O Poder do Cão, em análise
“Estrela Cintilante” (2009) foi o último filme realizado por Jane Campion, realizadora que já ia num hiato de 12 anos. A cineasta é uma das apenas sete mulheres a serem nomeadas para Melhor Realizador(a) nos Óscares, bem como a primeira realizadora a ganhar a Palme d’Or – estas duas conquistas foram para “O Piano” de 1993.
Não sei se é devido à sua longa paragem, mas “O Poder do Cão” é minha primeira experiência com a filmografia de Jane Campion. Portanto, as minhas expetativas foram muito baseadas no feedback de festivais, no elenco e no inevitável burburinho que praticamente todos os filmes lançados nesta altura recebem. Como fã de westerns, estava curioso para ver se esta adaptação da obra de Thomas Savage traria algo novo para o género.
Visualmente, este é um dos filmes mais deslumbrantes do ano. Costumo desconfiar das pessoas quando afirmam que uma obra cinematográfica é “bonita”, visto que este adjetivo é “atirado” de forma demasiado casual hoje em dia. A qualidade de imagem e de som melhorou drasticamente na última década, tal como a evolução exponencial dos efeitos visuais, logo já não é tão comum testemunhar uma longa-metragem verdadeiramente horrenda em termos visuais. No entanto, “O Poder do Cão”, sem dúvida, merece este elogio em particular. Ari Wegner (“Zola”) oferece imagens absolutamente lindas, semelhantes a pinturas belíssimas, de todos os ângulos. Desde os close-ups íntimos em cenas incrivelmente tensas aos planos amplos inspiradores, o trabalho de câmara persistente é elevado pela montagem minimalista mas essencial, de Peter Sciberras (“The King”).
Campion tira o melhor partido da sua equipa técnica, usando a cinematografia merecedora de prémios para atrair o público para mais perto das personagens complexas. Os interiores escuros e frios contrastam com as paisagens largas e de fazerem cair o queixo de uma forma notável. A banda sonora imersiva de Jonny Greenwood (“Spencer”) envolve os espetadores com uma atmosfera pensativa que, por vezes, pode parecer um pouco longa e entediante, arrastando a peça geral. No entanto, é o argumento de quatro atos e o seu desenvolvimento de personagem requintado que torna “O Poder do Cão” num dos mais concorrentes mais fortes do streaming esta temporada competitiva.
Como alguém que não possuía qualquer conhecimento sobre a obra original, trailers ou mesmo sobre o que o filme realmente abordava, senti a primeira metade sem rumo e parcialmente confusa devido à rapidez com que alguns pontos de enredo foram sendo resolvidos. O tempo flui de uma maneira estranhamente rápida, mas o ritmo do filme é propositadamente e continuamente lento. Dividido em quatro atos explicitamente definidos por cartões, só quando o filho de Rose, Peter – interpretados por Kirsten Dunst (“Woodshock”) e Kodi Smit-McPhee (“X-Men: Fénix Negra”), respetivamente – chega ao rancho para as férias de verão é que a história começa a avançar através de desenvolvimentos surpreendentes com um objetivo claro e chocante. Em retrospetiva, a primeira metade é, de facto, muito importante para estabelecer as inúmeras diferenças entre os irmãos, Phil (Benedict Cumberbatch) e George (Jesse Plemons).
Enquanto George é um homem gentil, decente e apresentável que trata as mulheres com o máximo respeito, Phil é o completo oposto: uma presença masculina cruel, rude e desprezível que se recusa a tomar banho ou a mostrar qualquer tipo de fraqueza. “O Poder do Cão” é uma narrativa tematicamente rica sobre masculinidade (tóxica), ciúmes, ressentimento, bullying e também aborda um tópico sensível e inesperado que prefiro que os leitores vivenciem por si próprios sem conhecimento prévio – está um tanto presente nos trailers, mas considero uma pista demasiado sugestiva para um dos maiores spoilers do filme. Independentemente disso, é o tema da masculinidade que rouba os holofotes. Desde o seu verdadeiro significado às perceções de outras pessoas, a definição de “ser homem” é examinada através de uma história complexa e instigante.
