Killers of the Flower Moon © 2023 Apple Studios

Martin Scorsese e a Banalidade do Mal

O ‘mestre’ Martin Scorsese está de volta aos ecrãs, com o seu novo épico ‘Os Assassinos da Lua das Flores’. Em várias entrevistas com os media internacionais o veterano realizador, tem, aos poucos, revelado alguns aspectos sobre este seu novo filme, abordando também o estado actual da indústria cinematográfica e o futuro do cinema.  Estreia a 19 de Outubro.

Martin Scorsese está de volta aos ecrãs — literalmente, porque até faz um pequeno cameo — em ‘Os Assassinos da Lua das Flores’, um thriller policial baseado em factos reais, sobre uma história do oeste americano do início do século XX, onde os cavalos começavam a ser substituídos por automóveis. Embora, o espirito de um imenso território violento e sem lei, seja o mesmo de antes, como nos autênticos filmes de cowboys. Estamos na véspera do lançamento deste filme, que é igualmente um drama épico de grande envergadura e orçamento, produzido pela Paramount Pictures e Apple Original Films. Além de estrear nas salas, o filme pode ser visto em breve na plataforma Apple TV+. Todavia, dada a sua dimensão épica e grandiosa, por favor aproveitem bem esta estreia e vejam-no de preferência numa grande sala de cinema. O cineasta de 80 anos de idade (faz 81, em Novembro), tem-se desdobrado em entrevistas com os media internacionais, com intenção de promover ‘Os Assassinos da Lua das Flores’ — que vai ser uma das estreias mais marcantes desta rentrée — e continuar a manifestar as suas opiniões de ‘mestre’, sobre o estado da indústria, o futuro do cinema e a preservação do património cinematográfico.

Martin Scorsese
Martin Scorsese, capa e grande entrevista da revista britânica. ©BFI/Sight and Sound




A FÓRMULA DOS SUPER-HERÓIS

A Sight and Sound, por exemplo — a revista editada pelo British Film Institut — fez capa com Martin Scorsese e publica uma fabulosa ‘The Big Interview’, no seu número de outubro, que vale a pena ler com atenção. Mais ou menos em todas as entrevistas que o realizador deu, começa mais uma vez por lamentar o estado da produção de filmes contemporâneos da indústria de Hollywood. Isto é, maioritariamente constituída por filmes de super-heróis e filmes de acção, alguns aliás com grande sucesso de bilheteira: ‘Mas não são para mim… à medida que envelheço, estou a tentar descobrir onde diabo, devo gastar o meu tempo de vida. Não o posso gastar com esses filmes’. Este seu comentário, está em linha de conta com uma entrevista, frequentemente citada, que Scorsese, concedeu há uns anos à revista Empire, — na altura da difícil e arriscada estreia de ‘Tenet’, (2020), de Christopher Nolan, nas salas, ainda com limitações pandémicas — na qual afirmava que os filmes de super-heróis da Marvel, pareciam ‘parques temáticos’ e ‘não eram cinema’. Nessa entrevista, o realizador, relembrava também com alguma nostalgia, um passado em que os grandes estúdios investiam e produziam trabalhos sérios e mesmo boas comédias. ‘Os orçamentos agora vão todos para essas adaptações de banda desenhada e para os filmes de ação’. Da mesma forma, que os filmes independentes onde o cinema como arte, continua a florescer, não têm ainda o espaço que merecem, sem ser nas plataformas de streaming: ‘Queremos que os filmes sejam maiores e que sejam vistos por mais público. Mas o problema é que o panorama cinematográfico actual está muito fragmentado. Os filmes são feitos para um determinado público-alvo, feitos para diferentes grupos de géneros, sexualidades, etc. Os filmes deveriam ser feitos a pensar em todos os públicos’.

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VÊ TRAILER DE ‘ASSASSINOS DA LUA DAS FLORES’




