TIFF 50 | O Agente Secreto, Magalhães e o cinema de expressão lusófona em Toronto

Este ano, quando o festival celebra meio século de existência, a lusofonia teve lugar de destaque na programação do TIFF. Entre Portugal e Brasil, com um salto nas Filipinas, várias obras passaram pelos cinemas da metrópole canadense, atraindo a diáspora imigrante às salas e despertando um sentimento de celebração cultural. Para efeitos deste artigo, focar-me-ei nas longas. Incluindo “O Agente Secreto” de Kleber Mendonça Filho, que até teve direito à exibição no Dia da Independência do Brasil. A sessão causou furor entre as massas que se reuniram para receber o realizador e Wagner Moura, estrela incandescente capaz de cativar no tapete vermelho como poucos dos seus colegas de Hollywood.

O alarido ainda se intensificou graças a uma polémica que ocorria, simultaneamente, entre a Academia Brasileira. Acontece que, não obstante a aclamação crítica do “Agente Secreto”, formou-se todo um lobby para forçar a seleção de “Manas” a representar o Brasil na corrida para o Óscar de Melhor Filme Internacional. Entre visionamentos e em filas à porta das salas, muito se falava sobre o caso e se reivindicava a glória de Kleber Mendonça Filho, que já em anos anteriores havia sido esnobado pela Academia. Nem “O Som ao Redor” nem “Aquarius” nem “Bacurau” foram a seleção brasileira nos seus respetivos anos.

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Enfim, prevaleceu a justiça e a sanidade estratégica, e lá ficará o “Agente Secreto” como a aposta brasileira. Também “Magalhães” de Lav Diaz estará na corrida e também essa obra passou no TIFF. O representante das Filipinas é uma coprodução internacional, parcialmente filmada em Portugal com apoio da Rosa Filmes, que se insere na onda de arte anticolonial que tem caracterizado muito do melhor cinema português. Não que tenhamos um conterrâneo no papel de Fernão de Magalhães. Ao invés, o protagonismo cabe a Gael García Bernal, ator mexicano que aprendeu o texto em jeito fonético.

Do Brasil, viu-se ainda o Urso de Prata deste ano, “O Último Azul” de Gabriel Mascaro que, por acaso, já tinha estreia comercial tanto cá como no seu país de origem ao mesmo tempo que deliciava audiências festivaleiras no Canadá. Com assinatura bem portuguesa, viu-se ainda a estreia a solo de Maureen Fazendeiro que, depois de várias colaborações com Miguel Gomes, finalmente realiza uma longa-metragem sozinha. “As Estações” esteve em destaque na secção Wavelengths enquanto, no programa TIFF Classics, a mais recente restauração de “Aniki-Bóbó” marcou a estreia norte-americana. Escusado será dizer que, até depois da morte, Manoel de Oliveira continua a deslumbrar cinéfilos.

Um clássico instantâneo e Kleber Mendonça Filho.

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“O Agente Secreto” | © Nitrato Filmes

Toda a obra de Kleber Mendonça Filho foi prólogo, senão esboço de preparação, para “O Agente Secreto”. O filme, que este ano ganhou fama como o mais galardoado em Cannes, é daqueles triunfos que merece a descrição de clássico instantâneo, exultando tudo o que tem valorizado o trabalho do seu realizador desde o tempo dos vídeos amadores e ecoando esses sonhos passados também. Penso no velho projecionista e nos cinemas do Recife que tanto definem seus esforços documentais, nos jogos de género em “Bacurau” e curtas de terror, no fulgor político de “Aquarius” e nas sinfonias da cidade cantadas no “Retratos Fantasmas” e no “Som ao Redor” e no “Recife Frio” e tantos outros.

Dito isso, “O Agente Secreto” não depende os seus prazeres no reconhecimento da referência. Mesmo quem encontre o imaginário de Kleber Mendonça Filho pela primeira vez aqui será capaz de compreender o assombro diante dos seus olhos. Aliás, é difícil supor alguém que verdadeiramente ame cinema e não ame esta obra-prima também, sendo que, em múltiplas ocasiões, parece que toda a História desta sétima arte cabe dentro do “Agente Secreto”. Vejam um humor Hitchcockiano naquele cadáver da cena de abertura, os ritmos de Altman, as cores dos mestres brasileiros do Cinema Novo e o caleidoscópio de técnica febril, desde efeitos óticos a transições caricatas ao stop-motion e à simples magia de uma estrela sob o olhar da câmara.

