"Três Irmãos" | © Alce Filmes

Três Irmãos – Análise

Em 1994, no Festival de Cinema de Veneza, Maria de Medeiros tornou-se na primeira, e até hoje única, atriz portuguesa a ser consagrada com a Taça Volpi. Se nada mais se soubesse sobre “Três Irmãos”, só essa conquista já o colocaria em posição de destaque nos anais da História do nosso cinema nacional. No entanto, o filme de Teresa Villaverde caiu em semiobscuridade desde essa gloriosa estreia há 31 anos. Isso deveu-se sobretudo à sua indisponibilidade, sem DVDs editados e somente o scan de um VHS degradado nas plataformas online. Ocasionalmente, lá se fazia uma sessão retrospetiva num festival ou qualquer ciclo temático, mas era muito raro.

Além disso, as cópias de 35 mm lá sofriam o desgaste dos anos, perdendo a perfeição cristalina com que haviam chegado às salas pela primeira vez. Mas chega de lamentações, pois “Três Irmãos” está de volta aos cinemas numa estrondosa restauração em 4K, parte do projeto de digitalização do cinema português levado a cabo pela Cinemateca. O filme parece um sonho meio esquecido que agora regressa em máximo esplendor, surgindo em antecipação do novo filme de Villaverde, “Justa”, que vai estrear no Festival do Rio e terá distribuição comercial em Portugal daqui a uns meses, em início de Dezembro.

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Entretanto, a realizadora e Maria de Medeiros vão andar pelo país com esta cópia restaurada da sua obra maestra, estando presentes em todas as sessões programadas para apresentar a fita e conversar com o público. Assim acontecerá hoje, 9 de outubro, no Cinema Ideal, dia 13 na Casa do Cinema de Coimbra, dia 14 no Cinema Trindade do Porto, e dia 15 no City Alvalade, de volta a Lisboa. Ainda haverá mais uma sessão no Cinema Fernando Lopes com a presença acrescida da programadora Ana David, e dia 11 terá nova projeção no Ideal com a diretora de casting Patrícia Vasconcelos juntando-se à festa.

Escusado será dizer que este é um dos eventos cinematográficos mais importantes do ano para todos os que amam a produção nacional, sua História. De facto, assim é para quem quer que morra de encantos pela sétima arte, pois qualquer cinéfilo deveria encontrar motivo para êxtase nestes “Três Irmãos” renascidos em alta definição. Assim é desde a primeira cena nesta história de dois irmãos e uma irmã às margens da sociedade em Lisboa. Logo aí, quando passado e presente colidem e o futuro ecoa em poses e imagens simbólicas, as expectativas de realismo social que a premissa possa sugerir são contrariadas pela abordagem de Villaverde.

Uma restauração de sublime beleza.

tres irmaos critica
© Alce Filmes

Apesar de seus sujeitos e temas prediletos, seu gosto por retratar a miséria no nosso país e a exploração dos mais vulneráveis – algo ainda mais forte em “Os Mutantes” ou “Colo” – a cineasta sempre teve um toque poético. O seu trabalho é construído de acordo com uma musicalidade romântica em que as imagens, seus significados e ritmadas variações cantam. São fitas na vertigem da ópera sem canção ou do cinema mudo sem silêncio, da aparição religiosa a 24 fotogramas por segundo. Neste caso, o sentimento é mesmo inegável, sendo que cada grande plano de Maria de Medeiros converte a tela numa pintura da Virgem Maria em celuloide.

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Em “Três Irmãos”, ela mantém o nome próprio e seus ecos bíblicos, mas a aparência sai dos textos religiosos da Nouvelle Vague. Faz sentido, não fosse Villaverde, nome de destaque nessa primeira geração de cineastas portugueses que, em nova era democrática, estudaram o seu ofício em cursos superiores ao invés de se formarem enquanto aprendizes, técnicos, profissionais noviços em escalada hierárquica. Assim sendo, com todas as influências bem conjugadas, a Maria da imaginação de Villaverde é uma gamine lisboeta, qual Anna Karina redesenhada com traços tugas e olhos que brilham com o tipo de beleza ingénua que Murnau e Borzage viram em Janet Gaynor.

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Muito ajuda que Medeiros, já em 1994, representava o melhor do cinema português pós-Abril. Afinal, a atriz já havia trabalhado para Monteiro, de Oliveira, Grilo, Morais, Pinto e Galvão Teles, tendo ainda se internacionalizado sob a direção de Akerman, Jacquot, Kaufman, Szabó, Luna, Tarantino e outros tantos.


Dito isso, é difícil pensar numa melhor montra para os seus talentos do que a Maria de “Três Irmãos”. Nem mesmo a Sílvia de “Silvestre” ou seu retrato de Anaïs Nin ou a mulher louca da “Divina Comédia” se comparam. Não que isso seja óbvio de imediato, pois, além do fenómeno estético, Maria passa os primeiros movimentos da fita em passividades.

