"Não Esperes Demasiado do Fim do Mundo" | © FIlms4You

Não Esperes Demasiado do Fim do Mundo, a Crítica | Uma provocação romena

O realizador Radu Jude confirma o seu estatuto como um dos realizadores mais interessantes da atualidade. “Não Esperes Demasiado do Fim do Mundo,” também conhecido como “Do Not Expect Too Much from the End of the World”, é uma obra-prima, algures entre a tese política e a piada provocatória.

No universo da obra que foge à narrativa, no experimental e em circuitos festivaleiros, um filme ensaio não é nada que surpreenda. Contudo, o sucesso de tais teses varia muito e tende a resultar num cinema académico, quase insular para com os seus mesmos temas. Ao invés de provocar o espetador, certos ensaios distanciam, promovem a alienação e assim vão criando experiências frias com o qual a audiência não comunica. Radu Jude, esse génio insano do Novo Cinema Romeno, vem-nos mostrar como se faz um ensaio radical em todos os termos, inclusive no diálogo que exige formar com quem assiste.

Dividido em dois movimentos distintos, o novo filme do realizador centra-se nos afazeres de uma assistente de produção a quem ninguém paga o suficiente para a quantidade de trabalho exigido. Ela é Angela e passa a maior parte do dia atrás do volante, guiando de um lado para o outro de modo a filmar algumas entrevistas para o novo projeto da sua produtora. Trata-se de um vídeo sobre segurança no local de trabalho, uma tentativa atroz de alguma multinacional culpar os trabalhadores pelos acidentes sofridos nas suas fábricas. Como tal, em cada paragem do seu percurso, Angela ouve a história dos desgraçados, filma e faz de direção de ‘atores,’ antes de enviar tudo aos patrões.

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O desespero do proletariado é sentido na pele, o desespero mais forte que a humilhação. Todos eles precisam de dinheiro urgentemente e a mentira industrial é forma fácil de o fazer depois da companhia os ter deixado desamparados. A atriz Ilinca Manolache mostra-nos bem a facilidade com que Angela se liga à gente com quem conversa, sua empatia em resvalo para simpatia. Contudo, a desumanidade do capital impera sobre toda a interação, algo que Jude faz tudo para realçar. Por vezes, isso faz-se pelo humor negro dos diálogos. Noutras ocasiões, sai-lhe uma paródia desbocada, como quando, nuns escritórios milionários, a câmara vislumbra “O Capital” de Marx a ser usado como decoração irónica.

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Estas primeiras passagens de “Não Esperes Demasiado do Fim do Mundo” assim se caracterizam por uma repetição rítmica, como se Jude nos estivesse a embalar dentro dos ritmos exaustivos de Angela. Contudo, a fita não é só lavoro. Existem muitas disrupções, chegando ao ponto em que elas mesmas são parte integral da estrutura. Visualmente, a quebra é óbvia, cortando do preto-e-branco granuloso para cor, ora digital ou em celuloide antigo. Mas a diferença vai além disso. É que, durante os muitos momentos em que Angela conduz nas ruas de Bucareste, a montagem compara os seus movimentos àqueles de uma taxista de outros tempos.

De nome comum com a nossa heroína, ela é a mulher titular de “Angela merge mai departe”. Estreado originalmente em 1981, esse outro filme foi feito com Nicolae Ceaușescu no poder, numa era de opressão e censura. Como tal, esse retrato de uma mulher num trabalho de homens sofreu muita edição ditada pelo lápis azul. Para evidenciar isso, Jude apresenta fragmentos dessa fita com as diferenças entre o material feito público e as imagens censuradas bem marcadas. Assim se faz uma comparação direta entre as duas versões da obra, mas também se procura uma relação entre a Roménia em ditadura e o país nos dias de hoje.




Há tanto problema que continua igual, enquanto outras facetas desvendam quanto as cicatrizes de uma História violenta ainda se fazem sentir no dia-a-dia contemporâneo, ora em traumas ou nostalgias fascistas. Nesse aspeto, denotamos algo próximo da literatura comparativa, um mecanismo erudito que evidencia bem quanto esta comédia é também um ensaio político. Mas, em par com essa seriedade, vem uma loucura tão absurda que nos faz rir, nem que seja uma gargalhada nervosa. É que a Angela moderna, além de ser assistente de produção, também se afigura enquanto estrela das redes sociais.

De vez em quando, lá ela puxa pelo telemóvel, põe filtro na câmara e faz TikToks para os fãs. Só que não se mostra ao público como Angela, preferindo a identidade de Bobita, um discípulo de Andrew Tate e sua cambada de homens furiosos, sexistas, racistas e tudo o mais. O choque de todos estes registos é suficiente para nos por a cabeça a andar à roda. Mais do que uma Matrioshka, onde as várias ideias encaixam umas nas outras em sequência, o engenho de “Não Esperes Demasiado do Fim do Mundo” é mais parecido com uma tapeçaria abstrata. Ou quiçá um daqueles quadros cheios de fotos, linhas vermelhas e pioneses, em cliché da conspiração.

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E essa é só a primeira parte de um filme com mais de duas horas e meia de duração, onde a estrutura cíclica de um ato não tem de corresponder ao que vem a seguir. A única constante é Angela e sua exaustão, ora numa reunião por Skype ou a levar uma empresária austríaca do aeroporto para o hotel. Chega a um ponto em que começamos a temer que ela vá adormecer ao volante. Afinal, quando é que ela tem tempo para descansar? Tão explorada como as pessoas que entrevistou, o suplício dela provoca mais uma rutura e, desta vez, até o género cinematográfico parece quebrar. Em estado de graça, Radu Jude interrompe a ficção para um documentário sobre uma estrada infame pela quantidade de acidentes mortais na sua História.

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No local de cada tragédia, as famílias erguem cruzes em homenagem e memória, tornando esse desastre da infraestrutura romena num monumento funéreo. Apesar do tempo extensivo e da repetição estrutural, o filme até agora nunca nos deu tempo para respirar e refletir, para meditar com os próximos pensamentos. Esta montagem faz isso mesmo, exige-o até, suscitando um rasgo de cinema chocante na sua simplicidade, um poema cheio de raiva e dor, cheio de ultraje. O modo como tudo isto funciona, um mecanismo tão perfeito como o relógio suíço, é prova incontestável do génio de Jude, suas habilidades enquanto realizador e argumentista, o primor da montagem assinada por Catalin Cristutiu.

Contudo, quem pensa que o filme fica por aí está muito enganado. Ainda falta filmar o vídeo para os empresários austríacos, um processo que testemunhamos em tempo real, num último ato todo feito num só take. Essa descrição pode sugerir algo mortalmente aborrecido, mas essa não é a realidade da coisa. Pelo contrário, Jude imerge-nos na situação e concebe uma comédia tão negra como o breu, quase obscena na forma como evidencia as injustiças laborais, sociais e económicas. Este é cinema panfletário e é cinema enlouquecido. Radu Jude invoca o apocalipse numa Europa que se canibaliza a si mesma, onde as nações mais ricas devoram os recursos daqueles a quem a História condenou à miséria.

No meio de tudo isso, “Não Esperes Demasiado pelo Fim do Mundo” não é também nenhuma defesa nacionalista da Roménia. De facto, é uma acusação, um exorcismo onde se apela ao cinema em lugar de Cristo, onde a câmara revela pelo meio da falsidade. Além do mais, as gargalhadas não cessam, nem mesmo quando a temática exige um tom trágico. Não há nada melhor que uma arte perversa, capaz de nos fazer rir de assunto tabu, até que nos sentimos tão culpados como as entidades opressoras em cena. Radu Jude é um génio louco do cinema e só nos resta aplaudir o seu delírio. É isso que têm feito as audiências e júris de festivais internacionais. Em Locarno, o filme também conhecido como “Do Not Expect Too Much from the End of the World” levou prémio especial do Júri, e, mais tarde, foi o representante da Roménia nos Óscares. No fim, não foi nomeado como devia. Verdadeiramente, devia ter ganho tudo.

Sobre o Autor

Não Esperes Demasiado do Fim do Mundo, a Crítica
nao esperes demasiado do fim do mundo critica

Movie title: Nu astepta prea mult de la sfârsitul lumii

Date published: 4 de May de 2024

Duration: 163 min.

Director(s): Radu Jude

Actor(s): Ilinca Manolache, Nina Hoss, Ovidiu Pîrsan, Dorina Lazar, László Miske, Katia Pascariu, Sofia Nicolaescu, Costel Lepadatu, Mariana Feraru, Serban Pavlu, Nicodim Ungureanu, Rodica Negrea

Genre: Comédia, 2023

  • Cláudio Alves - 100
100

CONCLUSÃO:

Há tanto cinema que ganha fama de ser provocador sem merecer tais descrições. Não é o caso de “Não Esperes Demasiado do Fim do Mundo.” A longa-metragem mais recente de Radu Jude repudia o realismo observacional que tem caracterizado o Novo Cinema Romeno para experimentar registos mais arrojados. Um ensaio feito paródia, um híbrido de registos, há muitas formas de descrever o filme, mas raras são as palavras que lhe fazem justiça. Há que ver para crer.

O MELHOR: O argumento é uma obra-prima multifacetada, brilhante em forma e estrutura, em discurso político e engenho tragicómico.

O PIOR: Nada a apontar.

CA

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