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Essa estrela é Wagner Moura, aqui exibido em estado de graça e na plenitude dos seus talentos, no papel de um foragido que, em tempos de ditadura militar, foge à aliança pérfida das autoridades e grandes empresas. Ele corre pela vida e pelo futuro do filho, assumindo identidades falsas e achando casa temporária numa comuna de refugiados, cada um com sua história. E, verdade seja dita, por muito que o realizador se prenda ao magnetismo de Moura, isso não significa que a ele agrilhoe a narrativa, encontrando inúmeras oportunidades para expandir este mural em celuloide. Esta é a história do “Agente Secreto” e a História do Brasil, do Recife, das imagens estáticas que ganham vida pela bênção do projetor.

Tanto assim é que, a meio dos seus 158 minutos, o cineasta passa a perna ao público e força o repensar daquilo que vê, contextualizando a própria ação como um diálogo entre estudos presentes sobre o passado atribulado de 1977. Não quero revelar detalhes em demasia, pois todos devem ter a oportunidade de descobrir “O Agente Secreto” e usufruir das suas surpresas, seus devaneios e sensualidades, tubarões e pernas peludas. Por isso, fica a recomendação de um dos melhores filmes do ano, da década, quiçá do novo milénio que vivemos. Cá por Portugal, o fenómeno chega às salas no início de novembro, com distribuição da Nitrato.

O Urso de Prata por terras canadenses.

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“O Último Azul” | © Nitrato Filmes

De uma preciosidade brasileira que o cinéfilo português terá de esperar mais uns meses, passamos para outro tal sucesso que já aqui era exibido enquanto, no Canadá, só marcava antestreia de festival. Refiro-me ao “Último Azul” de Gabriel Mascaro, grande vencedor do Urso de Prata na Berlinale, equivalente ao segundo lugar na competição oficial. Enfim, já temos cobertura do título aqui na Magazine HD, mas permitam-me algumas palavras em sua honra. Porque esta distopia tropical merece muitas honras e generoso elogio, a começar pelo trabalho de uma Denise Weinberg que nunca esteve melhor.

Ela é Teca, senhora de 77 anos num Brasil do futuro próximo em que o governo estabeleceu um sistema de isolamento dos mais velhos. Em nome da economia, os idosos são forçados para as margens da sociedade, confinados a misteriosas colónias de onde nunca mais saem. Teca achava que ainda tinha mais uns anos de liberdade, mas a repentina redução na idade de “reforma” vira-lhe de avesso os planos. Fixada no sonho de andar de avião antes de morrer, ela tenta tudo para se escapar à justiça e à antipatia da filha, atravessando o rio Amazona numa odisseia cada vez mais rebuscada à medida que “O Último Azul” desvenda os seus segredos.

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Em torno de Teta, Mascaro constrói uma visão expansiva desse futuro hipotético, marcando o seu percurso peripatético com personagens coloridas que nos ficam na memória muito depois dos créditos finais nos dizerem adeus. Rodrigo Santoro destaca-se como um barqueiro mercenário, primeiro companheiro caricato na viagem da heroína e quem a introduz às propriedades psicotrópicas de uma lesma azulada. Miriam Socarrás é ainda melhor, cheia de sorrisos e boa disposição e de uma crítica jocosa aos evangelismos que se mesclam com a política brasileira. No seu episódio, ouvimos os ecos do “Divino Amor” que Mascaro assinou há uns anos.

Mas no fim, este é o show de Denise Weinberg e é ela que domina a experiência do “Último Azul,” moldando o filme à sua imagem e ajudando-o a alcançar um ocasional êxtase. O momento em que, despreocupada, Teta desprende os cabelos e os deixa voar ao sabor do vento é daqueles instantes em que o cinema supera os seus aparentes limites e nos toca com forças inefáveis. Graças a esta prestação, Mascaro consegue sustentar as partes mais instáveis do enredo e ainda evita o sentimentalismo barato que estas premissas podem sugerir. Sem querer desapreciar o trabalho do realizador ou da competição, “O Último Azul” devia ter ganho o Prémio para Melhor Interpretação Principal na Berlinale.

“Magalhães” foi o melhor filme do TIFF 50.

