert Pattinson entrega duas performances distintas e memoráveis, mostrando a sua versatilidade como ator e consolidando a sua carreira pós-“Crepúsculo”.
  • O filme aborda questões complexas como identidade, valor próprio, desumanização no capitalismo e a fragilidade da vida humana, tudo isso através de uma premissa absurda e criativa.
  • A produção de Fiona Crombie cria espaços claustrofóbicos e detalhados que comunicam visualmente a decomposição da sociedade, com uma estética que nos lembra de “Alien³” mas com mais coração.
  • A relação entre Mickey e Nasha, interpretada por Naomi Ackie, adiciona uma camada emocional ao filme, levantando questões interessantes sobre amor e exclusividade.
  • O filme consegue encontrar humor em situações absurdas sem ridicularizar os sentimentos das personagens.
  • Apesar de algumas personagens secundárias parecerem subdesenvolvidas, o elenco secundário, incluindo Mark Ruffalo e Toni Collette, entrega performances sólidas.

Cons

  • O desenvolvimento do Mickey 18 parece por vezes acelerado, o que pode diminuir o impacto emocional de sua jornada.
  • Algumas personagens, como Ylfa (Toni Collette), não recebem o desenvolvimento necessário.
  • Após o sucesso de “Parasite”, as expectativas para o próximo filme de Bong Joon Ho eram extremamente altas, o que pode levar a comparações desfavoráveis, mesmo que “Mickey 17” seja um bom filme por mérito próprio.
  • A crítica social pode ser demasiado exagerada para alguns, podendo ser visto como moralista.
  • Em alguns momentos, o filme pode parecer lento, especialmente em cenas que se focam mais na construção do mundo do que no avanço da narrativa.
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