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Queer Lisboa ’23 | Comunidade LGBTQIA+ irlandesa representada no GAZE Shorts Program

No último dia do Queer Lisboa 2023, 30 de setembro, o Festival acolheu um outro evento dedicado a cinema LGBTQIA+ — o GAZE International LGBT Film Festival Dublin. Exibiram-se, no âmbito da programação “Gaze Shorts Program”, seis curtas com curadoria do importante festival irlandês. Seis  curtas inteiramente distintas entre si, representativas de uma cena queer vibrante.   

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Sinergias, contactos além-fronteiras, partilha cultural e descoberta de novos talentos. São estas qualidade primordiais do cenário do Festival de Cinema. O programa de curtas GAZE Shorts Program, apresentado pelo diretor desse mesmo festival e por um representante da embaixada irlandesa, é um exemplo paradigmático deste contexto, inserido no âmbito do Queer Lisboa em 2023. A comunidade LGBTQIA+ é aqui representada através de um conjunto de seis curtas que, tal como indicado na apresentação, foram escolhidas com um único critério unificador em mente: a diversidade de temáticas e estilos. E não é essa uma razão fulcral?

HOMEBIRD (CALEB J.ROBERTS, 11′)

Tendo partido meses antes, sem pré-aviso, Conor voltou para a sua cidade natal após ter abandonado a universidade do outro lado do charco, e confronta-se com o seu pai num tenso encontro na frente ribeirinha da cidade“.

“Homebird”, de Caleb J. Roberts, é uma obra sumária que nos apresenta uma relação de tensão e conflito entre pai e filho, assente em parte nos estereótipos de género e ideias sobre sexualidade alimentadas pela figura paternal e em parte motivada pelas falhas de comunicação . Uma relação que, para lá do carácter conflituoso, se mune de uma afetividade forte. O maior trunfo da curta, a qual roça o tom melodramático, é conseguir criar evolução na comunicação entre as duas personagens. Isto, claro está, em apenas 11 minutos.

Por outro lado, sentimos que a história de “Homebird”, com a sua estética realista e fotografia cuidada e banhada em ‘golden hour’, merecia um maior desenvolvimento de enredo. É curta, envolvente, repleta de ternura e capaz de se fazer avançar com desembaraço. Todavia, não é um pedaço de arte auto suficiente, mas um que nos deixa com curiosidade em relação ao que aí vem.

Não obstante, e a arrancar este “Gaze Shorts Program” no Queer Lisboa ’23, “Homebird” apresenta-se como uma proposta repleta de sentido de lugar e capaz de explorar, com uma direção clara, o contexto de “casa” e o sentimento de pertença que, devendo ser universal, é tão frequentemente usurpado ou deturpado.

Classificação: 65/100




FIRST DATE (CLARA PLANELLES, 12′) 

First Date no Queer Lisboa
©Quer Lisboa

Tina, uma agricultora recentemente enviuvada, não quer que a filha volte para a cidade e a deixe sozinha. Quando Seamus chega à quinta com a conversa de um encontro romântico, ela decide intervir“.

“First Date” é cinema no feminino, é manifestação de “raiva feminina” e de raiva feminina lésbica. É delicioso e perverso, repleto de humor negro do início ao fim, pautado por um clima de incerteza palpável, que nos dá a entender que a qualquer momento o rumo da ação pode desabar de formas irreversíveis.

No início da sessão, falava-se precisamente de uma veia de humor negro muito relevante e persistente naquele que é o cinema irlandês. A obra de Clara Planelles é um excelente exemplo. Onde o filme previamente exibido na sessão não se havia destacado para lá da superficialidade das suas temáticas, “First Date” apresenta personagens caricaturais bem construídas (na medida do quão desenvolvida uma personagem pode ser em 12 minutos), um sentido de perda e luto contrabalançados com boa disposição e uma sucessão de eventos verdadeiramente mirabolantes.

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Olhar para a própria filmografia e projeto da realizadora do Uruguai, Clara Planelles, é também pertinente neste sentido. Clara mudou-se para a Irlanda, em 2020, como nos indica a sua mini-biografia presente na página oficial do QueerLisboa, Aí, começou a desenvolver um projeto fotográfico intitulado “Women from the inside” (que pode assumir duplo significado como mulheres vistas por dentro ou mulheres do interior).