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“Magalhães” | © Rosa Filmes

Por falar em prémios, as Filipinas têm uma amizade peculiar com Portugal no que se refere à corrida para o Óscar. Aqui por terras lusitanas, temos a fama de ser o país que mais vezes enviou uma fita à Academia de Hollywood sem nunca alcançar a nomeação. As Filipinas, por seu lado, estavam entre o primeiro grupo de nações que, ainda nos anos 50, se candidataram à categoria de Melhor Filme Internacional. Desse clube exclusivo, é o único país que nunca foi nomeado. Talvez na união das nossas tradições cinematográficas, a sorte acabe por recair sobre estes cinemas nacionais. Uma coisa é certa, “Magalhães” de Lav Diaz foi o melhor filme do TIFF.

Para ser franco, duvido que esta reflexão histórica conquiste os afetos de quem vota nos Óscares, mas mais vale fazer grande cinema do que ganhar prémios. E “Magalhães” é grande cinema em todos os sentidos, um épico de quase três horas em que cada imagem é uma pintura de mestre, cada movimento uma astuta perversão das mitologias nostálgicas da expansão colonial. Tecnicamente, esta é a biografia de Fernão de Magalhães e a história da sua tentativa de dar a volta ao mundo por via marítima. Em efeito, trata-se de algo mais complicado e difícil de descrever, apelando à subversão e ao exorcismo dos fantasmas dos Descobrimentos e suas muitas mentiras.


Quase todo filmado em planos estáticos e distantes, com muito pouca da graça do close-up, silêncios profundos e diálogos bárbaros, “Magalhães” drena a glória ao conto da personagem titular. Ninguém sai do cinema encantado com as potências europeias e suas ambições imperiais, vendo com clareza a chacina que implicavam e quanto a Cristandade serviu de justificação venenosa e de arma grosseira, grotesca, grandiosa somente na sua natureza nefasta. Até a própria noção de identidade cultural se mostra volátil, deturpada por jogos linguísticos com sotaques trocados. Magalhães jamais soa português e os espanhóis sofrem do mesmo fado e os nativos filipinos também.

Estas escolhas geram a ideia do espaço histórico onde a verdade nos aparece por via de uma irrealização, sendo preciso despir os preceitos e preconceitos que definem a cultura lusitana para vislumbrar o que fica além da sua falsidade. Não que Diaz se manifeste em jeito ressentido. Muito pelo contrário, os idiomas cinematográficos que emprega estão impregnados de influência ibérica, desde quadros saídos do nosso melhor cinema pós-revolucionário até à colaboração do diretor de fotografia espanhol Artur Tort. “Magalhães” é daquele cinema que só pode existir na intersecção de múltiplas tradições cinematográficas, assumindo-se quimera pronta a reivindicar sua grandeza e a urgência de um olhar crítico sobre a nossa História.

Fazendeiro estreia-se a solo com “As Estações”.

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“As Estações” | © O Som e a Fúria

Na última década, Maureen Fazendeiro forjou uma filmografia invejável. Contudo, a sua reputação vive à sombra dos colaboradores cuja fama é tão maior que a sua. Miguel Gomes é o principal ofuscador, tendo sido sob a sua alçada que Fazendeiro primeiro experimentou a realização de longas-metragens e a sua influência em todos os projetos do outro cineasta desde o fim das “Mil e Uma Noites”. Em 2021, ela partilhou o crédito com Gomes nos “Diários de Otsoga” que, até hoje, serão das melhores experiências cinematográficas em diálogo direto com a pandemia e a índole que do confinamento brotou.

Em paralelo, a realizadora fez umas quantas curtas a solo, com “Sol Negro” a merecer especial destaque. Mas foi só este ano, com “As Estações”, que esta artista se afirma com uma longa a solo, demarcando uma voz criativa própria e singular. Comparar a experiência com os filmes de Gomes ou o trabalho dos restantes autores do Som e da Fúria é uma tentação difícil de resistir. Também é um erro que evitarei a partir de agora. Afinal, “As Estações” é peculiar o suficiente para afugentar essas analogias fáceis. Se há alguma ligação a apontar, sinto-me mais confortável num apelo aos híbridos de facto e ficção que Cordeiro e Reis fizeram num Portugal em rescaldo da revolução dos Cravos.

