Milana Aguzarova (Ada), uma estudante de teatro de olhos penetrantes/©Legendmain Filmes

Descerrando os Punhos, em análise

Em ‘Descerrando os Punhos’, da russa Kira Kovalenko viajamos para os confins do mundo, através de um retrato intimo de uma família disfuncional, e através de uma complexa história sobre uma relação de amor e ódio, interpretada por atores locais e a maioria não-profissionais.

‘Descerrando os Punhos’ (‘Unclenching the Fists’), o primeiro filme da realizadora russa Kira Kovalenko foi o vencedor da secção Un Certain Regard do Festival de Cannes 2021 e a aposta da Academia de Cinema Russa na corrida ao Óscar de Melhor Filme Internacional 2022. Formada no Atelier de Realização de Alexander Sokurov na Kabardino-Balkarian State University, Kira Kovalenko inspira-se — segundo ela própria — na estética neo-realista italiana e sobretudo nos filmes de Vittorio de Sica. Porém ‘Descerrando os Punhos’ faz uma referência quase directa a ‘De Punhos nos Bolsos’ (1965), o primeiro filme de Marco Bellocchio, (1965), uma obra quase de terror, que acompanha a vida de várias gerações de uma mesma família marcada por doenças hereditárias e que vivem num espaço fechado e exíguo. À partida este ‘Descerrando os Punhos’ procura explorar também outras questões: a superproteção familiar, o destino e a vida das mulheres oprimidas, nas sociedades e na religião islâmica, as consequências da guerra e do terrorismo, os traumas não ultrapassados ​​e o peso insuportável da falta de liberdade e individualidade. O filme foi rodado no dialecto autóctone, na antiga cidade mineira de Mizur, na Ossétia do Norte, — uma república autónoma localizada na região da Ciscaucásia, da Federação Russa, com uma população de cerca de 3.000 pessoas ou melhor quase deserta. É uma cidade literalmente perdida no fim-do-mundo, cercada de penhascos, e de edifícios pré-fabricados ao estilo comunista, dispostos ao longo de um desfiladeiro de um rio castanho e poluído pela mineração.

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A história centra-se na jovem Ada (Milana Aguzarova), que vive nesse lugar longínquo, com seu irmão Dakko (Khetag Bibilov), deficiente e dependente, e com o seu pai despótico (Alik Karaev), que afirma protegê-la, enquanto na verdade absorve toda a sua energia e não a deixa crescer. A frágil Ada, sentindo-se presa nesse ambiente sufocante — há uma vaga insinuação de incesto, pelo menos com o pai e talvez também com os irmãos — e vivendo num lugar que não oferece perspectivas de futuro, deposita todas as suas esperanças no seu irmão mais velho, Akim (Soslan Khugaev), que abandonou a família para ir trabalhar e virar-se na grande cidade de Rostov. O objectivo do irmão mais velho, é tirá-la dali ou pelo menos levá-la a um médico, pois Ada sofre ainda as consequências de um ferimento que sofreu quando criança, — no início sem referência clara a eventos específicos — mas que mais tarde vamos saber que foi uma das crianças vítimas do cerco e massacre da escola de Beslan, na Tchechénia, em 2004. Ada tem problemas para controlar a bexiga e sofre de constrangimentos constantes. Também é perseguida diariamente por Tamik (Arsen Khetagurov), um rapaz que está apaixonado por ela. Ada está cercada por homens obsessivos, que de alguma forma projectam nela os seus desejos imaturos e planos sem futuro. A saída é escapar desta sua situação, mas ao mesmo tempo a rapariga não consegue libertar-se ou melhor encontrar uma maneira de o fazer, devido à dependência e também carinho que sente apesar de tudo pelo pai e pelo irmão mais novo, vivendo quase numa espécie de síndroma de Estocolmo. 

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Descerrando os Punhos
Milana Aguzarova (Ada), uma estudante de teatro de olhos penetrantes. ©Legendmain Filmes

Efectivamente este lugar isolado da Ossétia do Norte é o cenário perfeito para o desenvolvimento deste ‘Descerrando os Punhos’, um drama intenso e claustrofóbico sobre simbiose emocional e o isolamento. Contudo os interiores pobres, desarrumados e mal iluminados contribuem também para tornar o filme mais sufocante e pesado. A câmara do director de fotografia Pavel Fomintsev guiada quase sempre à mão é mantida muito próxima da figura e do rosto de Ada, acompanhando os seus movimentos frenéticos, semelhantes aos de um animal assustado, o que contribui para que se estabeleça um clima de ansiedade e angustia permanentes. As andanças constantes de Ada, do pai e dos irmãos (empurrando a moto sem gasolina ou no velho Lada, por exemplo) fazem de ‘Descerrando os Punhos’, também um filme muito físico em que os diálogos transformam-se quase em confrontos corporais, em afectos ou abraços não-desejados. Estes episódios de ação constantes constroem a estrutura de uma narrativa estranha, rara, dura e poucas vezes vista do ponto de vista formal e isso é talvez o grande mérito do filme. Em termos de cores, o casaco violeta de Ada e as roupas coloridas que vende na loja da amiga, contrastam com o ambiente empoeirado e cinzento da paisagem de pedras, estradas e túneis e funciona como uma manifestação visual de ruptura ou melhor da  busca e da luta desesperada da rapariga, pela sua individualidade fora da família e pela fuga desse mundo que a abafa.

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Descerrando os Punhos
Com um elenco de não-profissionais completados pelo atleta de luta-livre Soslan Khugaev. ©Legendmain Filmes

Além da fabulosa interpretação de Milana Aguzarova (Ada), uma estudante de teatro de olhos penetrantes e do experiente Alik Karaev (o pai), os dois únicos actores com experiência profissional, Kovalenko reuniu um elenco de não-profissionais completados pelo atleta de luta-livre Soslan Khugaev (o irmão mais velho), cuja contribuição é marcadamente neo-realista, sobretudo pela sua autenticidade e expressividade. A realizadora talvez tenha querido explorar demasiados temas ao mesmo tempo e é difícil dizer que estamos perante mais uma obra-prima do cinema russo, com um piscar de olho aos filmes de Alexander Sokorov. ’Descerrando os Punhos’ é um bom filme, formalmente impecável, mas que não conseguiu atingir os seus objectivos, talvez por causa de uma narrativa algo instável, com pistas que nem sempre são muito claras e que se tornam por vezes desgastantes e vagas. Porém ao nível das emoções é um filme que mexe bastante com os espectadores. 

JVM

Descerrando os Punhos, em análise

Movie title: Unclenching the Fists

Movie description: ‘Descerrando os Punhos’ o primeiro filme da realizadora russa Kira Kovalenko foi o vencedor da secção Un Certain Regard do Festival de Cinema de Cannes 2021 e a aposta da Academia de Cinema Russa na corrida ao Óscar de Melhor Filme Internacional 2022.

Date published: 30 de January de 2022

Country: Rússia

Duration: 97'

Director(s): Kira Kovalenko

Actor(s): Milana Aguzarova, Alik Karaev, Soslan Khugaev, Khetag Bibilov 

Genre: Drama

  • José Vieira Mendes - 65
65

CONCLUSÃO

‘Descerrando os Punhos’ é um filme realista, duro, muito próximo dos seus personagens e que quase sempre mantém a intriga em segundo plano: qual o real motivo das restrições de Ada? Ada é capaz de cuidar de si própria? O que aconteceu no passado que afetou tanto a relação entre os quatro membros da família e gerou tanta desconfiança, medo e até um certo ódio? A intimidade física da família implicou algum tipo de relacionamento incestuoso? É verdade que apesar de ser um bom filme, ‘Descerrando os Punhos’ não consegue tirar partido da interessante apresentação de personagens pois, a certa altura, faz uma reviravolta narrativa que leva a trama para uma questão um pouco mais específica — o massacre de Beslan, na Tchechénia, em 2004 — que, embora tenha seu lado perturbador, desvia-se do excelente caminho iniciado: a estranha e sufocante relação familiar.

Pros

A fabulosa interpretação e conjugação de actores locais e profissionais que dão uma grande autenticidade e um cariz neo-realista.

Cons

O filme que quer abordar demasiadas questões ao mesmo tempo desviando-se do seu excelente objectivo inicial: a obsessiva intimidade da família.

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