TRABALHAR SEM INTERFERÊNCIAS

Martin Scorsese sabe que tanto ele como a maioria dos cineastas do mundo inteiro, enfrentam um cenário muito diferente em relação às décadas anteriores, já que a frequência dos espectadores às salas de cinema, ainda não voltou aos níveis pré-Covid 19. Christopher Nolan com ‘Oppenheimer’, e Greta Gerwig com ‘Barbie’, felizmente triunfaram nas bilheteiras, com filmes de grande orçamento que, como os de Scorsese, têm uma marca autoral. Contudo, são duas das poucas excepções no panorama da exibição de cinema em sala e na indústria de Hollywood. Mesmo com este contexto um pouco negativo, como realizador, Scorsese ocupa um lugar privilegiado no panorama do cinema norte-americano da actualidade: quase sempre ao longo da sua carreira como realizador contratado, tem conseguido fazer filmes épicos de grande qualidade, à sua maneira e que refletem a sua voz e talento únicos, na história do cinema mundial. Este ‘Os Assassinos da Lua das Flores’ foi financiado pela Apple Original Films, por um valor de cerca de US$ 200 milhões de dólares (250 milhões de euros) e mais uma vez Scorsese conseguiu o que queria e ao que parece sem grandes interferências: ‘Certamente vão dizer: Bem, isso é porque você é quem você é….mas sim, tenho 80 anos. É verdade, consegui filmar sem que ninguém estivesse a olhar por cima do meu ombro…se estavam, estiveram sempre, muito sossegados’.

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Os Assassinos da Lua das Flores
‘Os Assassinos da Lua das Flores’ é o filme mais marcantes desta rentrée. © Apple TV+




UM FILME MARCANTE E FASCINANTE

Martin Scorsese efectivamente, nunca esteve envolvido com o sistema de produção dos grandes estúdios. Sempre funcionou como uma espécie de ‘freelancer’ de luxo, um cineasta de autor, à imagem da produção europeia, mas contando histórias da sua América. Novamente ’Os Assassinos da Lua das Flores’, torna-se num raro exemplo de um ‘trabalho sério’, de uma produção épica, de reconstituição de uma época, que os grandes estúdios deixaram de fazer ou fazem cada vez menos. Eles arriscam pouco na qualidade e preferem os números e retorno rápido nas receitas de bilheteira. Deste modo, Scorcese tem conseguido conciliar no seu cinema, as receitas de bilheteira e uma visão artística única, prestígio e entretenimento. Embora tenha uma formidável reputação como realizador, nada garante que ’Os Assassinos da Lua das Flores’, venha a ser um triunfo de bilheteiras. No apogeu do realizador na década de 1970, filmes como a saga de ‘O Padrinho’, de Francis Ford Coppola, foram capazes de unificar públicos em todo o mundo, mas agora já não é bem assim. O próprio Scorsese duvida que o cinema ainda tenha esse mesmo poder de unir os espectadores. Até agora, a maioria das críticas de ’Os Assassinos da Lua das Flores’, são excelentes — o filme estreou fora da competição no último Festival de Cannes — e todas dizem que esta é sem dúvida uma história que merecia ser contada. Há quem lhe chame, ’uma conquista cinematográfica marcante’ e esta será certamente uma opinião com o qual muitos espectadores vão concordar, além de este filme ser uma obra extraordinária, de um dos maiores cineastas americanos vivos e de sempre, infelizmente já em final de carreira.

Martin Scorsese
Martin Scosese também é capa da Time. ©Time Magazine




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OS ASSASSÍNIOS DOS OSAGE

‘Os Assassinos da Lua das Flores’, de Martin Scorsese é uma adaptação épica de cerca de três horas e meia do livro ‘Killers of the Flower Moon: The Osage Murders and the Birth of the FBI’, de David Grann, — editado em Portugal com o mesmo título do filme, pela Quetzal Editores, em julho de 2017 — protagonizada por dois dos seus atores mais fiéis: Robert De Niro e Leonardo DiCaprio. O filme narra a história real dos assassinatos, feitos de uma forma velada, de vários membros da comunidade indígena dos Osage, em Oklahoma, na década de 1920. O drama real da História dos EUA é conhecido por o ‘Reino do Terror’, no qual mais de 60 nativos norte-americanos, donos de terras, morreram de uma forma suspeita ou foram aniquilados por indivíduos brancos, que tentavam desta forma apoderar-se das ricas minas de petróleo, que estavam no subsolo, das terras pertencentes aos Osage. E isto sem que fosse feita justiça ou se iniciasse uma investigação policial, até à posterior fundação do FBI — em parte, financiada pelos próprios Osage — algo que é mais desenvolvido no livro de Grann, do que propriamente no filme. Embora Martin Scorsese goste, desde a sua infância, de western, ’Os Assassinos da Lua das Flores’ é o seu primeiro filme sobre o oeste americano, combinando-o com um drama policial que é bem mais a sua ‘praia’; mais uma vez os protagonistas deste western, de uma época mais recente, são homens com uma postura violenta e machista, algo que há muito são as personagens e os temas fortes dos seus filmes anteriores: em ‘Gangs de Nova Iorque, por exemplo, as personagens e as suas motivações, não são muito diferentes, dos empresários criminosos e sem escrúpulos de ‘Os Assassinos da Lua das Flores’. ‘Cresci num bairro onde haviam muitos crimes de rua e crime organizado e muitas gente que fazia coisas horríveis. Nesta história, os criminosos em vez de roubarem uma loja, chegam ao ponto de aniquilar, uma nação indígena’.

Os Assassinos da Lua das Flores
‘Os Assassinos da Lua das Flores’, com Lily Gladstone e Leonardo DiCaprio  © Apple TV+




O FOCO EM LILY GLADSTONE

Quando se trata do lançamento dos seus filmes nos EUA, o realizador tem de lidar com um público que está mais do que nunca fragmentado e politicamente polarizado. Além disso, numa época em que há maior escrutínio sobre quem é representado no ecrã, Scorsese teve que ter muito cuidado para contar esta história dos assassínios dos Osages, na década de 20, pouco conhecida, mas bastante incómoda para a sociedade americana. Por isso, estava determinado que em ’Os Assassinos da Lua das Flores’, daria o devido peso aos personagens indígenas. Na verdade, a grande alma e o foco do filme, não são os homens brancos interpretados por Robert De Niro e Leonardo DiCaprio, mas antes por uma mulher nativa americana, retratada pela actriz Lily Gladstone. A interpretação de Gladstone tornou-se num dos grandes pontos de debate do filme. O realizador viu-a pela primeira vez em ‘Certas Mulheres’ (2016), da realizadora Kelly Reichardt, um filme que conta a história de duas mulheres cujos os destinos entrelaçam-se de uma maneira íntima e profunda. ‘Aquele rosto, os olhos dela a moverem-se e pensei, ela é realmente interessante. É esta!’, lembra Scorcese sobre o impacto que a actriz de origem nativo-americana, mas da tribo Blackfoot, causou nele. Na corrida aos Óscares de 2024, Lily Gladstone está sem dúvida, também numa posição privilegiada, para se tornar na primeira intérprete indígena, a ser pelo menos nomeada para Melhor Atriz.

Martin Scorsese
Crédito editorial: DFree / Shutterstock.com




PRESERVAR A HISTÓRIA DO CINEMA

Com o destino do cinema decerto modo incerto, Scorsese tem-se empenhado igualmente nas últimas décadas a preservar a história do celuloide e a restaurá-la. Ajudou a criar a The Film Foundation — juntamente com Francis Ford Coppola, George Lucas, Steven Spielberg, Stanley Kubrick, entre outros cineastas da geração New Hollywood uma organização dedicada à preservação de filmes, que desde a sua fundação em 1990, esteve envolvida no restauro de mais de 1.000 obras cinematográficas, entre elas ‘O Vale Era Verde’ (1941), de John Ford, e ‘Rashomon’, (1950), de Akira Kurosawa. Porém trata-se ainda de uma instituição apostada em ‘salvar tesouros da cinematografia mundial’ e a memória do cinema, a partir também de filmes de paragens tão diversas como o Sri Lanka, Taiwan, Marrocos, México, Costa do Marfim, passando, naturalmente, por uma forte e diversificada representação dos EUA. Sempre com a projeção de cópias restauradas, concretizadas com apoio dos laboratórios da Cinemateca de Bolonha, UCLA, American Film Archive. Comparando filmes antigos com livros antigos, Scorsese acredita que eles precisam ser preservados: ‘A imagem que isso nos dá…(a) representação de quem somos ou de quem éramos, como mudamos, as coisas boas, as coisas más — estas que não podem ser varridas para debaixo do tapete’.

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Os Assassinos da Lua das Flores
É notável a interpretação de Lily Gladstone. ©AppleTV+




PARAR  DE FILMAR É MORRER

Apesar da idade Martin Scorsese tem na cabeça, vários filmes ainda gostaria de fazer e dedicar a sua energia criativa. A propósito disso, lembra de um conselho que lhe deu, o lendário cineasta iraniano Abbas Kiarostami (1940-2016): ‘Ele olhou para mim e disse-me: Não faça nada que não queira fazer. Simplesmente não faça mesmo. Agora entendo o que ele quis dizer.’ E na verdade, Scorcese parece ver o cinema actual, em termos bastante pragmáticos: ‘Tudo se resume ao que está no enquadramento, onde colocar a câmara e onde passar o tempo que me resta da sua vida contando histórias. Não acham que isto continua a valer a pena?’

JVM

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