Apesar da narrativa decorrer em Montana de 1925, a ideia de que para ser um homem é preciso ser forte, independente, corajoso, confiante e mostrar níveis significativos de masculinidade ainda se encontra presente nos dias de hoje, embora admitidamente mais como um estereótipo do que como um princípio básico de vida. Phil e Peter são os melhores exemplos do famoso ditado “não se deve julgar um livro pela capa”. Estes dois personagens partilham um arco emocionalmente convincente que aprofunda o que os mesmos entendem como fraquezas, apesar de levar a uma conclusão algo anti-climática, considerando o drama western não convencional. No final, as prestações transformam o que seria um “bom filme” numa obra para os estúdios publicitarem nesta época de cerimónias.
Benedict Cumberbatch (“Vingadores: Endgame”) pode mesmo ter apresentado a sua melhor performance da carreira. Todo o elenco oferece interpretações repletas de subtilezas, mas Cumberbatch brilha num papel complexo onde o personagem é dominado por sentimentos pesados como amor, luto, ciúme, raiva e incerteza, mas não pode, na verdade, mostrar nada disso. Então, Phil torna-se no epítome de um homem tóxico, que comete bullying psicológico com Rose, constantemente chama o seu irmão uma variação de “gordo” e goza com os maneirismos de Peter, tudo para esconder o que ele reconhece como sentimentos pouco másculos. Sem dúvida, o destaque de um filme que pode dar ao ator britânico a sua segunda nomeação para um Óscar.
Kodi Smit-McPhee é excelente como Peter, um jovem que se entretém com atividades que a maioria dos homens não se interessa na sua idade, como construir flores de papel ou brincar com um hula hoop. Contudo, torna-se gradualmente percetível que o personagem segue o mesmo arco de Phil, apenas na direção oposta. Quando os seus arcos se cruzam, o filme oferece alguns dos momentos mais cativantes e tensos de todo o tempo de execução. Jesse Plemons (“Faminto”) e Dunst partilham uma boa química, embora a atriz claramente se coloque uns níveis acima ao entregar um desempenho fantástico como uma viúva e mãe com problemas crescentes de alcoolismo e sofrendo de violência doméstica. Thomasin McKenzie (“A Noite Passada em Soho”) surpreendentemente aparece, mas já é algo sobrequalificada para um papel tão irrelevante.
“O Poder do Cão” também participou no festival LEFFEST’21, onde poderão ler a crítica de Cláudio Alves.
O PODER DO CÃO | JÁ CHEGOU À NETFLIX PORTUGAL
O Poder do Cão, em análise
Movie title: O Poder do Cão
Movie description: O carismático rancheiro Phil Burbank (Benedict Cumberbatch) semeia medo e respeito em todos os que o rodeiam. Quando o seu irmão volta a casa com a nova esposa e o filho dela, Phil atormenta-os até ver que pode não escapar à mira do amor.
Date published: 1 de December de 2021
Country: EUA
Duration: 127'
Director(s): Jane Campion
Actor(s): Benedict Cumberbatch, Kirsten Dunst, Jesse Plemons, Kodi Smit-McPhee
Genre: Western, Drama, Romance
-
Manuel São Bento - 75
-
Virgílio Jesus - 100
-
Rui Ribeiro - 80
-
Cláudio Alves - 95
CONCLUSÃO
“O Poder do Cão” é um estudo profundo e instigante sobre masculinidade (tóxica), rodeado por prestações excecionais e uma cinematografia genuinamente deslumbrante. Jane Campion quebra o seu hiato de realização de mais de uma década, regressando com uma visão não convencional do género western, repleta com temas ricos e pesados, todos desenvolvidos através de arcos de personagem extraordinários e emocionalmente poderosos. Apesar do ritmo ocasionalmente monótono e da conclusão algo desapontante, a narrativa em camadas contém vários tópicos interessantes que Benedict Cumberbatch e companhia abordam em interações incrivelmente tensas através de uma câmara persistente, montagem minimalista e música contemplativa. A primeira metade não possuir um rumo definitivo pode ser apenas um problema de primeira visualização, mas nada que prejudique severamente a peça geral. Um candidato a vários prémios que definitivamente recomendo assistir, mais do que uma vez.
Pros
- Narrativa tematicamente muito rica, com foco maior na masculinidade (tóxica).
- Prestações do elenco, especialmente a de Benedict Cumberbatch.
- Cinematografia belíssima de arregalar os olhos.
- Banda sonora imersiva.
- Arcos de Phil e Peter bem aprofundados, com interações tensas e momentos extremamente cativantes.
Cons
- Primeira metade peca pela falta de um rumo ou objetivo claro.
- Ritmo propositadamente lento torna-se ocasionalmente entediante.
- Falta ao terceiro ato um fim mais catártico.