Cate Blanchett e Bradley Cooper em "Nightmare Alley" | ©20th Century Studios

História da femme fatale no cinema do século XXI

Por ocasião da estreia de “Nightmare Alley – Beco das Almas Perdidas”, e utilizando como âncora a personagem de Cate Blanchett, a sedutora Dr. Lilith Ritter, recordamos a figura da femme fatale e a sua evolução no cinema do século XXI. 

Lê Também:   Nightmare Alley – Beco das Almas Perdidas, em análise

“Nightmare Alley” é uma nova versão de uma obra literária clássica escrita por William Lindsay em 1946. Este filme não deverá ser tido, portanto, como um remake da versão fílmica de 1947. Antes, bebe da fonte escrita para construir a sua narrativa. Nela consta a figura que motiva este artigo, a perigosa e inebriante Lilith.

Quanto à figura da femme fatale, que motiva o ângulo deste artigo, esta construção corresponde a um arquétipo da “devoradora de homens”. Uma figura sedutora, perigosa, capaz de levar qualquer um à loucura. A figura é um lugar comum em várias formas artísticas, da escultura à literatura, passando necessariamente pelo cinema.

Desde os primórdios do cinema, a figura tem estado sempre presente e na entrada do século XXI tal não deixa de ser verdade. Assim, propomos uma breve revisão desta figura central, especialmente ao género noir de que bebe “Nightmare Alley”, começando precisamente com a Lilith de Blanchett.

Cate Blanchett nos jardins de Eden em Nightmare Alley

Cate Blanchett Femme Fatale Nightmare Alley
©NOS Audiovisuais

Em “Nightmare Alley – O Beco das Almas Perdidas”, Cate Blanchett é uma das figuras centrais. Interpreta, como estabelecido, a Dr. Lilith Ritter, a figura antagónica central da trama. Desde já, o nome da personagem é o mais e mais evidente presságio. Pois Lilith é, nada mais nada menos, do que o nome de uma figura mitológica temível e associada a várias religiões e culturas distintas.

Oriunda da Babilónia, Lilith diz-se ter sido um demónio que ocupava o corpo de uma mulher e vivia no Inferno. Já na religião católica, ela é tida como a primeira mulher de Adão, antes de Eva. Lilith é quem assume a forma da serpente e leva Eva a comer a maçã proibida. Ela é, por isso, a própria origem do pecado fundador. Quanto à origem da palavra, Lilith significa “Pertencente à noite”.

A Lilith de Blanchett sem dúvida encontra-se com a figura mitológica, não fosse ela a grande antagonista deste argumento. A Dr. Lilith é uma psicoterapeuta de renome, rica e bem-sucedida que consegue compreender o jogo que Stan (Bradley Cooper) está a jogar. Depressa o consegue manipular e superar, tornando-se a parceira que Stan não deveria ter aceite, mas que não pode evitar. Uma verdadeira viúva negra, Lilith irá mostrar-se nada menos que implacável. E mais não diremos, para não estragar o enredo…

Uma oponente ao mais alto nível, Lilith é uma mulher de armas que não deixa de nos hipnotizar. Quiçá até consiga a nomeação para Melhor Atriz Secundária por esta personagem memorável. Teremos de aguardar até ao anúncio das nomeações a dia 8 de fevereiro.

Que outras femme fatale definiram o cinema do século XXI? 

Rebecca Romijn in Femme Fatale (2002)
Rebecca Romijn em “Femme Fatale” (2002) |©Quinta Communications S.A.

Lilith Ritter não é, de todo, a única femme fatale das últimas duas décadas cinematográficas. Desde o início dos anos 2000, esta figura tem sido recorrente e evocada por vários autores de sucesso. Começamos esta viagem breve ao recordar “Femme Fatale” (filme de 2002), obra de Brian de Palma protagoniza pela belíssima Rebecca Romijn (“Betty Feia”) e por Antonio Banderas (“A Pele Onde Eu Vivo”).

O filme apresenta-se com a frase promocional “Nada é mais apelativo ou mortífero do que uma mulher com um segredo”. Aqui, a escultural Rebecca Romijn, do topo do seu 1.80m, é Laure/ Lily, uma vigarista tomada, por engano, por uma mulher que perdeu o marido e o filho num acidente. Laurie assume a identidade desta mulher e casa-se com um futuro embaixador. Contudo, o seu passado insiste em persegui-la.

É comum esta figura da femme fatale ser associada a narrativas negras, criminais, eventualmente filmes que envolvem homicídios. Não fosse este símbolo associado à desgraça e perdição mortais. Este é também o caso de “Brick”, de 2005, uma obra de Rian Johnson (“Knives Out”) protagonizada por Joseph Gordon-Levitt e Nora Zehetner. Neste filme aclamado no circuito de festival, Brendan (Gordon-Levitt) encontra a sua ex-namorada Emily (Emilie de Ravin) morta num túnel de esgotos. O jovem procura assim descobrir porque foi morta Emily e a quem deve a vingança.

Brick 2005 figura femme fatale
Joseph Gordon-Levitt e Nora Zehetner em “Brick” (2005) |©Focus Features

Aqui, a figura da femme fatale recai sobre Laura (Nora Zhetner), embora a sua natureza dominadora e perigosa não seja desde logo anunciada. Ela é uma jovem popular que recorre a técnicas de sedução para arrastar o protagonista para uma situação cada vez mais bicuda. Embora sejamos fãs da personagem, sendo ela aparentemente empática e vulnerável, ela não deixa de ser sempre algo suspeita, duvidosa, assim o são todas estas figuras femininas pecaminosas.