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A moça é improvavelmente inocente no contexto socioeconómico em que nos surge, presença mais delicada numa domesticidade bruta e indigente, marcada pela pobreza e pela violência paterna. Tanto é que, um dia, as agressões contra a mãe levam os irmãos, Mário mais novo e João mais velho, a atacar o patriarca. O velho cego exige que os rapazes não voltem jamais a casa e, no desespero da sua condição, a esposa abandona-o e à filha também. Com vinte amargos anos, Maria lá fica a cuidar do pai tirano, guardando os segredos de todos enquanto, no trabalho se vê assediada pelo filho perverso do seu patrão.

Estão os dados lançados para um melodrama choroso, daqueles que tentam puxar lágrimas até às pedras da calçada. Mas “Três Irmãos” é muito mais estranho que isso. Em primeiro lugar, a narrativa está em constante saltitar de perspetivas, ameaçando a abstração de todas as figuras que não Maria. Da pequenez do retrato às dimensões expansivas de um mural, a fita deixa-se levar pelas relações transicionais de Mário com homens mais velhos, pela bela e volátil Teresa com quem João namora, uma professora em processos de divórcio, as transgressões eróticas da mãe e suas tendências depressivas também.

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Maria de Medeiros nunca esteve melhor.

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Villaverde está tanto a contar a tragédia de Maria como a canção de Lisboa, tanto o sítio como a gente, capturando a cidade como poucos outros cineastas na nossa História audiovisual. A fotografia é creditada ao quarteto de Ulrich Jänchen, Joaquim Pinto, Antoine Roch e Volker Tittel e será um daqueles milagres cinematográficos que nos fazem crer na possibilidade desta arte para transcendência. O mesmo se diz da montagem que Villaverde assina em conjunto com Vasco Pimentel e Rudolfo Wedeles. Graças ao seu jogo rítmico, “Três Irmãos” foge ainda mais ao realismo, assemelhando-se a um surto impressionista ou quiçá a versão cinematográfica dos fluxos de consciência na literatura.

O som é um poço sem fundo de falsidades, como acontece em muito do cinema português da época, mas Villaverde tem a astúcia de tornar isso um gesto deliberado, levando as insuficiências sónicas ao extremo. Acontece logo no início e regressa para o fim, com voz-off de crianças a justapor o sofrimento dos irmãos na vida adulta. Também temos o caso de vários atores, como Evgeniy Sidikhin, Mireille Perrier e Olimpia Carlisi, não falam português e foram dobrados, tornando todas as suas intervenções em exercícios de alienação. O João de Sidikhin parece quase um fantasma que flutua pelo filme, inspirando obsessões estranhas naqueles que o rodeiam, inclusive um laivo de incesto nos olhos do irmão e da irmã.

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Tudo isso ajuda a modular o potencial para a miséria pornográfica quando a existência de Maria vai de mal a pior e até a mais singela rebelião parece envolver o seu degredo perante a câmara. A certa altura, ela adormece no transporte e acaba perdida em parte incerta, as palavras “este é o fim da linha, menina” ecoando na cabeça do espectador como um agoiro do que está para vir. Quando a indignidade do luto se abate, já nem ficamos surpreendidos, e o mesmo se pode dizer quando o mundo se vira completamente contra Maria e ela acaba a correr pelas ruas com uma faca ensanguentada nas mãos.

“Três Irmãos” não é o manifesto de uma realizadora a fazer sermão sobre as condições materiais das suas personagens e aqueles que vivem como elas fora da fantasia no grande ecrã. É lirismo e, chegado o derradeiro movimento de Maria, é um pesadelo expressionista com gritos desesperados a romper a surdina da noite e bocas pintadas escarlate com o beijo da morte. Villaverde arrisca afogar o filme em mau gosto, mas consegue manter-se à tona. Fica o lirismo e a beleza, fica a ópera de Maria, Mário e João enquanto, na banda-sonora se ouve Verdi, Schubert e David Bowie. Que assombro de filme, regressado à sua justa ribalta depois de tanto tempo.

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Três Irmãos

Conclusão:

  • Maria de Medeiros consagrou-se com a Taça Volpi em Veneza graças a “Três Irmãos”, clássico meio-esquecido de Teresa Villaverde cuja importância na História do cinema português em fim de século XX pode ser agora reapreciada. De facto, trata-se de uma obra de beleza incomum, cantando o fado de uma Lisboa onde as sombras pingam sangue e fedem a miséria e as meninas choram lágrimas perladas, quais estátuas da Virgem Maria em situação de milagre.
  • Com apresentação da atriz e sua realizadora, esta nova restauração, muito antecipada depois de três décadas, é um dos eventos cinematográficos do ano. Não devem perder esta oportunidade de descobrir ou redescobrir os “Três Irmãos” que avassalaram o público e o júri em Veneza e que, até hoje, só contenda com “Os Mutantes” como maior trabalho de Teresa Villaverde.
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