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Só que, ao invés de Trás-os-Montes, Fazendeiro parte rumo ao Alentejo e em suas paisagens desvenda uma panóplia de possibilidades cinematográficas. Algumas seguem o foro folclórico, apelando a histórias antiquíssimas que a cineasta dramatiza em traços minimalistas. Esse interesse poderia tombar a fita na etnografia, não fosse Fazendeiro ir buscar inspiração a outras práticas semelhantes. Mais que etnográfico, “As Estações” é arqueológico, incluindo até a crónica de investigadores alemães na primeira metade do século XX e seu estudo das antas Alentejanas. Dessa pesquisa surge um epíteto experimental, com desenhos animados e linhas explodidas, uma depuração do cinema em elementos gráficos.

Em pouco mais de 80 minutos, Fazendeiro faz-nos testemunhas de uma expressão artística em constante mutação, como se cada novo segredo desvendado da paisagem suscitasse, talvez até exigisse, uma readaptação de códigos audiovisuais. Por outras palavras, Maureen Fazendeiro apresenta-nos cinema experimental à escala da longa, um desafio posto ao espetador que deve fazer o mesmo que a câmara e repensar a sua forma de ver à medida que “As Estações” se desenrolam. É aquele tipo de proposta que se adequa perfeitamente à competição de Locarno em que Fazendeiro celebrou a estreia mundial e à programação Wavelengths do TIFF, onde é comum estilhaçar a convenção para almejar o futuro do cinema.

Manoel de Oliveira encantou Toronto.

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“Aniki-Bóbó” | © TIFF

Se a secção Wavelengths mira o futuro da arte, o TIFF Classics propõe um olhar retrospetivo. Este ano, várias obras, de origens tão díspares como a cena independente americana dos anos 90 e a génese dos épicos de artes marciais na indústria chinesa, tiveram direito a sessões especiais. Entre a oferta esteve “Aniki-Bóbó”, a primeira longa-metragem de Manoel de Oliveira e um trabalho curiosamente anómalo no desenvolvimento da sua expressão fílmica. Assim se marcou a estreia norte-americana de uma restauração a 4K que já andou a fazer as rondas na Europa e nos mostra o clássico português no apogeu do seu esplendor.

Rodado em 1942 com o apoio do produtor António Lopes Ribeiro, “Aniki-Bóbó” adapta a história dos “Meninos Milionários” de Rodrigues de Freitas. Essa origem literária dita a forma do enredo, mas não necessariamente o tom da fita em si. Para tais dimensões, há que olhar para a juventude portuense de Manoel de Oliveira e as filmagens que ele já tinha feito em “Douro, Faina Fluvial”, sua estreia absoluta e berço do modernismo em cinema português. O modo como ele, na alvorada dos anos 30, ponderou a mocidade que se atirava da ponte D. Luís replica-se no seu olhar sobre o elenco de palmo e meio de “Aniki-Bóbó”.

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De facto, o trabalho em localizações reais, com atores não-profissionais, fora do estúdio, a não ser em algumas cenas de interior, viria a inspirar muitos teóricos a caracterizar a fita como um antecedente do Neorrealismo. Não chego a tanto, mas entendo o impulso. Há uma qualidade quase visceral no jeito com que Manoel de Oliveira captura o Porto e Gaia de 1942, quase como se o triângulo amoroso entre Carlitos, Eduardo e a caprichosa Teresinha não fosse mais que um pretexto para voltar a imortalizar aquela paisagem urbana no cinema. E, diga-se de passagem, o olhar não fica preso ao preceito realista.

Pela calada da noite, a culpa no coração de Carlitos é capaz de invocar um Expressionismo que só voltaria a manifestar-se na obra de Oliveira aquando da Tetralogia dos Amores Frustrados. A própria montagem puxa pela qualidade lírica patente naqueles espaços, como quando os meninos reconciliados sobem a escadaria e um dissolve faz parecer que se dirigem aos céus bem altos, um Paraíso longe da loja das Tentações. Se não é filme perfeito, a culpa está principalmente no cartório do regime, nas suas exigências morais e nas expetativas de uma sociedade de espectadores habituada a certas resoluções. Felizmente, Nascimento Fernandes está pronto a elevar essas passagens mais didáticas e ajuda-nos a esquecer as máculas menores deste milagre no grande ecrã.

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