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O Fotógrafo de Minamata, em análise

Johnny Depp regressa ao grande ecrã para dar vida W. Eugene Smith em “O Fotógrafo de Minamata”, numa obra realizada por Andrew Levitas.

UMA FOTOGRAFIA, VALE MIL PALAVRAS…!

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Depois de um período em que a distribuição internacional foi adiada, alegadamente por causa da barafunda mediática gerada pelo processo Johnny Depp versus Amber Heard, chega agora aos ecrãs nacionais e ao circuito comercial o filme MINAMATA (O FOTÓGRAFO DE MINAMATA), com data de 2020 e realização de Andrew Levitas. Seria injusto que o impacto de um assunto que pouco ou nada serve para analisar a longa-metragem em causa se sobrepusesse ao seu maior ou menor valor intrínseco, e por isso aqui confirmo que não voltarei a referi-lo porque pouco ou nada me interessa as contradições do casal no que diz respeito ao exercício da crítica de cinema. Deste modo, digo-vos antes que, não sendo uma obra-prima, este filme de produção independente vale a pena ser visto pelo que denuncia e pelo modo sincero e determinado como se coloca ao lado das vítimas da poluição industrial gerada pela fábrica Chisso, implantada numa região costeira do Sul do Japão, na Prefeitura de Kumamoto e próxima da aldeia piscatória de Minamata, onde desde os anos cinquenta se começaram a detectar vestígios de um crime contra a humanidade que resultou da ingestão involuntária de mercúrio pelas populações locais, sobretudo nos produtos oriundos da pesca, facto que provocou uma série de mortes, calculadas em catorze mil, e um sem número de malformações genéticas que vieram a ser identificadas de uma forma geral como resultado da apelidada “Doença de Minamata”.

O FOTÓGRAFO DE MINAMATA
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Por outro lado, mais uma vez não querendo banalizar a classificação final desta obra com valorizações excessivas que não correspondam aos reais valores de produção apresentados, gostaria de salientar que, apesar de algumas fragilidades na caracterização dos ambientes e da relação dos protagonistas com a comunidade de pescadores e operários de Minamata, o filme aguenta com vigor os seus pressupostos militantes, não confundindo visões panfletárias com verdadeiras acções de militância (de que veremos exemplos concretos filmados na época dos acontecimentos relatados). No fundo, existe na sua estrutura básica mais do que um filme e narrativa linear. Existem vários filmes possíveis de analisar, a saber, a história de uma fotografia que constitui uma das imagens mais emblemáticas das que foram registadas no Século XX, e a história do fotógrafo que com o sacrifício da sua integridade física a fixou para sempre em negativo. História de uma luta pela denúncia, julgamento e condenação do capitalismo japonês nos anos setenta, particularmente cínico como se pode depreender das palavras proferidas pelo director da fábrica responsável pela poluição, que encara os milhares de mortos e as lesões neurológicas para a vida como uma percentagem aceitável do mal que, não obstante atingir de forma brutal os animais na Natureza, assim como os homens, as mulheres e as crianças, algumas ainda no ventre materno, justificaria os bens materiais obtidos a partir das matérias produzidas por essas fábricas poluentes. Trata-se aqui de uma visão que não está muito longe da lógica nazi que descartava – leia-se, executava – os prisioneiros dos campos de concentração quando estes deixavam de ser produtivos. Não será bem a mesma coisa, dirão alguns, mas se os monstros pensarem como o superior hierárquico da fábrica Chisso, e ninguém lhes fizer frente, um dia podemos acordar nesse mundo voltado do avesso, onde a vida humana não conta senão como um dado estatístico.

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O FOTÓGRAFO DE MINAMATA
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Mas vamos então por partes. Primeiro, a história do fotógrafo William Eugene Smith (1918-1978) e do seu confronto com os poderosos que até ali ditavam as regras do jogo e empurravam inocentes para os braços de uma vida de provações, fruto das mais canalhas práticas da indústria química. Depois de um primeiro, e sobretudo para quem a conhece, um inicial vislumbre “live action” que evoca a memória da celebrada fotografia intitulada TOMOKO E A MÃE NO BANHO, passamos para Nova Iorque onde encontramos no papel do referido fotojornalista o actor Johnny Depp. Está vestido como um aventureiro, boina na cabeça, barba abundante que não lhe fica nada mal, óculos que denunciam um pouco a sua idade, enfim, a caracterização necessária e suficiente para sabermos que estamos na presença de alguém irrequieto, capaz de arriscar a vida como repórter de guerra, nomeadamente na Segunda Guerra Mundial, com um olhar atento sobre os conflitos mais agudos, mas que nunca abandonou um ponto de vista artístico sobre a realidade circundante, em suma, um dos pioneiros do “photo essay”, o ensaio fotográfico de que a revista LIFE foi uma das publicações mais nobres e activas. Homem experimentado e de bom gosto, que apreciava música jazz, mas igualmente bebidas alcoólicas em doses generosas, estava no final dos anos sessenta, início dos setenta, numa situação complicada face aos desafios existenciais, profissionais e familiares. Precisava de dinheiro e de um desafio ao nível dos que assumira no passado. E, como por acaso, assim vai acontecer. Um belo dia recebe no seu apartamento (meio casa, meio laboratório e estúdio fotográfico), a visita de um japonês, seu admirador confesso, e de uma americana de origem japonesa, Aileen Mioko (interpretada por Minami Hinase). Fazem-lhe uma proposta muito concreta, ajudá-los na causa que os levou ali, a luta contra a poluição por mercúrio das águas costeiras de Minamata e as consequências dramáticas na vida e no equilíbrio ecológico da região. Depois de espernear com o editor-chefe da LIFE, e depois de ultrapassar uma condição do patrocinador da viagem, a Fujifilm que, imagine-se, desejava ver as suas cores valorizadas por alguém que sempre fotografara a preto e branco, Eugene Smith parte para o Japão. Em Minamata, o filme passa a concentrar a atenção na relação Eugene/Aileen, sem esquecer a interacção com os ambientes, atmosferas e sobretudo com o quadro de horrores visíveis no corpo e na alma de novos e velhos, as vítimas do mercúrio que ambos vão encontrar ao longo da sua estadia. Provavelmente, a realização nesta fase da narrativa podia ser mais incisiva se nos mostrasse com maior pormenor as contradições inerentes a uma presença estrangeira, não inserida na realidade social e cultural japonesa e que para muitos colocava em perigo as perspectivas laborais da maioria da comunidade, que não via alternativa para uma eventual deslocalização da fábrica a não ser o desemprego. Neste ponto, não será difícil recordar um filme que, quando da sua estreia, passou injustamente ao lado de algumas boas e más consciências que, na melhor das hipóteses, andavam algo distraídas, o notável DARK WATERS (VERDADE ENVENENADA), 2019, realizado por Todd Haynes, onde uma larga parcela da população de uma cidade americana se revoltava contra um advogado que denunciara os efeitos nocivos dos químicos da fábrica que lhes poluía as águas, incluindo as de consumo público, mas que era o local onde a maioria da população ganhava o pão nosso de cada dia. Desta vez, no Japão, mesmo contra as adversidades e apoiado por militantes que decidem não vergar perante a arrogância do patronato, Eugene Smith consegue por fim levar a água ao seu moinho e ao moinho dos que vieram a ganhar o reconhecimento nacional e internacional numa investida contra as arbitrariedades corporativas, pela dignidade e bem-estar dos povos, neste caso unidos contra a poluição industrial.

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O FOTÓGRAFO DE MINAMATA
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Paralelamente a esta história baseada na ficcionalização de factos verídicos, vai-se construindo o caminho que nos leva aos derradeiros e luminosos momentos de O FOTÓGRAFO DE MINAMATA. Digamos, o lado arte e ensaio que o filme procura e contempla para aceitarmos a visão do que a frio e sem um histórico esclarecedor nos podia ser insuportável observar. De certo modo, uma forma de melhor salientar a mensagem dura, nua e crua sobre uma realidade que simplesmente não deveria existir. Essa realidade, leia-se, a verdade que nela subsiste, está patente na serenidade quase irreal de uma mãe com a filha nos braços, dentro de uma banheira ao estilo nipónico. Depois de muitos dias e noites de luta, o verdadeiro William Eugene Smith captou para a eternidade um rosto, um corpo deformado, uma luz que vem de uma janela misturada com duas lâmpadas de flash usadas para acentuar o jogo de sombras. Uma preciosa e poderosa imagem de amor de uma improvável Pietá de carne e osso. Fotografia de uma jovem com os membros deformados chamada Tomoko Uemura, deitada nos braços da mãe que de forma corajosa aceitou expor-se assim com a sua filha para sintetizar, numa imagem que vale por mil palavras, o grito contra a injustiça que percorre e contamina ainda hoje os caminhos de uma humanidade cada vez mais frágil. Há quem pense que existe um Planeta B, mas não, estão muito enganados. Por fim (e aqui fica mais um aviso aos stressados que mal vêem o genérico saem da sala como se o mundo fosse acabar dali a minutos), o filme contextualiza o sucedido em Minamata, não como um caso isolado, mas como uma entre muitas e graves crises humanitárias e ecológicas, com resultados similares ou ainda mais nefastos, que ocorreram e ocorrem por esse mundo fora. Para a contabilidade geral enunciada no genérico, relato necessariamente incompleto, os produtores apontam alguns exemplos: Envenenamento por mercúrio, Indonésia. Desastre de Chernobyl, Ucrânia. Os efeitos dramáticos a nível mundial de um medicamento designado Talidomida. Derrame de petróleo no navio Exxon Valdez, Estados Unidos. Desastre nuclear de Fukushima Daiichi, Japão. Ruptura da barragem de Brumadinho, Brasil. Poluição causada pela extracção de ouro, Burkina Faso. Envenenamento por chumbo, República Dominicana. Desastre de Bhopal, Índia. Derrame de petróleo na plataforma Deepwater Horizon, Estados Unidos. Contaminação por mercúrio da Grassy Narrows First Nation, Canadá. Acidente com dioxina, Seveso, Itália. Resíduos electrónicos em Guiyu, China. Resíduos radioactivos em West Lake, crise aquífera de Flint (a que se refere o filme DARK WATERS), poluição do Love Canal, contaminação por chumbo em Newark, qualquer destes exemplos referentes a acontecimentos ocorridos nos Estados Unidos. Envenenamento por resíduos químicos, Vietname. Envenenamento por arsénico, Bangladesh. E muitos mais se podiam juntar a estes. Todos acompanhados de imagens que nos fazem pensar seriamente no que aconteceu e pode continuar a acontecer. De facto, não há Planeta B.

O Fotógrafo de Minamata
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O Fotógrafo de Minamata, em análise
O Fotógrafo de Minamata

Movie title: Minamata

Director(s): Andrew Levitas

Actor(s): Johnny Depp, Akiko Iwase, Kogarashi Wakasugi

Genre: Drama, 2020, 115min

  • João Garção Borges - 65
65

Conclusão:

PRÓS: Neste filme que marca o regresso de Johnny Depp ao cinema (que pode redimi-lo de algumas más opções dos últimos anos), a sua prestação enquanto actor e produtor de MINAMATA deve ser vista como o desejo de abrir uma porta para novos e ainda mais sólidos projectos, filmes com causas ou não, que nos façam de novo acreditar que o protagonista de EDWARD SCISSORHANDS (EDUARDO MÃOS DE TESOURA), 1990, não beneficiou apenas da Direcção de Actores de um genial Tim Burton, na altura com o sangue na guelra, nem sequer as carnavalescas incursões pelos domínios dos PIRATAS DAS CARAÍBAS (2003-2017) foram o começo de uma decadência que se deveu a uma “colagem” pouco saudável ao lado mais superficial dessas obras, sobretudo, ao longo do moer chouriço dessa saga marítimo-fantasista. Neste filme encarna, com a necessária contenção e sem exageros de composição, a figura de um célebre fotojornalista americano, William Eugene Smith, que em Junho de 1972 viu publicada na revista LIFE uma das imagens maiores e mais poderosas do Século XX, TOMOKO E A MÃE NO BANHO. Uma imagem quase singela mas de uma violência redentora que denuncia o mal que polui a alma da humanidade. Fotografia que deu a conhecer ao mundo as consequências da poluição industrial provocada por uma fábrica de produtos químicos, situada no Sul do Japão.

CONTRA: Já o disse na crítica, e volto aqui a referir, porque me parece importante salientar que esta ficção baseada em factos reais poderia ser mais eficaz do que realmente já é se a personagem do fotógrafo fosse confrontada não só com os patrões do complexo industrial mas igualmente com uma parte da população local, que nem sempre acolheu a sua actividade com entusiasmo, sobretudo por causa do receio de verem a fábrica sair dali, deixando Minamata e outras aldeias vizinhas sem perspectivas laborais, ou seja, um futuro difícil. Esse podia ser um conflito dramático de peso que, introduzido na narrativa, podia dar-lhe mais força e razão, até para expressar de forma mais ampla as dificuldades da luta que os militantes realmente empreenderam e levaram até ao fim com sucesso, mesmo que relativo, como se explica nas legendas antes do genérico final.

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  1. pedro calheiros 25 de Setembro de 2022

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