Diät

Debaixo do Radar | Fevereiro 2019

Para finalizar o balanço do mês de Fevereiro, escuta agora a melhor música independente e hermética que passou “debaixo do radar” do público geral.

Fevereiro foi um mês agitado para o mundo das artes. O falecimento de Mark Hollis, genial rosto da banda britânica Talk Talk e principal propulsor da sua célebre transformação sonora de pop sofisticado para pós-rock seminal. A cerimónia dos Grammy e a merecida vitória da cantautora Kacey Musgraves e do seu aclamado álbum de estúdio Golden Hour na categoria “Álbum do Ano” (contrabalançando, de certo modo, a vergonhosa selecção de nomeados para “Melhor Álbum Rock”). Os Óscares e o improvável (assim como contestável) triunfo de “Green Book” na categoria “Melhor Filme”, superando os grandes favoritos da audiência entendedora, “Roma” e “A Favorita“. O mês mais curto do ano não pecou em espectáculo, muito menos em controvérsia. Para o departamento de música da Magazine.HD, os singles “Living Room, NY” de Laura Stevenson, “UFOF” dos Big Thief, “Glass Eyes” de JW Ridley e os discos Crushing de Julia Jacklin e Quiet Signs de Jessica Pratt assumiram-se como os grandes destaques de um mês divisivo, que ficou aquém das expectativas em termos de divulgação de material inédito e arrojado. Para finalizar o balanço do mês de Fevereiro, escuta agora a melhor música independente e hermética que passou “debaixo do radar” do público geral.

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Fevereiro Debaixo do Radar | Singles

Corey Cunningham

Business Of Dreams, “Chasing That Feeling”

“When I’m gone you won’t cry for me, focus on the moment, be free”. “Chasing That Feeling”, a faixa de abertura do segundo álbum de estúdio de Corey Cunningham, é uma enamorada ode à música new wave da década de oitenta, conscientemente nostálgica, focalizada na individualização sensorial do autor e na irrevogável sobreposição da emoção à razão. Após o falecimento do pai, Corey Cunningham desistiu da sua instável carreira musical na Califórnia para retornar ao estado-natal de Tennessee, onde se viu forçado a confrontar um passado que abandonara aos dezanove anos, as recordações associadas e a labiríntica sensação de sempiterna melancolia. Excepcionalmente catártica, “Chasing That Feeling” simboliza o aprazimento pelo instante inimitável, a almejada escapatória à depressão, mas também a taciturna noção de que um fragmento íntimo do nosso ser extinguiu-se durante a rota para a felicidade, inevitavelmente sacrificado em benefício do bem-estar e da liberdade espiritual. Superficialmente reluzente, este trajecto é introduzido por percussão arcaica, escoltada por uma melosa guitarra acústica e sintetizadores paradisíacos que fazem jus à capa de Rype For Anarchy. A aura celestial do trabalho de Business Of Dreams, a harmoniosa máscara que oculta a angústia visceral, é meticulosamente produzida para conduzir o ouvinte a uma época que talvez não tenha presenciado, mas que distingue com clareza. Uma máquina do tempo, convidativa e etérea. Uma viagem pela mente de Corey Cunningham, um entusiasta do sentimento autêntico e do debate do passado.

Priests

Priests, “Good Time Charlie”

Nothing Feels Natural (2017), o disco de estreia dos Priests, aclamada banda pós-punk pertencente ao admirável círculo musical contemporâneo de Washington D.C.,  dividiu-nos por aqui, assim como o mais recente single de The Seduction Of Kansas (2019), “Good Time Charlie”. Notavelmente polémicos, severamente incomodados pela indiferença sociopolítica e de convicções bem vincadas, os Priests alimentam-se desta perpétua discussão em torno da música que conceptualizam. Ao contrário do single “The Seduction Of Kansas”, que aparentava empurrar a sonoridade do trio numa direcção inédita, mais dançável e liricamente purista, “Good Time Charlie” arrasta a banda norte-americana de volta às origens. As guitarras nodosas de G.L. Jaguar e a bateria idónea de Daniele Daniele, unha e carne com a linha de baixo, enriquecida por címbalos esporádicos, sonorizam a reinterpretação da longa-metragem Jogos de Poder (2007), do envolvimento do deputado texano Charlie Wilson com a Operação Cyclone e a proliferação cíclica da violência ocidental. Os Priests constatam uma História ultra-simplista, relatada a preto-e-branco como método de afinidade sintética com as massas incultas. Simultaneamente, acusam a indústria do entretenimento de cooperar, de modo fulcral, na adulteração de eventos efectivos para conveniência própria. A transparência informacional é ilusória, quando procurada à luz do dia, conspícua e abordável. Nos recantos, tocam os Priests, descortinando as contemplações perspicazes, distanciadas de manipuladores pontos de vista externos e de uma rudimentar categorização de cenários factuais e hipotéticos como meros reflexos de uma universalidade “positiva” e “negativa”. “Good vs. evil of stories we tell, we’re the ones who never ever go to hell”.