No mesmo ano, 2005, Woody Allen realizou um dos seus filmes mais fortes do século XXI, “Match Point”, um thriller dramático acerca de um antigo tenista profissional que se apaixona por uma atriz que namora com um grande amigo seu. Scarlett Johansson é hipotizante na figura da femme fatale, Esta foi a primeira vez que Scarlett desempenhou um papel central mais provocador, uma mulher confiante e sensual que acaba por levar à ruína de um homem. Contudo, a atriz defendeu, várias vezes em entrevista, que esta personagem não tinha intenções maliciosas pré-meditadas, algo essencial para a caracterização como “a mulher que mata” (femme fatale). Ou será mesmo necessário?

woody allen
“Match Point” ©BBC Films

Todavia, o perigo está bem latente na Nola Rice de Scarlett, sempre reminiscente das grandes figuras femininas dominadoras da história do cinema. Ela recorda-nos a personagem icónica de “Atração Fatal” (icónico filme dos anos 80 e cânone do género), como um “objeto” de desejo irrecusável e misterioso. Contudo, no memorável “Match Point” nada é preto no branco, muito menos Nola ou as suas elusivas intenções.

instinto fatal cannes em casa
Sharon Stone em “Instinto Fatal” (original) | © TriStar Pictures

E depois do original em 1992, Sharon Stone regressou à mais emblemática femme fatale do cinema moderno com “Instinto Fatal 2”, em 2006, um filme que não chegou ao estatuto emblemático do primeiro filme, mas que não deixa por isso de merecer figurar em qualquer recapitulação da femme fatale no cinema do século XXI.

Neste thriller psicológico, carregado de uma imensa carga erótica, Stone volta à pele da autora Catherine Tramell, que se encontra uma vez mais em apuros legais. É-lhe apontado um terapeuta, Dr. Michael Glass (David Morrissey) que depressa cai na teia e no jogo sedutor desta personagem memorável. Entramos numa lógica de jogo do gato e do rato e a questão coloca-se, quem está a manipular quem?

Em 2003 e 2004, também Beatrix Kiddo, muitas vezes conhecida apenas como “A Noiva” brilhou como uma femme fatale que procura a retribuição. Abandonada para morrer no dia do seu casamento, enterrada viva, a Noiva é sempre capaz de se resgatar das mais horríveis situações e transformar lágrimas e suor em muito (muito) sangue. Longe de ser uma femme fatale tradicional, a personagem central de “Kill Bill”, de Quentin Tarantino, é uma guerreira que transfigura e eleva o conceito. Uma heroína em vez de uma chave para a perdição, Beatrix apenas procura justiça e vai conseguindo-a, morte após morte.

em parte incerta fox
“Em Parte Incerta” | ©2014 Twentieth Century Fox Film Corporation.

Desde o início dos anos 2000, muitas foram as representações de personagens femininas inescapáveis que trazem a desgraça aos homens da sua vida. Mais recentemente, em 2014, Rosamund Pike encantou o mundo no papel de Amy, em “Gone Girl/ Em Parte Incerta” de David Fincher, na pele de uma irresistível esposa aborrecida que simula o seu próprio desaparecimento e deixa o marido a limpar os cacos da sua vida. Amy baseia-se nas palavras de Gillian Flynn, tal como criada no seu romance, e é uma personagem quase psicótica, caricatural, mas que não obstante entra dentro deste estereótipo, como um lobo em peles de cordeiro. As suas imagens, e os seus crimes, tornaram-se icónicos de forma quase imediata.

Mais uma mutação em relação ao que é esperado no que a cânones diz respeito, Alicia Vinkander quebra todas as expectativas na pele da figura robótica Ava em “Ex-Machina”, neste papel que provavelmente continua a ser o seu melhor. Se na nova interpretação de Lara Croft nunca nos conseguiu vender a fantasia, em “Ex-Machina” é eletrificante como uma perigosa forma de inteligência artificial, um android com a capacidade de seduzir. Ela é capaz de manipular os seus alvos, passar no teste de Turing e criar uma ligação emocional baseada num engodo. Ava acaba por se virar contra aquele que lhe deu vida, e ninguém se parece importar. Ao fim de contas, muitas vezes a femme fatale parece carregar o peso da retribuição, especialmente no século XXI. Será que a personagem masculina não mereceu o seu destino?

titane critica
“Titane” © Alambique Filmes

Com várias interpretações fulcrais ao longo do cinema dos últimos 21 anos, a femme fatale está viva e de boa saúde. E claro, está em constante evolução, que o diga a personagem da mais recente Palma de Ouro em Cannes, Alexia, uma jovem andrógina que trabalha como dançarina exótica num clube automóvel e que começa “Titane” com uma cena muito evocativa de um filme já aqui mencionado, “Femme Fatale” de Brian de Palma. Alexia, uma jovem que vive com uma placa de titânio no cérebro, é profundamente perturbada e começa a obra precisamente a matar um pretendente que a tentou forçar a realizar atos sexuais. Retribuição, uma vez mais.

À medida que o filme evolui, a sua figura vai, de forma fascinante, afastando-se cada vez mais da típica femme fatale, sendo agora a sua vez de sofrer na pele todo o sofrimento que causou. Não obstante, ela continua a ser incrivelmente sedutora, capaz de baralhar homens e mulheres, retirando uma espécie de prazer sádico a partir dos seus atos insanos. Uma evolução muito interessante dentro do género, Alexia poderá bem vir a tornar-se um ícone feminista, não obstante a clara natureza antagónica dos seus atos. Não fosse o seu âmago, como mais tarde revelado, repleto de vulnerabilidades, contradições, fragilidades e carências emotivas.

Que outras femme fatale do cinema do século XXI te ficaram na memória? 

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *