Óscares 2021 | Viola Davis em Ma Rainey: A Mãe dos Blues
VIOLA DAVIS – UMA PÉROLA EM HOLLYWOOD



DOS PALCOS PARA O UNIVERSO FILMADO DO CINEMA

Uma longa metragem Netflix realizada por George C. Wolfe (“Um Ponto de Viragem”), este “Ma Rainey: A Mãe dos Blues” baseia-se na peça de August Wilson do mesmo nome. O dramaturgo, vencedor de dois Prémios Pulitzer e um Tony, viu esta obra estreada pela primeira vez na Broadway em 1984 na alçada da realização do seu colaborador frequente Loyd Richards. Wilson é também o autor de “Fences”, ou “Vedações”, a obra que Viola Davis já representou ao vivo com notório sucesso e cuja adaptação ao cinema, que co-protagonizou, lhe valeu um Óscar em 2017.
August Wilson foi já apelidado como o “o poeta do teatro da América Negra”. A sua importância enquanto elemento identitário da black culture, e como mensageiro capaz de expressar a essência humana das suas personagens junto de qualquer pessoa que com elas contacte, é uma das celebrações presentes nas entrelinhas deste filme. Tanto o realizador, os produtores (incluindo Denzel Washington), o argumentista e os atores e atrizes trataram o material de referência com todo o respeito e admiração, o que aliás transparece no especial making-of disponível na Netflix “Ma Rainey: A Mãe dos Blues – O Legado Chega ao Ecrã”. Este pequeno formato documental de meia hora presta ainda uma breve mas sentida homenagem a Chadwick Boseman, nesta que é a sua última aparição no cinema. Em 2021, recebe uma merecida nomeação póstuma na categoria de Melhor Ator pela sua interpretação como o ambicioso e fervilhante jovem músico Levee. Boseman faleceu em agosto de 2020, aos 42 anos, vítima de cancro do cólon.

Ainda quanto à peça do pioneiro Wilson, Ma Rainey é tida como uma crónica da experiência afro-americana na década de 1920 nos Estados Unidos da América.
Descrita como um retrato cativante da raiva negra e da auto-censura originada pelo racismo sistemático, esta obra teatral é a base para um filme que sabe ser muito mais do que uma mera peça filmada. Sentimos essa ira, essa revolta violenta, à medida que o filme de George C. Wolfe consegue cativar o espectador. Contudo, tudo começa e temita com um argumento fortíssimo (e com uma peça de teatro que desesperadamente queremos ver depois de sairmos da “sala de cinema” – a qual infelizmente foi, sem qualquer outra hipótese, o nosso sofá).
A AMBIÊNCIA DE MA RAINEY’S BLACK BOTTOM: UMA INEBRIANTE EXPERIÊNCIA SENSORIAL

Tensões febris num dia escaldante, uma incessante batida a permear toda a fita, “Ma Rainey: A Mãe dos Blues” é mestre na arte de destabilizar o espectador do início ao fim. O filme faz renascer uma vez mais o legado de Ma Rainey, artista blues nascida em 1886 e que na década de 1920 rumou a Chicago para gravar a sua música junto de uma discográfica liderada por executivos brancos. Tal como a Ma do filme, a Ma da vida real era irreverente, tinha uma magnífica voz , era desprovida de pudores e orgulhosamente queer como comprovado pelo seu reportório musical. No Sul afirmou-se uma referência de peso e, durante a Grande Migração Negra Americana, a qual levou as populações negras do Sul a procurar melhores oportunidades no Norte, também Ma migrou e com ela levou a sua música, numa altura em que os chamados “Race Records” (discos raciais) eram um produto muito lucrativo para as discográficas do Norte. Comercializados maioritariamente entre as décadas de 1920 e de 1940, estes discos compreendiam acima de tudo géneros de música afro-americanos, como o Blues, o Jazz, o Gospel (…)
Viola Davis, em “Ma Rainey: A Mãe dos Blues”, representa uma cantora que foi determinante para a construção de um género musical nos Estados Unidos. Ainda hoje é citada como uma influência por parte de diversos artistas negros. Contudo, a sua importância histórica foi sendo esquecida e é na Arte, convenientemente, que vem encontrar nova vida.
A ação do filme passa-se numa tarde quente de verão, sufocante ao ponto de colocar os nervos à flor da pele. Nesta tarde imaginada na longa-metragem nomeada a 5 Óscares, focada no ato de uma gravação musical ao longo de um só dia, assistimos a uma Ma que controla a sala, cada um dos seus elementos, com pedidos que, à primeira vista, podem parecer absurdos, pedantes, de “diva”. Contudo, Ma está perfeitamente ciente da instrumentalização da sua voz, da sua música, da sua persona, perante aqueles que a irão comercializar. Sabe como melhor aproveitar o seu estatuto, não usa meias palavras, mas a tristeza de um povo que sofreu atrocidades está sempre presente nos momentos em que baixa a guarda. Viola Davis capta, numa performance repleta de sofisticação, tudo o que Ma exala.
A METAMORFOSE DE VIOLA DAVIS EM MA RAINEY: A MÃE DOS BLUES

Viola Davis. em “Ma Rainey: A Mãe dos Blues”, sabe diluir-se na personagem. Não há espaço para a vaidade da bela atriz, aqui capaz de abraçar a sua personagem e transformar-se nela (de corpo e alma, com a mesma comoção que os músicos Blues se entregam a uma música que parece irromper das profundezas da alma). A transformação de Viola é e foi, não só física como inteiramente espiritual. Não obstante, houve um processo de metamorfização visual de grande significância incontornável para dar vida a esta presença magnetizante.
Em entrevista à revista norte-americana “Entertainment Weekly” Viola Davis admitiu ter duvidado quando chegou a hora de aceitar o papel. Não se conseguia ver na pele desta figura exuberante de grande estatura. A experiente figurinista Ann Roth, nomeada por este filme aos Óscares (e que bem merecido) e previamente por outros quatro, tratou de criar uma transformação visual inacreditável e rigorosa. De perucas de cabelo de cavalo a coroas de ouro, passando por muito enchimento, a representação física de Ma Rainey é aproximada se a compararmos com as poucas fotos da “Mãe dos Blues” que sobreviveram ao teste do tempo. Mais relevante ainda é constatar a ausência de uma representação caricatural. É fácil desvirtuar a imagem cinematográfica de um ícone e, apesar de a maioria das pessoas não se lembrarem ou terem alguma vez contactado com o aspecto físico desta figura histórica semi-obscura, aqui nunca se corre o risco de não respeitar a integridade de quem é homenageado. Aliás, o respeito dignifica a obra e o seu sujeito.
Claro que a verosomilhança física é apenas uma pequena peça do puzzle. A intérprete sentiu-se, de acordo com uma entrevista ao New York Times, empoderada ao assumir fisicamente esta nova pele. O seu “fat suit” (enchimento) baseava-se nas medidas corporais de Aretha Franklin, uma artista que a marcou ao longo da vida. Liberta de inibições associadas a padrões de beleza pré-formatados, Viola sentiu-se livre para explorar e para mergulhar cada vez mais fundo na personagem. A sua relação com Ma é simbiótica e conseguimos assimilar tudo o que fica por dizer: do sofrimento coletivo de um povo aguilhoado, através da força do seu olhar e da rispidez aparente do seu discurso, até à paixão musical que transpira de todos os poros da Ma de Viola e que nos deixa enamoradamente fascinados. A sua sagacidade inunda-nos, a sua expansão efusiva delicia. Viola Davis prova, uma vez mais, a sua inegável capacidade de mergulhar não só corporalidade como na psique de uma personagem. Bravo!