Witching Waves

Witching Waves, “Eye 2 Eye”

“Eye 2 Eye”, o terceiro single de Persistence, terceiro álbum de estúdio da banda de Londres Witching Waves, que será lançado a 5 de Abril, destaca-se das restantes canções divulgadas durante o mês de Fevereiro pela componente rítmica vertiginosa, a tóxica potência instrumental e a tensão sufocante gerada por um trabalho de produção visceral, provocante. O teledisco de “Eye 2 Eye”, realizado pelo talentoso Jack Barraclough, inicia com a seguinte nota: “Warning!  This video contains flashing images throughout”. O motivo de guitarra contundente de Mark Jasper invade a percepção do ouvinte sem aviso prévio, a guerrilheira palheta assume a função de impiedosa arma de fogo, movimentando-se, furtivamente, pelas cordas do instrumento. As céleres vozes do já mencionado guitarrista e da baterista Emma Wingham criam faísca entre si, reminiscentes das melodias vocais dos velhos compadres Buzzcocks. Fazem-se acompanhar de visuais epilépticos, da idealização de uma experiência audiovisual conveniente, em que a imagem e o áudio se tornam inseparáveis após a primeira visualização. As letras cuspidas pelos vocalistas evidenciam uma ardorosa honestidade, os tópicos de mudança e separação incluídos numa densa camada de pura emoção. Após o lançamento do admirável Crystal Café (2016), os Witching Waves elevam a fasquia a níveis extraordinários com a divulgação de “Eye 2 Eye”. Mais autênticos, mais ágeis e mais perigosos do que nunca. DIY britânico no seu melhor.




Fevereiro Debaixo do Radar | Álbuns

55 Deltic

55 Deltic, You Could Own An American Home

Abre-se uma janela na cena contemporânea do slowcore. Vultosos vestígios de emo, pós-rock e uma colossal admiração pela música dos Duster, grupo de culto da década de noventa, noticiam a chegada dos 55 Deltic, banda de Birmingham, constituída pelos guitarristas Jordie Bokor e Chaitanya Devarakonda, baixista Alexander Ainsworth e baterista Peter Shakeshaft. Modorrento e plácido, o quarteto britânico nunca se precipita musicalmente, consumando todas as oportunidades criativas de modo deliberado. Como referencia o nome da banda (“British Rail Class 55”), a locomotiva sónica serpenteia por uma trajectória aparentemente homogénea, sendo que as oito canções que compõem You Could Own An American Home acabam por conquistar uma legítima identidade própria, beneficiando de múltiplas audições.

Na sucinta faixa de abertura homónima, a declaração “You could own an american home” é repetida com angelical delicadeza, preparando o ouvinte para as raízes shoegaze de “Glendale Girls”, as harmonias vocais reminiscentes de Slowdive e uma insólita faceta sinistra, que vai ganhando força ao longo do álbum, sinalizada nas vozes remotas e na linha de baixo taciturna. A partir deste momento, You Could Own An American Home desliza por uma espiral cada vez mais dilatada, ruidosa. Os artistas descobrem um muito cobiçado espaço para respirar, investindo na instrumentação variada. Vibrafones. Campainhas de bicicleta. Violoncelo, viola e violino em “Tangent”. O comboio dos 55 Deltic torna-se progressivamente mais assombroso, hipnótico, por cada estação em que pára, fenómeno constatado não só na musicalidade, como nas próprias composições líricas. “To be so insistent that she should confront her own beliefs/ Subconsciously you were not aware of your own leap of faith/ Your sister is never coming back now”. Nas suas sombrias carruagens transporta, somente, pura matéria íntima, abandonada por almas abaladas, condenadas: lares arrasados, seres transfigurados, a renúncia à fé. O destino de toda esta essência é incerto. Talvez se funda, fisicamente, com o desconsolo na voz de Jordie Bokor em “Fulbright”, a última canção de You Could Own An American Home. Talvez prossiga a sua jornada pela sombra… ou pelo universo imaterial a que realmente pertence, onde a carne é fútil e o sonho reina. “I dreamt I was swimming with my face in her hair” ecoa, eternamente, pelo vazio do infinito.

55 Deltic, You Could Own An American Home | “Eden Valley Line”

Default Genders

Default Genders, Main Pop Girl 2019

Abram alas para o disco mais criativo do ano, até ao momento. No segundo álbum de estúdio do projecto Default Genders, Main Pop Girl 2019, o artista James Brooks conceptualiza, de modo exímio, o retrato de uma cultura artificialmente saudosa, que sobrevive de um passado construído, permanentemente manipulado, vítima de um involuntário processo de recombinação de eventos. O próprio James Brooks é cobaia deste experimento, relatando, detalhadamente, as gráficas histórias de uma metrópole anciã e dos seus ordinários habitantes (“This city hates us – more than it loves Prince, white tar, black tar and the Replacements”). A sua posição é neutra, evitando a censura da hierarquização moral dos personagens ou a conexão emocional com o ouvinte. James Brooks produz um disco excepcionalmente recôndito, convidando, mesmo assim, todos os interessados a contemplarem a sua “nostalgia idealizada”, sonorizada pela extravagância musical e desamarrada de fronteiras criativas. A poesia, mórbida e voyeurística, é complementada pelas batidas envolventes, o electropop infundido de break-beat.