“First Date” é também hábil nesse campo, ao representar, de uma forma não linear ou direta, a experiência de ser uma mulher (e uma mulher queer) que vive sozinha no interior profundo. Que lendas e contos podem vir associados a esta figura? Que comportamentos limites pode esta personagem levar a cabo para colmatar a solidão?

Com uma performance gloriosa de Aisling O’Sullivan no papel central, esta história acerca de solidão e luto tem mesmo muito que se lhe diga.

Classificação: 80/100




PUNCH LINE (BECKY CHEATLE, 10′) 

Punch Line no Gaze Shorts Program
©Queer Lisboa 23

Na véspera de um ataque transfóbico, uma comediante transgénero processa os seus sentimentos da única maneira que sabe: por meio de comédia stand-up“.

Com Becky Cheatle e o seu “Punch Line”, este GAZE Shorts Program, no Queer Lisboa 2023, presta-se, uma vez mais, como nos foi aliás dito no início da sessão, a representar histórias no feminino, e também histórias por players por vezes negligenciados quando chega a hora de receber financiamento.

Embora seja bastante parco do ponto de vista visual, com uma cena de abertura impactante e uma fotografia muito simples de aí adiante, “Punch Line” tem, como o nome deixa antever, um ponto final impactante. Esta é a história de uma comediante de stand up trans, que reflete em palco acerca de um ataque transfóbico que sofreu recentemente.

E se sentimos um certo amadorismo no âmbito das técnicas de narração escolhidas para esta história, a maturidade das temáticas é mais considerável. Becky Cheatle é uma comediante de stand-up proeminente na Irlanda, e serve aqui como co-escritora e realizadora de “Punch Line”. Uma figura importante no retrato das vidas de pessoas trans na Irlanda, é palpável a relevância da sua denúncia e também a mensagem de não submissão e revolta que entrega com esta pequena curta pautada de tons de humor eficazes.

Uma estreia no formato das curtas-metragens para Cheatle, “Punch Line” é mais forte na comédia que no artefacto de cinema. Feitas as contas, as suas sensibilidades falam mais alto.

Classificação: 70/100




SKIN TO SKIN TALKS (PRADEEP MAHADESHWAR, 12′)

Skin to Skin Talks no Queer GAZE shorts program
©Queer Lisboa

Na nossa constante procura de escolher pessoas com base na sua aparência, tendemos a alienar por completo as pessoas reais que temos à nossa volta. Neste filme, Pradeep Mahadeshwar reflete sobre a sua própria experiência enquanto homem de cor, gay e migrante, e sobre as políticas raciais de exclusão“.

“Skin to Skin Talks”, de Pradeep Mahadeshwar, é a obra mais cerebral deste GAZE Shorts Program no Queer Lisboa 2023. É a obra mais completa, a obra mais pessoal e a obra que desafia a nossa tendência ao esquecimento. Mais do que um documentário, esta é uma peça performance auto-biográfica que nos apresenta um sujeito da forma mais vulnerável e honesta possível. Um tratado agridoce através das políticas raciais de exclusão dentro da própria comunidade queer.

Pradeep Mahadeshwar, originário da Índia e agora cidadão da Irlanda, apresenta-nos, sem reservas, a sua história. A história de um migrante queer que contava encontrar na Europa, e especificamente na Irlanda, uma terra de libertação e novos desígnios. E onde, em vez disso, se deparou com preconceitos raciais e com um domínio significativo das “preferências sexuais” alinhadas com a “raça” branca e latina (a violência sexual e a sua interseção com o racismo permeiam a curta, temáticas que nem sempre são colocadas em primeiro plano).

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Na comunidade gay da Irlanda, Pradeep encontrou estereótipos, mentes fechadas que vêm perfis raciais em vez de pessoas (onde o perfilamento sexual surge mascarado como uma “inofensiva” preferência), e assim, em “Skin to Skin Talks”, um ensaio que encena e narra, apresenta-nos um texto em off, algures entre a entrada de diário e o ensaio visual, no qual se revela perante quem vê, sem limites. O seu corpo, esse é filmado com sublime beleza e com ênfase no desejo. Mostra-nos, com notório sucesso, aquilo que as pessoas queer da Irlanda deviam ter sabido valorizar – a sua beleza, corpórea, e a sua imensa capacidade lírica e densidade de carácter.

Ao longo de 12 minutos apenas, Mahadeshwar é capaz de hipnotizar e transportar quem vê para um plano onde não há tempo em espaço. Apenas existe o nosso sujeito fílmico, a sua presença física cativante e a sua história. Um local sem pré-conceitos, um local belo e harmonioso. Um local onde a auto-estima precisa de ser alimentada, para que a dúvida não se instale, para que a rejeição do “self”, do “eu”, nunca te torne uma realidade. Para que nunca nos vejamos através de uma perspectiva de “alteridade”. Bravo!

Classificação: 90/100




DON’T GO WHERE I CAN’T FIND YOU (RIOGHNACH NÍ GHRIOGHAIR, 20′)

Don't Go Where I Can't Find You Queer Lisboa '23
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Uma compositora assombrada usa a música para se conectar com o fantasma da sua amante morta, mas a sua mente começa a mergulhar no caos“.

Três elementos saltam à vista no romance gótico de Rioghnach Ní Ghrioghair: a banda-sonora e composição estrondosa assente em instrumentos de cordas, a criação de terror e suspense através de uma mistura de som que nos mergulha, de cabeça, no clima de paranóia sentido pela nossa personagem central e a reconstrução histórica afeta ao drama gótico do século XIX, que cria uma caracterização de espaços e guarda-roupas que torna esta obra indecifrável em termos de precisão temporal da ação.Será que “Don’t Go Where I Can’t Find You” é um romance passado no momento atual, tendo em conta que, no seu centro, se encontra um romance lésbico ou antes um triângulo romântico lésbico. Ou será de facto uma narrativa de época? Não nos é possível saber, mas essa indeterminação projeta a curta para uma espécie de limbo que só reforça ainda mais o medo e culpa da nossa personagem central.

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Uma das curtas mais longas deste GAZE Shorts Program, “Don’t Go Where I Can’t Find You” não é contudo extensa o suficiente para nos dar a conhecer em detalhes as relações entre as personagens. Estas permanecem fantasmagóricas, espectros na noite. O filme brilha na parte técnica mas dedica pouco carinho ao seu argumento e desenvolvimento dos traços característicos das suas personagens. Do ponto de vista narrativo, nunca ultrapassa o superficial. Não obstante, sabe jogar com os seus trunfos e fazê-los valer.
Classificação: 75/100



WHAT COULD GO WRONG? (CAROLINE QUINN, 17′)

What Could Go Wrong Queer Lisboa 2023
©Queer Lisboa

Sarah arrasta cinco melhores amigues numa viagem de acampamento para passarem um divertido último fim de semana juntes antes de seguirem caminhos separados… pelo menos era esse o plano. Entre a falta de entusiasmo do grupo, frango fora do prazo e problemas com o carro, é seguro afirmar que a viagem é longe de perfeita“.

A segunda curta mais extensa desta sessão precisava, ainda assim, nitidamente de ser uma longa-metragem (ou pelo menos povoar o indeterminado lugar da média metragem) para conseguir definir de forma clara as suas intenções. Esta é a história de cinco amigues que decidem passar um fim de semana em conjunto antes da vida levar o o grupo para caminhos opostos.

Com humor negro e ironia do início ao fim, “What Could Go Wrong?” é uma comédia leve acerca de uma viagem incrivelmente mal planeada mas igualmente bem intencionada. Pelo meio, ou aliás, já mais para o fim, duas amigas próximas entregam-se finalmente aos seus sentimentos românticos, para deleite de todo o grupo. Todavia, a curta salta daí para um “1 ano depois” para nos entregar uma resolução digna de uma comédia romântica do Richard Curtis (mas sem o desenvolvimento necessário para lá chegarmos).

Não só todos os eventos de “What Could Go Wrong?” são apressados, como a sua resolução parece ter sido planeada sem grande ponderação e sem qualquer espaço para respirar ou digerir eventos. Apesar de ser uma valente trapalhada, esta curta nunca deixa de ser enternecedora. Mas é isso suficiente?

Esta é uma primeira curta, de uma jovem acabada de sair da Universidade (que também é uma das protagonistas do filme). A imaturidade faz-se sentir na execução, mas não descartamos um futuro interessante depois de algumas tentativas adicionais.

Classificação: 58/100

O Queer Lisboa 2023 decorreu na capital, na última semana de setembro. Já entre 10 e 14 de outubro segue-se o Queer Porto

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