Em Main Pop Girl 2019, o espaço de invenção é desmesurável e James Brooks faz dele o seu genuíno parque de recreio, enraizado nas impensáveis, porém tentadoras colisões de influências e referências. À tradicional estrutura dream pop de “When It’s Over”, a faixa inaugural do álbum, é adicionada uma abrupta cowbell. Em “Reverse Chronological Order (Part 2)”, uma das mais absorventes canções do disco, trompetes mariachi pintam em lustrosos tons de verde, branco e vermelho a brutal imagem de uma comunidade narcotizada, em decadência. “Heart Emoji XO”, uma história sobre o desejo erótico e a demanda por momentânea euforia, é descrita com recurso a um excêntrico teclado e esporádicos sintetizadores nebulosos. Ao longo de doze extasiantes canções, James Brooks nunca deixa de surpreender e as incessantes, insólitas reviravoltas musicais são sempre aguardadas com urgência e alguma apreensão do desconhecido. Main Pop Girl 2019 é um álbum intemporal, onde um passado ilusoriamente objectivo é intrinsecamente metamorfoseado pela mão da geração millenial e a instrumentação assume um papel preponderante. Não existem lições a retirar dos contos de James Brooks (frequentemente, as próprias melodias vocais encontram-se camufladas por múltiplos efeitos e overdub). O universo rege-se pela leis do subjectivismo. As memórias podem ser esboçadas, transfiguradas ou actualizadas, sem nunca perderem o seu fundamento primordial. É esta a teoria de vida que James Brooks pretende transmitir com o seu “camaleão” sonoro.

Default Genders, Main Pop Girl 2019 | “Reverse Chronological Order (Part 2)”

Diät

Diät, Positive Disintegration

Por último, destacamos o segundo álbum de estúdio do grupo do leste de Berlim Diät, Positive Disintegration. Assim como o seu disco de estreia, Positive Energy (2015), também esta fiel continuação descobre as suas raízes sonoras no pós-punk apocalíptico dos Killing Joke, na fase inicial da banda de rock gótico Sisters Of Mercy e na Factory Records da década de 80, gravadora independente responsável pela publicação de inúmeros clássicos do género, como The Return Of The Durutti Column (1980) e Closer (1980). A música dos Diät é fortemente revivalista e uma pungente homenagem a ídolos combalidos, geograficamente posicionada entre Manchester da década de 80 e a segunda metade dos anos setenta em Berlim, mas nem por isso perde a sua identidade autêntica, detectada nos traços de música popular moderna subtilmente agregados ao monótono ruído de uma cosmópolis. As oito céleres canções que constituem Positive Disintegration explodem em cadeia, repetindo uma fórmula imediata e estruturalmente uniforme durante um ininterrupto período de meia-hora (“Missed The Bus” é a excepção, uma soturna “bomba-relógio” que nunca chega a atingir o eternamente anunciado clímax sonoro).

“We”, a venerável faixa de abertura, comunica ao ouvinte os ares álgidos em que Positive Disintegration foi concebido, a cativante evolução de um género de nicho, simultaneamente paralisado ao longo de quarenta anos e em constante metamorfose musical e ainda a instantânea adaptação de um estilo de arte tão tétrico, desesperado, a uma sociedade contemporânea à beira do cataclismo. Prisioneiros da sua própria musicalidade, os Diät exalam, ciclicamente, agressividade anarchopunk, decadência emocional e divagação cerebral. As letras afundam-se na nebulosa mistura, expondo, com estarrecedora proximidade, um mundo caótico e os seus cidadãos amargurados, psicologicamente debilitados. A luta diária pela sobrevivência banal e a infindável busca por relacionamentos significativos, aprazíveis, a “luz ao fundo do túnel” que tarda em chegar. Porém, os Diät não temem a escuridão existencial. Pelo contrário, aliam-na aos ritmos inusitadamente dançáveis de “W.I.G.T.D.W.M?”, à sombria sonoridade industrial de “Disintegrate”, germinada por cortantes guitarras melódicas e sintetizadores envolventes, e a “Opfer”, a última faixa do disco e um tributo aos The Cure e à sua fase exasperada, mais visceral, do início da década de oitenta, mais precisamente ao soberbo Pornography (1982). Positive Disintegration é a imagem literal dos Diät, da sua localização, influências e objectivos. A fotografia oficial de uma banda que detesta ser fotografada, captada, unicamente, pelo poder da música. E que ilustre fotografia, esta.

Diät, Positive Disintegration | “Dogshit”

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